2 de dezembro de 2010

Diferenças

Em parte, será pela minha mistura genética: mãe portuguesa, pai angolano, avô brasileiro. Será também pela educação aberta que recebi e através da qual aprendi a aceitar a diferença. Talvez seja ainda pelas experiências que fui tendo, as amizades que fui fazendo e os sítios por onde fui passando. A verdade é que não suporto gente racista.

Existem diferentes tipos de racismo. O assumido militante, expresso através de grupos organizados, ou praticado isoladamente, sem vergonha na cara. O assumido não militante, vindo de gente que diz o que pensa sobre as pessoas que não têm a sua nacionalidade e/ou cor de pele, mas mantém alguma reserva em faze-lo ao pé dos visados. O cínico, que é aquele que diz coisas do género "racista, eu? nem pensar", antes de dizer que "jamais namoraria com uma preta". E o ingénuo, o que tem comportamentos racistas ou xenófobos, sem uma intenção deliberada. Este é, vulgarmente, o autor de frases que começam por "as pessoas de cor" (como se existisse alguém transparente).

No último fim-de-semana, enquanto assistia com um amigo a um jogo de futebol, fui abordado por um sujeito que, com o pretexto de que eu tinha um pé apoiado numa cadeira livre (eu sei, as pessoas educadas mantêm os pés no chão), decidiu fazer uso do pior vernáculo que lhe veio à cabeça, de forma absolutamente desproporcional. Nos dois minutos que durou o festival fui, aos olhos daquele senhor, o pior indivíduo à face da terra. Um branco oportunista que está em Cabo Verde para (re)colonizar o arquipélago e enriquecer à custa dos nativos.

Infelizmente, apesar de ter falhado o alvo, e do exagero da forma e do conteúdo, ele não deixou de ter alguma razão. Os sentimentos racistas podem ter muitas origens e, por estas bandas, uma delas é o comportamento autoritário de alguns que, vindos de fora, se acham donos do que é dos outros. Revolta-me o tom ariano com que muitos dos meus compatriotas se dirigem aos cabo-verdianos (como em Angola aos angolanos, na Guiné aos guineenses, etc).

Indigna-me que muitos estejam aqui, não para amar este quase nada de mundo, o som único da sua música, o ritmo tranquilo do dia-a-dia, a cachupa e o mar imenso, mas apenas para, com sobranceria, fazerem "na terra dos pretos" a fortuna que o seu próprio país reservou para alguém mais habilitado. Tiram-me do sério aqueles que, nas 24 horas que o dia tem, não perdem uma oportunidade para mostrar uma pretensa superioridade intelectual e moral, dissertando sobre temas de grande elevação e desvalorizando sistematicamente a cultura e as práticas locais. É gente que não tem onde cair morta e que veio cá parar não por opção, mas porque tinha a barriga a dar horas.

Um dia, alguém me questionou sobre como é viver em minoria. A pergunta, cheia de oportunidade, fez-me pensar que, de facto, a empreitada que tenho feito é mesmo singular.

Esta casa não é minha e mesmo assim deixaram-me entrar. Este quarto não é meu e apesar disso posso usar a cama. Se a cozinha é comum, ao menos lavo a loiça quando terminar de jantar.

Não concordo nada com a ideia de que somos todos iguais. O complexo da igualdade é um disparate. Somos diferentes e o que nos separa será sempre maior do que aquilo que nos une. Não há nada de errado nisso. O desafio está em aceitarmos e elogiarmos a diversidade. Seremos capazes?

29 de novembro de 2010

Cuidados paliativos

Quando, já lá vão quase dez anos, a minha avó teve o seu segundo e mais forte AVC e depois de uma curta passagem pelo hospital, colocou-se um desafio a toda a família: o que fazer com ela dali em diante?

Aos 80 anos, nunca tinha vivido sozinha. Foi mãe de sete filhos, dois rapazes e cinco raparigas. Duas tias minhas, que nunca chegaram a casar, foram sempre o seu braço direito.

Contudo, o desafio que se colocava a todos os filhos e netos, na porta do banco de urgências, era completamente diferente. Já não estava em causa acompanhar um senhora de idade ao médico ou garantir que a sua fraca memória não originaria um qualquer acidente doméstico. Perante nós estava a impaciência do director clínico de uma unidade hospitalar sobrelotada e que, só a custo e depois de um telefonema para um contacto no conselho de administração, tinha consentido em não deixar uma doente incapacitada nas mãos de uma família em completo desamparo.

A minha avó estava, como permaneceu nos oito meses seguintes, os últimos da sua vida, num estado de quase coma. Apesar de respirar sozinha, deixou de falar e, passado algum tempo, de ver. Alimentava-se por intermédio de uma sonda e raramente respondia a algum estímulo.

Fomos confrontados com uma situação nova para todos. O meu avô, que teve Parkinson, precisou de acompanhamento, mas manteve até ao fim um pequeno grau de autonomia, suficiente para evitar a necessidade de cuidados técnicos especializados permanentes.

Por mais unidos que fossemos - e somos, em momentos de crise - seriamos, percebemos de imediato, incapazes de lidar com a situação. Em causa estava a dignidade de alguém que muito amávamos e que, desde sempre, tudo tinha feito pelo nosso bem-estar. Percebemos também que não se tratava de um período de convalescença. Mais ou menos longo, o tempo que se seguia seria de uma lenta agonia. Era preciso fazer de tudo para atenuar ao mínimo possível o sofrimento.

