29 de junho de 2010

Tratado sobre relações que são ralações

De uma maneira geral, no mundo ocidental - na concepção que nós, europeus, temos da 'ocidentalidade' - já serão poucos os que se casam por interesse. Ainda assim, continua a haver por aí muita gente presa a relações às quais só sobra a forma, porque estão há muito vazias de conteúdo.

A dada altura, na nossa vida, todos nós já experimentámos manter vivos os laços que nos uniam a alguém, pelo simples facto de acreditarmos - e nessas alturas acreditamos piamente - que é impossível uma coisa tão lógica, como estarmos junto 'daquela' pessoa, deixar de existir. Infelizmente, todos o sabemos - ou aprendemos, por vezes, aos trambolhões - a aritmética das emoções e dos afectos não é uma ciência exacta e nesta coisa dos sentimentos, dois mais dois nem sempre são quatro.

Um amigo e ex-colega contava-me há tempos o seu desaire [na altura] recente. Desabafava a sua pouca sorte e lamentava a falta de ajuda cósmica. Dei-lhe uma palmadinha nas costas e aconselhei-o a seguir em frente. Terá sido de pouco uso o "caga nisso e bebe a cerveja, que gajas há muitas", mas, nestes casos, o que é que de inteligente se pode dizer a quem acha que o mundo (o seu) está a desabar?

Em momentos de confissões sacramentais, fico sempre sem jeito e sem argumentos. Eu, que, de uma maneira geral, tenho opinião formada ou a formar sobre tudo e mais alguma coisa. Nessas ocasiões, olho para o meu interlocutor e julgo simplesmente inútil perder-me em argumentos que tentem convencer aquele sujeito, feito em merda, de que a vida é uma coisa bestial.

Hoje, por e-mail, o tal amigo voltou ao tema. Agora, sonhador, encantado e, de novo, apaixonado. Isso pôs-me a pensar.

Homens e mulheres são diferentes, mas, independentemente dos genitais que o Senhor nos deu, ser pénis ou vagina interessa muito pouco quando aquilo de que se trata é de entregas e devoluções.

O facto de aceitarmos, às vezes com leviandade, partilhar a nossa vida, de mão beijada, com alguém, é, à partida, um risco sujeito a consequências potencialmente desastrosas. A nossa geração, esta dos finais dos anos 70 e princípios da década de 80, tornou demasiado fácil o compromisso, sem se dar ao trabalho de o aprofundar. As relações, as que o chegam a ser, já o são antes de o deverem ser. Hoje eu já te amo, amanhã estarei a viver contigo.

Num ápice, viramos todos imperiais mal tiradas. Dentro do copo, só espuma, sem cerveja. À primeira adversidade, porque não criámos laços sólidos, questionamos tudo e destruímos as leis da física que, cinco minutos antes, tínhamos por universais. Pegamos no saco do lixo, damos um nó, dois e levamos para o contentor. No regresso, estaremos prontos para outra.

Felizmente, restam-nos ainda exemplos felizes, de gente que perdura no tempo. Conheço casais assim. Novos e velhos. Gente feliz e não apenas contente. Homens e mulheres que, com ou sem semelhança de género, não querem saber viver separados.

Uma relação é uma partilha: que não implica que cada parte se anule, que deixa espaço para a individualidade, mas uma partilha que se constrói, aos poucos, devagar. E será sempre uma ralação. Às vezes, estar com alguém, fazer por dar certo, é chato ao ponto de não apetecer mais.

Sou um aprendiz desta coisa que é viver. Aos disparates, conheço-os a todos. Já me anulei, já desprezei e já fui indiferente. Quis estar e arrependi-me profundamente de ter estado. Enganei-me na pessoa e enganei-me a mim próprio. Vivi num permanente estado de ansiedade. Nesse aspecto, tornei-me um homem mais adulto. Pelo menos, inspiro e expiro sem comprometer os batimentos cardíacos.

Escrevi uma vez que os meus pais são o meu modelo. Continuo convencido disso e os seus trinta anos de casamento feliz (complicado, mas feliz) são a prova de que estou certo. A minha mãe tem um feitio difícil e o meu pai é um homem solitário, com poucos amigos. Ele aturou-a e ela fez-lhe companhia. Não me contentarei jamais com menos do que aquilo que eles representam. O seu exemplo será sempre o meu guia. Serei paciente e persistente. Ainda assim, esgotadas todas as possibilidades, preferirei o caminho mais sinuoso, se assim tiver de ser, e tomarei decisões difíceis, se não as puder simplificar.