Felizmente, encontrámos uma residência de iniciativa religiosa com óptimas condições técnicas e um quadro de pessoal de grande sentido humano. Mais uma vez, por conhecimentos e influência de um familiar que, à data, ocupava um cargo de responsabilidade na Segurança Social, conseguimos uma vaga.

Foi ali que a avó 'Minda' fez a sua última caminhada. Tenho a certeza de que a escolha que fizemos foi, dadas as circunstâncias, a melhor possível. Nós, que sempre nos mostrámos contra o internamento em lar, aceitámos a evidência e assumimos a nossa natural incapacidade. Às vezes, estar à altura é saber reconhecer que não somos capazes.

Apesar do trabalho meritório dos médicos, das enfermeiras, das técnicas e das auxiliares do centro, a sua vocação não era aquela. Fizeram-no num acto de boa-vontade e com um empenho muito para lá das suas responsabilidades contratuais.

Pergunto: quantas famílias não têm a mesma sorte que nós tivemos? Quantas pessoas são deixadas à sua sorte em hospitais ou mesmo em casa, sem acesso a cuidados especializados que garantam um fim de vida com dignidade e sem dor?

Quantos homens e mulheres, velhos e jovens, a braços com uma situação clínica irreversível, mas com desfecho certo, sofrem mais do que teriam de sofrer só porque não existem, ou escasseiam, em Portugal estruturas de saúde e profissionais vocacionados para a prestação de cuidados paliativos?

O respeito pela vida humana é também o respeito pela inevitabilidade da morte e pela garantia de que a última hora chegará sem um sofrimento desnecessário. Perceber e praticar isto é uma expressão de desenvolvimento civilizacional.


No Facebook, sítio onde perdemos tempo com grupos, movimentos e aplicações de utilidade e interesse duvidosos, nasceu uma causa que merece o meu apoio e que espero possa vir a merecer o vosso. Chama-se "Pelos Cuidados Paliativos em Portugal" e conta já com mais de 35 mil membros.

21 de novembro de 2010

Deixamos o tempo correr e embora saibamos que estamos mais velhos, não aceitamos que algo de mal possa encurtar o nosso caminho para a eternidade. Um mais um são dois e quem está vivo, morre. Agora, caramba, se eu vou morrer, se vamos todos, ao menos que seja quando tiver de ser e não antes.

Uma mensagem. "Despeço-me de ti". Como assim? Desculpa lá, não estou a perceber? O que é queres dizer com isso? Vais viajar. Tens as malas feitas e um bilhete de ida. Próxima estação, sete palmos de terra.

Ainda ontem estávamos lá em baixo, na mesa de sempre, e hoje estás para aí, armado em valentão, a pensar que vais sozinho. Deixa-te mas é de merdas. Não vais a lado nenhum. Ou vá, se tiver mesmo de ser, fala com o gajo que te marcou passagem e pede-lhe mais um tempo. O máximo possível. Estou aqui a uma certa distância e gostaria de te dar um abraço. Só não bebemos um copo, porque foi isso que te fodeu. Isso e os cigarros. Aquela tosse nojenta tinha de ser presságio de qualquer coisa. "Não, nem pensar". Pois não, claro que não.

Meu grande filho da puta, que toda a gente te avisou. Mas apesar de seres um tipo inteligente, nunca foste muito esperto. Portanto, o bagaço para o fígado e o tabaco para os pulmões. Espanta-me que não tenhas dado em paneleiro, só para dares cabo do cu.

Agora, já que te meteste nesta embrulhada, cuida de arranjar uma maneira de sair dela. Mesmo que não consigas, ao menos terás tentado.

19 de novembro de 2010

O que [não] sou

Descobri há dias uma fotografia dos meus primeiros tempos de escola. No final da década de 80, lá estávamos nós, em duas filas, nos degraus que do portão davam acesso ao pátio.

A Susana, a Bárbara, o Vítor, a Vanda, o André, a Raquel, a professora Antonieta e muitos outros, cujo nome o tempo se encarregou de apagar da minha não muito prodigiosa memória. De todos, mantenho contacto com apenas duas pessoas. Como não poderia deixar de ser, perdi o rasto à maioria.

Passaram-se mais de 20 anos desde o dia em que o fotógrafo, cumprindo uma tradição quase protocolar, fez a sua visita anual à numero 1 da Torre da Marinha e gravou na película do rolo Kodak - nessa altura, digitais, só os relógios da Casio - a inocência de quem, aos 6 anos, não faz a mínima ideia do que ainda está para vir.

Lembro-me do pão com manteiga que levava na mochila, juntamente com o pacote de Nesquik ou Bongo. Lembro-me de jogar ao mata e de, já na altura, não ser especialmente dotado para as actividades físicas. Lembro-me de ver o Vítor a fazer chichi nas calças em plena sala de aula. Da vez em que escrevi "serra" com "ç" (e do castigo que se seguiu) e da outra, em que a Paula (afinal também me lembro dela) me espetou na testa o lápis acabado de afiar.

A Susana Moreira foi a minha primeira 'namorada' e nós dávamos beijinhos envergonhados debaixo de um kispo, escrevíamos bilhetes apaixonados e toda a gente achava muita piada ao casalinho.

O tempo passou. Tenho tido uma vida boa. Ensinaram-me a lutar por aquilo que quero e foi isso que sempre fiz, às vezes de forma obstinada, mas sem nunca perder a dignidade ou o respeito pelos outros e por mim próprio. Acontece que não sei ouvir um "não" como resposta.

Acho que sou um homem justo. Evito fazer julgamentos primários e dou sempre uma segunda (uma terceira, uma quarta) oportunidade às pessoas. Talvez por isso não tenha inimigos ou não os conheça.

Sou jornalista porque quis ser. Antecipei-me e conquistei o meu lugar. Procuro merecer a confiança que depositam em mim. Na vida profissional, tanto como na pessoal, mais do que fiel, sou leal. Se estou, acredito. Se acredito, entrego-me. Por causa disso, passei ao lado de muitas oportunidades e recusei muitos convites, mas não há quem me possa apontar o dedo e dizer que estive num sítio, com a cabeça noutro.

Não sou um tipo muito sociável. Falo com toda a gente e disfarço a timidez com um humor sarcástico, mas raramente aprofundo relações de amizade. Dificilmente troco um desabafo que não de circunstância.

Não sei e não quero aprender a dançar. Gosto de ir a concertos, mas não me procurem nas primeiras filas, a não ser que sejam lugares sentados. A verdade é que também não percebo muito de música. Aliás, não percebo muito de muita coisa, a não ser de política, o que talvez faça de mim um chato.

Sou dos que cobra atenção. Se dou, quero em troca. Não precisa de ser hoje, mas terá de ser um dia e de preferência não muito longínquo. Não gosto de balanças desequilibradas. Choro com a mesma facilidade com que me rio à gargalhada e não tenho vergonha nenhuma disso.

Já conheci muitos países, já vivi em três. Comi coisas inimagináveis, em restaurantes luxusos ou tabernas com moscas, ratos e baratas. Bebi mais do que devia, embora sem nunca perder a compostura. Nunca fumei droga e não tenho curiosidade em experimentar.

Amei incomensuravelmente e fingi gostar de alguém. Também me enganei muitas vezes em relação a isto. Envolvi-me com a pessoa errada e magoei quem menos merecia. Mudei (ou tentei mudar) por alguém. Fiz amor, fiz sexo, fodi. Tive e dei prazer, mas também já correu mal e a culpa foi minha.

Aquilo e aquele que sou, imensa imperfeição, é o reflexo de tudo o que vivi e do que ambiciono viver. A minha essência é o resultado do somatório dos dias passados, presentes e futuros, elevados à categoria de semanas, meses e anos.

Sou aquilo que sou. Gostem ou não, este aqui sou eu.

5 de novembro de 2010

Alguém de boa fé é capaz de dizer que este menino não é o filho que qualquer mãe deseja?

Bom dia e uma canção

Em Cabo Verde, na sétima noite após o nascimento de um bebé, junta-se família e amigos (com um ou outro penetra pelo meio, que quer mesmo é comer à borla) e, à meia-noite, canta-se esta canção:

Ô rosto doce de odjo maguado,
Es bo cudado
Botal pa traz
Nhor Dés ta dano um bida de paz
De odjo maguado

Ná, ô menino ná.
sombra rum fuji de li!
Ná, ô menino ná,
Dixa nha fidjo dormi

Sono de bida, sonho de amor
Ou graça, ou dor,
Es ê nós sorte...
Se Deus, más logo, mandano morte,
Quem que tem medo
Ta morrê cedo.

Toma nha ombro, encosta cabeça
Já n'dabo peto,
Amá "ragaz"
Ô espirito doce, ca bo tem pressa
Deta cu jeito
Dormi na paz


5 de outubro de 2010

O novo homem do lixo

Esta noite, depois do Telejornal, voltará a vestir o casaco grosso e demasiado usado. Antes de sair de casa, beijará a mulher e sorrirá aos filhos que brincam no quarto. Sem palavras, abrirá a porta, acenderá a luz das escadas e chamará o elevador. Ouvirá, então, a velha cabine descer do sétimo andar. Com os pés na alcatifa gasta, pressionará o botão, escolhendo o caminho da rua.

De noite, pouco movimento. Três cães vadios a correr atrás de uma cadela com o cio, um carro a estacionar, uma rua inteira de prédios e gente silenciosos.

Sorumbático, apressado, atravessará a estrada, subirá a pequena ladeira, virando à esquerda antes da escola primária. Os Correios do lado direito e ainda o emudecimento por decreto. A papelaria, a loja vazia e o "arrenda-se" ressequido pelo sol. O talho, o café aberto e a telenovela da noite como cliente. Evitará olhar para o balcão.

Do lado de lá desta outra estrada, que cruzará sem ser na passadeira, olhará novamente em redor, à procura de solidão. Esperará que a luz do supermercado se apague. Ainda um pouco mais até que a última empregada saia. Dois minutos exactos. Cabeça baixa, escondendo a vergonha que lhe impuseram, "ajudai-me Senhor, porque eu sei o que faço", levantará a tampa do contentor.

Vive uma vida conjugada no futuro, de um presente adiado. Não se conformou, ajustou-se. Demasiado pequeno, demasiado insignificante, fará amanhã o que não pode fazer hoje. Ou então na próxima semana, na outra, num mês, em dois. Sabe-se esquecido, mas não se esquece do caminho para casa, onde regressará, com os restos da noite, no resto do dia, e servirá um alimento muito mais nutritivo do que as sobras que disputa, à vez, com outros que tais. Com a dignidade de um jantar em família, perguntará sobre o dia de escola, verificará se os trabalhos de casa foram feitos e prometerá, só para si, que melhores dias virão.