Mesmo que a tropeçar no meu pé 45, espero nunca me esquecer de como é que se ama alguém: ao meu jeito, no meu defeito e na minha ingenuidade. Por isso, obrigo-me ao dever de querer perceber a mesma verdade - e o mesmo presente - no olhar de quem estiver comigo, seja eu um jovem à beira dos trinta ou um sexagenário com bicos de papagaio.

Esta manhã, ao acordar, olhei para a mulher que amo e pensei o quanto ela é importante na minha vida. O quanto cresci ao lado dela. Naquele fragmento de tempo, revivi um sem número de momentos que partilhámos os dois. Nem todos felizes, muitas discussões e desentendimentos, mas sempre intensos. Os quilómetros que fizemos, a aventura em que nos metemos e as precipitações que protagonizámos. Não sei medir o tamanho do sentimento que nos mantém juntos. Não sei, se o pesássemos, se a balança estaria equilibrada. Talvez não. Não faço ideia onde estaremos daqui por uns meses. Contudo, ao vê-la despenteada, ainda a dormir, não me importei com nada disso. Limitei-me a recordar o seu riso, a sua irreverência, o seu feitio ainda pior que o da minha mãe e o quanto gosto dela quando me faz detesta-la.

Ao meu amigo, agora, não querendo estragar o momento, talvez lhe dissesse que até prova em contrário nos limitamos a viver apenas uma vez, o que, para lá do cliché, é motivo bastante para não perdemos tempo com quem não quer perder tempo connosco. Acrescentaria, porém, que o melhor é não pensar muito no assunto.

Que país é este?

O Pedro Rolo Duarte escreveu sobre as escutas telefónicas que o Correio da Manhã tem vindo a divulgar.

Li o Pedro, li as escutas e pergunto-me: que país é este em que esquemas legais permitem que o conteúdo daquelas horas de gravação possa não ter qualquer implicação?

Que país é este onde, um jornal divulga, como já antes outro o tinha feito, tais provas e haja quem, do topo das suas responsabilidades públicas, continue a afirmar que não houve nada, não se passou nada?

Que país é este, meu Deus - e talvez Ele nos ajude a perceber isto tudo - em que persiste a maior das imoralidades, das impunidades e das indecências?

Quem país é este onde se sabe tudo o que se sabe e o Governo não cai?

O que é que de bom podemos esperar de gente assim?

18 de junho de 2010

Breve nota sobre a profissão

Eu devo gostar mesmo do que faço. Hoje fui ao fim do mundo e voltei. Comi pó durante largas horas, percorri picadas loucas, ia caindo numa ravina, pedi boleia à beira da estrada, andei na caixa aberta de uma carrinha e acabei o dia a comer torresmos regados com cerveja Strella à pressão.

16 de junho de 2010

O projecto do Nuno

Tenho um projecto de vida. Um plano, pelo menos. Quero viver do que escrevo, sem ter de cumprir calendários demasiado rígidos ou temas escolhidos por um editor que, simplesmente, não quer saber das minhas vontades pessoais. Planeio fazer tudo isto no primeiro andar de uma casa, pintada de branco, à beira-mar, na secretária que vou pôr ao pé da janela que há-de ser virada para o oceano. Em cima da mesa terei um candeeiro, muitos papeis, um computador, um lápis e um Moleskine.

A janela desse quarto não terá cortina. Não quero nada a esconder os quatro vidrinhos pelos quais será formada, embora tenha pena de não ter um pedaço de pano a esvoaçar ao ritmo das ondas.

Escreverei crónicas, contarei histórias, talvez até escreva um livro. Interromperei, a espaços, para descansar a vista e esticar as pernas. Caminharei, então, no soalho de madeira e descerei as escadas para o rés-do-chão. Na cozinha quero móveis de cor azul. O frigorífico será Indesit (ainda existem frigoríficos Indesit?). Em cima da mesa, rodeada por quatro bancos, ela e eles também azuis (de um azul claro e luminoso), existirá uma cesta com muita fruta, que comprarei no mercado, religiosamente, uma vez por semana.

A minha casa branca também terá uma sala e um quarto de dormir. Na sala, uma grande poltrona, como um trono. No quarto, o de sempre. Por essa altura, entre a cintura e os joelhos, já não deverei ser dono de mim, apesar disso, à cautela, cuidarei de manter uma caixa de preservativos na gaveta da mesinha de cabeceira.

Serei, nesses tempos, senhor de mim próprio, rei de Terabitia, criador dos sonhos que agora construo e personagem principal de uma história quase contada.