Fraquejará apenas na cama, longa insónia de ideias, ao pensar no disparate em que isto se tornou. Pensará nuns e noutros. Suspirará e depois, em sussurro, longe dele acordar alguém, mandará tudo e todos para a puta que os pariu.

12 de setembro de 2010

O circo de Carlos Cruz


Indignado, Carlos Cruz passou a última semana entre jornalistas, dando entrevistas e aparecendo em tudo quanto é órgão de comunicação social do país.

Em todas as aparições, além de jurar a pés juntos a sua inocência, houve um outro denominador comum no discurso: a vitimização por, alegadamente, ter sido sempre ele o escolhido pelos media, de cada vez que era preciso ilustrar uma notícia a propósito do processo Casa Pia.

No entanto, aquilo que Cruz lamenta é também resultado do seu próprio comportamento ao longo dos últimos anos de julgamento e já antes, nas fases de investigação e instrução. O ex-apresentador nunca se inibiu de fazer aparições públicas ou justificar-se nas páginas dos jornais, nos microfones da rádio ou perante as câmaras de televisão. A linguagem e o ritmo da comunicação, que conhecerá como poucos e que agora condena, foram e continuam a ser o seu palco privilegiado.

Carlos Cruz expôs-se como ninguém. Não bastassem os minutos de antena e as páginas impressas, criou um site, suscitou a sua visita, usou-o para chamar a opinião pública à sua causa.

Se é legítima e consciente a estratégia utilizada, é mais criticável que, usando-a, venha agora tentar moralizar os jornalistas, acusando-os de terem feito do caso de pedofilia, o "Caso Carlos Cruz". Além de que, para denunciar a sobre-exposição, expõe-se ainda mais.

Tudo é estranho no dossier Casa Pia. O tempo que demorámos a chegar aqui e, mesmo chegados, os dias que são precisos para se conhecer a versão final e completa do acórdão do colectivo de juízes. Problemas de compatibilidade são, digo eu, um utilizador regular de diferentes processadores de texto, argumentos pouco válidos. A não ser que tenha sido utilizado um software soviético, do tempo da Guerra Fria, a comunicação entre programas resolve-se, hoje em dia, com um simples "save as" no formato correcto.

Estranho não é, contudo, que Carlos Cruz seja o epicentro do circo que ajudou a montar. Bem vistas as coisas, talvez nós, jornalistas, pequemos por excesso, sim. Sedentos de notícias e perante um 'easy going guy', esquecemo-nos do essencial: a justiça condenou-o e não seremos nós a absolve-lo.

9 de setembro de 2010

Ordem de expulsão

Como emigrante (ou imigrante, consoante o ponto de vista) que sou, indignam-me comportamentos indignos como os de Sarkozy e do Governo francês contra os cidadãos de países estrangeiros, alguns até naturalizados.

Sejamos francos: de ciganos, ninguém gosta. E não há grande mal nisso, porque é justo não gostar de quem não gosta de nós. A integração de uma comunidade só acontece, por mais programas e políticas inclusivas, havendo vontade própria. Agora, usar uma minoria como arma de arremesso contra sondagens desfavoráveis e fazer da ciganada um argumento para ganhar votos é até um pouco repugnante.

Em Portugal, o ideal era corrermos, não só com os ciganos, como também com os pretos, os ucranianos, os chineses e os brasileiros. As brasileiras podiam ficar, porque têm fama de acrobatas na cama.

No essencial, somos tão intolerantes quanto grotescos e lidamos mal com a diferença. Do que gostamos é de conservar a linhagem, mas se calhar o nosso avô devia ter pensado nisso antes de ir para Angola fazer um filho à criada que tinha em casa.

Numa coisa somos muito parecidos com os franceses: eles e nós, estúpidos como poucos. O que nos distingue é que, agora, eles têm coragem de fazer aquilo que há tanto tempo desejamos.

Puro sangue, nos dias que correm, só os cavalos e apenas porque crescem em cativeiro. A mistura, a mestiçagem e o regabofe genético fazem parte da condição humana e a história já nos devia ter ensinado que selecções raciais dão sempre mau resultado.

O José Falcão, da SOS Racismo, disse-me certa vez que prefere os xenófobos e os racistas que dão a cara. Também eu. Pior do que um francês atrevido, só um português de falinhas mansas, como aqueles que - e nunca me vou esquecer disto - num inquérito que fiz no oitavo ano, me responderam que "racista? nem pensar", para logo a seguir garantirem que jamais beijariam alguém de outra cor.

7 de setembro de 2010

Comentódremo

O país que somos, português como nós, está já ali, por ventura como em nenhum outro sítio, nas caixas de comentários online.

O mais que as redes sociais nos mostram, para lá da libertinagem a que todos nos propomos (e venha daí a treta da privacidade, "oh Facebook, que isso não se faz"), é o acto margoso de percebermos, valha-nos quem valer, que, espremidos, somos mais secos do que as laranjas que vendem no Mindelo.

Para todas as notícias, o português tem uma opinião. Mesmo que não faça ideia do que é ter opinião, ele comenta. Com a facilidade de escrever uns disparates e clicar no 'enviar', destila o veneno da sua essência e mostra ao mundo o quão merdoso consegue ser.

Revolta-se. Sentado na sua secretária, no escritório onde lhe deram um emprego precário, mal pago e bem descontado, refila, vocifera, enerva-se e indigna-se com os políticos - esses filhos da puta - com os empresários - esses caciques - ou com os jogadores da bola - grandes vaidosos, que só querem é ganhar dinheiro para comprar grandes carros, relógios de diamantes e comer mulheres mais bonitas que a gorda que tenho em casa e que esta noite me vai servir, pela terceira vez esta semana, e ainda a semana só tem três dias, massa com carne. Ao menos rapa esses pelos, caralho!

E quando a notícia não é sobre estes, aqueles ou os outros, revolta-se contra o jornalista que a escreveu: "mas que raio de merda é esta? Estes jornalistas são do pior que temos", diz o vendedor de tintas Robbialac, eleita marca de excelência do Readers Digest.

Danadinhos, andamos mas é todos a ter uma vida fraquinha, fraquinha, sem eira nem beira, de aperto em aperto e de cuspidela em cuspidela, como se nos servisse de muito sermos os maiores da escarreteira. Das 9 às 5 é contra tudo e todos. Depois, uma hora extraordinária bem passada - que ninguém nos vai pagar - quando desligamos o computador - isto hoje é que foi trabalhar - passamos pela sala do chefe e cá vai disto "que se não precisa de mim, senhor director, vou indo, para ver se ainda apanho o comboio das 6 e meia".

Não sei se foi sempre assim, mas algures na nossa existência colectiva virámos estes seres híbridos: aborrecidos e desanimados com a vida, enquanto incapazes de fazer qualquer outra coisa, a não ser comentar. Send.


11 de agosto de 2010

Cancros

Do que eu tenho medo é de acabar assim. Não é a morte que eu temo, só a sua imprevisibilidade e no que toca a inesperado, o cancro é a mais prodigiosa das doenças.

Quando sabemos que o temos, porra, achamos logo que estamos fodidos. A seguir, o bicho dá-nos esperança e, por uns tempos, chegamos a acreditar que o assunto está arrumado, resolvido e guardado na gaveta das más recordações, ao lado das meias velhas que, apesar de já não usarmos, somos incapazes de deitar fora. Finalmente, o tipo volta, às vezes depois de anos em paz dos anjos. Regressa para, implacável, ao jeito de um vilão em filme de série B, dar cabo de nós. Em dias, puf, já fomos.

Custa-me a entender esta maneira de ser, porque, se é para matar, que mate de uma vez. Se é mau demais, se não tem cura, não vale a pena ter esperança, que seja bravo o suficiente para resolver o assunto em meia dúzia de horas. Preferia assim. Poupava-se na esperança, no sofrimento e no erário.

De tanto andar na boca da gente, o cancro tornou-se, no fundo, um de nós. Um tipo cheio de manias, idiossincrasias e obstinações.

Um cancro indeciso, é uma atrapalhação. Ora estamos mal, ora estamos bem, ora um espectáculo, ai que ando de rastos. Foi precisamente assim que se passou com as pessoas que conheci, que tiveram cancro e já nos deixaram desta para melhor.

A minha tia Teresa - acho que nunca a chamei pelo nome próprio - começou com um nódulo inchado: preocupei-me. Operou: fiquei descansado. Descobriram a origem maligna: preocupei-me. Tirou os ovários e o útero: fiquei descansado. Descobriram metástases: preocupei-me. Fez quimioterapia: fiquei descansado. Os valores tumorais voltaram a subir: fiquei preocupado. Fez um tratamento na Alemanha: fiquei descansado. As metástases chegaram aos pulmões: fiquei preocupado. Drenou o líquido: fiquei descansado.

Não sei como é ter um cancro na primeira pessoa, mas sei como é te-lo na terceira. Ao fim de seis anos, quando nos habituámos aos seus altos e baixo e dominamos, longo caminho, toda a linguagem oncológica, eis que os intestinos param, os outros órgãos seguem-lhes o exemplo e começam a entrar em falência. Num ápice, estamos cheios de dores. E até aí, estúpidos - ou humanos, só isso - acreditamos que duplicar a dose de morfina só significa duplicar a dose de morfina.

Então, drogados e anestesiados, na primeira e terceira pessoas, partimos, com e sem dor, encharcados de incredulidade Conjugamos o verbo no plural. Eu, tu, ele, nós. Morremos todos ao mesmo tempo. Morremos um pouco, pelo menos. Até o cancro morre.

Levantamos as mãos ao céu e pedimos a Deus Nosso Senhor que, justo agora, grande cabrão, nos deixe descansar em paz.

13 de julho de 2010

O tudo mais sobre a paixão que o Google não nos diz

E se conseguíssemos mesmo 'googlar' o que alguém sente por nós? Se pudéssemos prever se a nossa mais louca paixão - "ai que eu nunca me senti assim"; "nunca estive tão apaixonado por ninguém" - é correspondida? O que é que fariam se dos génios criativos de Larry Page e Sergey Brin saísse uma forma de nos poupar ao sufoco de ficar minutos, horas, dias intermináveis à espera que o novo "amor da minha vida, agora é que é para sempre, agora é mesmo", nos diga alguma coisa?