Por enquanto, limito-me a ser apenas protagonista da luta diária que os homens travam uns contra os outros. Quase sempre dominado de incertezas e inquietude. Se fosse marinheiro, afirmar-me-ia num temporal, a caminho do tal porto, junto à casa branca. O pior é que não sou e, assim sendo, tendo em conta o que, em teoria, ainda me falta viver, estou mas é bem fodido.

10 de junho de 2010

Aqui estamos

Este é o país do rei que bateu na mãe. Das caravelas, das naus e do Sebastião que, todos o sabemos, ainda há-de vir para nos salvar, porventura, do estado a que isto chegou. Ai homem que tanto tardas.

Este é o imenso país das fronteiras infinitas, que do Restelo navegou a África, à Ásia e à América e que aí deixou uma língua, uma religião e um jeito estranho de se ser.

Este é, por isso, o país do povo que se deixa roubar. Que baixa a cabeça perante a adversidade, o infortúnio e o fado da existência, escrito, repetido e exausto, nos versos dos poetas, cantados por Amália, que depois de fadista foi lontra, ao lado de Eusébio, que tinha sido futebolista.

Fado, Futebol e Fátima, não por esta ordem, das peregrinações, dos joelhos no chão, da mão no peito, das velas, das procissões e do ‘ai Deus me acuda’, que se for por mim, canso-me antes de lá chegar.

O país de Sócrates de Cavaco e de Alegre. O que mente, o que já mentiu e o que quer mentir, ou não fosse isto uma mentira pegada.

Este país, de inveja feito, cheio de mesquinhice, cusquice e outras ‘ices’, que isto é mas é tudo uma grande chatice. Trabalhar cansa e cansar faz mal. A cunha já tenho, dá-me lá um subsídio.

O país do oitavo para o décimo ano, dos professores que reclamam da avaliação, dos alunos e da ministra que os governa. Aqui o que importa é ter um curso e haver uma ‘nova oportunidade’ de ser doutor, mesmo que em tubagem e sanitários.

Este é o país dos medíocres, dos maus e dos mauzinhos, em que a culpa morre solteira, mas só porque não é gay.

Este é o país dos tipos que escrevem textos como este, o país que não vale a pena, que a selecção vai perder, ficar logo na fase de grupos. Pai, filho, espírito santo.

Este é o país que eu amo. Este país é Portugal.

2 de junho de 2010

Carta

Olá!

Então como vão as coisas por aí? Não conheço o sítio para onde te mudaste, mas têm-me dito que vale a pena. Faz frio, calor? Como é que são os dias? Há dias? E como é que se ocupam? Acredito que tenham muito tempo livre. Tens estado com a avó? Ela está boa? Diz-lhe que tenho saudades das cócegas na barriga e da mousse de chocolate nos anos. Olha, o importante é que estejas feliz e tenho a certeza que sim... caso contrário já terias voltado.

Hoje lembrei-me daquela vez em que a chuva tentou estragar o nosso piquenique e tu, com aquela paciência que tinhas para as coisas vulgares, improvisaste uma floresta no escritório. O sol, no candeeiro; o pano verde, nas vezes da erva; as formigas na parede. Ainda assim, consegui ficar doente.

Aliás, tu sabes que eu tenho uma tendência para estragar as melhores intenções de toda a gente. O febrão no circo Chen? A Expo de Sevilha? E a cama na Bendada, dias antes da jarra partida em Madrid?

Fiquei muito contente por ter chegado a tempo de te desejar boa viagem, "vai com Deus". Estava imensa gente. És mesmo popular. Pudera! Passaste a vida inteira a viver a vida dos outros e, às vezes, até te esqueceste da tua. Ou talvez não. Talvez tenha sido nos outros, naqueles a quem tanto bem fizeste, que encontraste a razão do teu viver.

Acho que foi isso que tanta gente, naqueles bancos corridos, ao som melodioso de canções bonitas, te quis dizer, mesmo antes de te ires embora.

O que ainda não percebi é porque é que tiveste de sair tão de repente. Estava mesmo para te ligar a saber de ti, dessa chatice que te levou de mim.

A Dulce fica bem. Cuidamos dela. Cuidaremos de nós, também. Não te preocupes: jamais seguiremos caminhos que nos levem para longe da casa de partida, à qual, inevitavelmente, voltaremos sempre que precisarmos de recuperar o fôlego.

Em todo o caso, quero que saibas que a tua morte provoca em mim um imenso embaraço.

Falamos depois.


Nuno