Não precisaríamos de nos fazer difíceis, evitaríamos jogar e fingir que não se passa nada. Dormiríamos melhor, estudaríamos e trabalharíamos mais concentrados. Saberíamos, à partida, se o investimento será (seria) ou não recompensado. Pouparíamos vergonhas, embaraços, desilusões, saídas de fininho, dores de cabeça, de dentes e de coração. Caramba, voltaríamos a ser donos e senhores das nossas emoções e esquivar-nos-íamos a expressa-las por aí, ao Deus dará, contra tal "filho(a) da puta, cabrão(a) de merda, camelo(a), dromedário(a), bode, cão, cadela, cavalo e cavala", que embora peixe vai bem na sequência, que insulto é insulto.


Mais: com rigor, terminaríamos uma relação no tempo exacto, no "acabou", porque não haveria dúvida ou esperança que subsistisse ao 'search'. Racionalizaríamos muito mais a vida dos afectos. E, foda-se, daríamos cabo de nós.

Paixão que é paixão tem sofrimento, sangue suor e lágrimas. Agonia, palpitações e variações. Unhas roídas, lápis partidos. Ataques de fúria, gritos, mudez, surdez e até comichão.

A paixão tem de ser trágica: "mas tu não entendes que és único(a)?". Tem de ser dúbia: "o que é queres dizer com isso?". Tem de deixar espaço para a incerteza. Não cabe no 'sinto-me com sorte', porque às vezes é azar.

Uma paixão, daquelas que excitam só de pensar e que tiram a fome para logo depois a devolver como se minguássemos há quinze dias, precisa de fazer suar a palma das mão nervosa e perdida. E precisa de ser escrita em prosa, em verso, quadras pirosas, sonetos horríveis, com rima cruzada, emparelhada, interpelada ou solta, para melhor se levar.

Paixão, 'paixãozona', grande, enorme - ou pequenina, pronto - tem de acabar bem, tem de acabar mal, tem de nunca acabar, para a vida, para o verão, para a tarde, para o tempo que demorar a beber este café: "vá lá, olha para mim, olha, olha, olha. Olá. Credo"

A paixão tem de nos fazer sofrer para, desta vez ou da próxima, nos fazer imensamente felizes, capazes de morrer já aqui, porque, afinal, já estivemos no único lugar onde queríamos estar.

A imagem que deu a ideia foi pescada aqui.


9 de julho de 2010

O Chato*


Como toda a gente, também tem noites más que se seguem, quase sempre, a dias não muito melhores. Nessas noites, ao invés das outras, vai até à varanda. Segura a cerveja numa mão e na outra o cigarro.

Não sendo um grande fumador - o homem não fuma de todo, a não ser nessas noites, digamos, más - preocupa-se pouco com a marca do que leva à boca. Não tem tiques de fumador, não trava e nunca sabe ao certo qual a melhor altura para, num gesto que se esperava seguro, diminuir a cinza do tabaco queimado.

Na sua visão romântica, fumar um cigarro deveria obedecer a todo um ritual. Caramba, não sabendo aquilo a nada, enquanto aceso, deixando a boca a saber a merda, no final, ao menos que seja cerimonial. Mas afinal, até porque já o dissemos, ele não é grande fumador, acaba o cigarro e fica a pensar que o fez demasiado depressa.

Se bem se lembram, contudo, na outra mão - direita, porque fuma com a esquerda - tem a garrafa de cerveja. Não voltará para dentro, deixando sózinha a varanda, a vista limitada pelos prédios altos, e o burburinho das 22 horas, sem acabar os 25 centilitros de água com cevada que, ao contrário de outras coisas, nas quais não é particularmente exigente, tem marca certa e temperatura ideal.

Não o tomem por bêbado. Na realidade, não estivessem estas noites assim tão quentes e teria ido refrescar as ideias só com o cigarro mal fumado.

O problema é que cresceu demasiado depressa e demasiado sozinho. Não se lembra ao certo do que é que andou a fazer até aos dez anos, mas sabe que foi com essa idade que se sentou pela primeira vez a ver um debate na televisão. Azar o seu: muito mais do que os Power Rangers, aquilo é que era animação. Ao virar da sua primeira década de existência deu o passo que o tornaria um chato para o resto da vida.

Por isso, daqui a pouco, quando hesitar entre levar a garrafa para a cozinha ou atira-la para a rua e ver o espectáculo do vidro partido no passeio - Rosseau, não te quero contrariar mas, esta noite, de bom selvagem, este sujeito não vai ter nada - aperceber-se-à que o facto de ter tamanha dificuldade em fazer amigos e, acima de tudo, relacionar-se com pessoas do sexo oposto, é consequência, em grande medida, daquele fatídico frente-a-frente entre Soares e Freitas, em 1986.

Ainda falta um bocado para esse momento. Por enquanto, o pobre coitado - assim curvado, debruçado à procura de um rabo de saias, parece mesmo um infeliz, miserável - só pensa em como é aborrecido viver sozinho no quarto andar de um prédio dos subúrbios da capital, de onde fugiu a tempo de evitar a ordem de despejo dada por um senhorio lógica e justificavelmente enfurecido. E não fosse o apetite voraz da empregada do Pingo Doce - nunca o mundo conheceu uma caixa de supermercado com uma libido em tal estado de sítio - e o tráfego mensal de Internet esgotar-se-ia ao dia dez.

Quando tem as suas noites más, as tais que se seguem a dias não muito bons, é isto que ele faz. Nas outras, as não tão más assim, fica na sala, de comando na mão, absolutamente satisfeito com o que a televisão digital tem para oferecer. Felizmente, isso está prestes a mudar.


* Por favor, não me estou a retratar.

6 de julho de 2010

O Canto da Terra

O senhor meu pai tem um blogue. Como ele gosta muito de plantas, o blogue é quase todo sobre isso. Jardineiros ou não, vejam que vale a pena.

29 de junho de 2010

Tratado sobre relações que são ralações

De uma maneira geral, no mundo ocidental - na concepção que nós, europeus, temos da 'ocidentalidade' - já serão poucos os que se casam por interesse. Ainda assim, continua a haver por aí muita gente presa a relações às quais só sobra a forma, porque estão há muito vazias de conteúdo.

A dada altura, na nossa vida, todos nós já experimentámos manter vivos os laços que nos uniam a alguém, pelo simples facto de acreditarmos - e nessas alturas acreditamos piamente - que é impossível uma coisa tão lógica, como estarmos junto 'daquela' pessoa, deixar de existir. Infelizmente, todos o sabemos - ou aprendemos, por vezes, aos trambolhões - a aritmética das emoções e dos afectos não é uma ciência exacta e nesta coisa dos sentimentos, dois mais dois nem sempre são quatro.

Um amigo e ex-colega contava-me há tempos o seu desaire [na altura] recente. Desabafava a sua pouca sorte e lamentava a falta de ajuda cósmica. Dei-lhe uma palmadinha nas costas e aconselhei-o a seguir em frente. Terá sido de pouco uso o "caga nisso e bebe a cerveja, que gajas há muitas", mas, nestes casos, o que é que de inteligente se pode dizer a quem acha que o mundo (o seu) está a desabar?

Em momentos de confissões sacramentais, fico sempre sem jeito e sem argumentos. Eu, que, de uma maneira geral, tenho opinião formada ou a formar sobre tudo e mais alguma coisa. Nessas ocasiões, olho para o meu interlocutor e julgo simplesmente inútil perder-me em argumentos que tentem convencer aquele sujeito, feito em merda, de que a vida é uma coisa bestial.

Hoje, por e-mail, o tal amigo voltou ao tema. Agora, sonhador, encantado e, de novo, apaixonado. Isso pôs-me a pensar.

Homens e mulheres são diferentes, mas, independentemente dos genitais que o Senhor nos deu, ser pénis ou vagina interessa muito pouco quando aquilo de que se trata é de entregas e devoluções.

O facto de aceitarmos, às vezes com leviandade, partilhar a nossa vida, de mão beijada, com alguém, é, à partida, um risco sujeito a consequências potencialmente desastrosas. A nossa geração, esta dos finais dos anos 70 e princípios da década de 80, tornou demasiado fácil o compromisso, sem se dar ao trabalho de o aprofundar. As relações, as que o chegam a ser, já o são antes de o deverem ser. Hoje eu já te amo, amanhã estarei a viver contigo.

Num ápice, viramos todos imperiais mal tiradas. Dentro do copo, só espuma, sem cerveja. À primeira adversidade, porque não criámos laços sólidos, questionamos tudo e destruímos as leis da física que, cinco minutos antes, tínhamos por universais. Pegamos no saco do lixo, damos um nó, dois e levamos para o contentor. No regresso, estaremos prontos para outra.

Felizmente, restam-nos ainda exemplos felizes, de gente que perdura no tempo. Conheço casais assim. Novos e velhos. Gente feliz e não apenas contente. Homens e mulheres que, com ou sem semelhança de género, não querem saber viver separados.

Uma relação é uma partilha: que não implica que cada parte se anule, que deixa espaço para a individualidade, mas uma partilha que se constrói, aos poucos, devagar. E será sempre uma ralação. Às vezes, estar com alguém, fazer por dar certo, é chato ao ponto de não apetecer mais.

Sou um aprendiz desta coisa que é viver. Aos disparates, conheço-os a todos. Já me anulei, já desprezei e já fui indiferente. Quis estar e arrependi-me profundamente de ter estado. Enganei-me na pessoa e enganei-me a mim próprio. Vivi num permanente estado de ansiedade. Nesse aspecto, tornei-me um homem mais adulto. Pelo menos, inspiro e expiro sem comprometer os batimentos cardíacos.

Escrevi uma vez que os meus pais são o meu modelo. Continuo convencido disso e os seus trinta anos de casamento feliz (complicado, mas feliz) são a prova de que estou certo. A minha mãe tem um feitio difícil e o meu pai é um homem solitário, com poucos amigos. Ele aturou-a e ela fez-lhe companhia. Não me contentarei jamais com menos do que aquilo que eles representam. O seu exemplo será sempre o meu guia. Serei paciente e persistente. Ainda assim, esgotadas todas as possibilidades, preferirei o caminho mais sinuoso, se assim tiver de ser, e tomarei decisões difíceis, se não as puder simplificar.

Mesmo que a tropeçar no meu pé 45, espero nunca me esquecer de como é que se ama alguém: ao meu jeito, no meu defeito e na minha ingenuidade. Por isso, obrigo-me ao dever de querer perceber a mesma verdade - e o mesmo presente - no olhar de quem estiver comigo, seja eu um jovem à beira dos trinta ou um sexagenário com bicos de papagaio.

Esta manhã, ao acordar, olhei para a mulher que amo e pensei o quanto ela é importante na minha vida. O quanto cresci ao lado dela. Naquele fragmento de tempo, revivi um sem número de momentos que partilhámos os dois. Nem todos felizes, muitas discussões e desentendimentos, mas sempre intensos. Os quilómetros que fizemos, a aventura em que nos metemos e as precipitações que protagonizámos. Não sei medir o tamanho do sentimento que nos mantém juntos. Não sei, se o pesássemos, se a balança estaria equilibrada. Talvez não. Não faço ideia onde estaremos daqui por uns meses. Contudo, ao vê-la despenteada, ainda a dormir, não me importei com nada disso. Limitei-me a recordar o seu riso, a sua irreverência, o seu feitio ainda pior que o da minha mãe e o quanto gosto dela quando me faz detesta-la.

Ao meu amigo, agora, não querendo estragar o momento, talvez lhe dissesse que até prova em contrário nos limitamos a viver apenas uma vez, o que, para lá do cliché, é motivo bastante para não perdemos tempo com quem não quer perder tempo connosco. Acrescentaria, porém, que o melhor é não pensar muito no assunto.

Que país é este?

O Pedro Rolo Duarte escreveu sobre as escutas telefónicas que o Correio da Manhã tem vindo a divulgar.

Li o Pedro, li as escutas e pergunto-me: que país é este em que esquemas legais permitem que o conteúdo daquelas horas de gravação possa não ter qualquer implicação?

Que país é este onde, um jornal divulga, como já antes outro o tinha feito, tais provas e haja quem, do topo das suas responsabilidades públicas, continue a afirmar que não houve nada, não se passou nada?

Que país é este, meu Deus - e talvez Ele nos ajude a perceber isto tudo - em que persiste a maior das imoralidades, das impunidades e das indecências?

Quem país é este onde se sabe tudo o que se sabe e o Governo não cai?

O que é que de bom podemos esperar de gente assim?

18 de junho de 2010

Breve nota sobre a profissão

Eu devo gostar mesmo do que faço. Hoje fui ao fim do mundo e voltei. Comi pó durante largas horas, percorri picadas loucas, ia caindo numa ravina, pedi boleia à beira da estrada, andei na caixa aberta de uma carrinha e acabei o dia a comer torresmos regados com cerveja Strella à pressão.

16 de junho de 2010

O projecto do Nuno

Tenho um projecto de vida. Um plano, pelo menos. Quero viver do que escrevo, sem ter de cumprir calendários demasiado rígidos ou temas escolhidos por um editor que, simplesmente, não quer saber das minhas vontades pessoais. Planeio fazer tudo isto no primeiro andar de uma casa, pintada de branco, à beira-mar, na secretária que vou pôr ao pé da janela que há-de ser virada para o oceano. Em cima da mesa terei um candeeiro, muitos papeis, um computador, um lápis e um Moleskine.

A janela desse quarto não terá cortina. Não quero nada a esconder os quatro vidrinhos pelos quais será formada, embora tenha pena de não ter um pedaço de pano a esvoaçar ao ritmo das ondas.

Escreverei crónicas, contarei histórias, talvez até escreva um livro. Interromperei, a espaços, para descansar a vista e esticar as pernas. Caminharei, então, no soalho de madeira e descerei as escadas para o rés-do-chão. Na cozinha quero móveis de cor azul. O frigorífico será Indesit (ainda existem frigoríficos Indesit?). Em cima da mesa, rodeada por quatro bancos, ela e eles também azuis (de um azul claro e luminoso), existirá uma cesta com muita fruta, que comprarei no mercado, religiosamente, uma vez por semana.

A minha casa branca também terá uma sala e um quarto de dormir. Na sala, uma grande poltrona, como um trono. No quarto, o de sempre. Por essa altura, entre a cintura e os joelhos, já não deverei ser dono de mim, apesar disso, à cautela, cuidarei de manter uma caixa de preservativos na gaveta da mesinha de cabeceira.

Serei, nesses tempos, senhor de mim próprio, rei de Terabitia, criador dos sonhos que agora construo e personagem principal de uma história quase contada.

Por enquanto, limito-me a ser apenas protagonista da luta diária que os homens travam uns contra os outros. Quase sempre dominado de incertezas e inquietude. Se fosse marinheiro, afirmar-me-ia num temporal, a caminho do tal porto, junto à casa branca. O pior é que não sou e, assim sendo, tendo em conta o que, em teoria, ainda me falta viver, estou mas é bem fodido.

10 de junho de 2010

Aqui estamos

Este é o país do rei que bateu na mãe. Das caravelas, das naus e do Sebastião que, todos o sabemos, ainda há-de vir para nos salvar, porventura, do estado a que isto chegou. Ai homem que tanto tardas.

Este é o imenso país das fronteiras infinitas, que do Restelo navegou a África, à Ásia e à América e que aí deixou uma língua, uma religião e um jeito estranho de se ser.

Este é, por isso, o país do povo que se deixa roubar. Que baixa a cabeça perante a adversidade, o infortúnio e o fado da existência, escrito, repetido e exausto, nos versos dos poetas, cantados por Amália, que depois de fadista foi lontra, ao lado de Eusébio, que tinha sido futebolista.

Fado, Futebol e Fátima, não por esta ordem, das peregrinações, dos joelhos no chão, da mão no peito, das velas, das procissões e do ‘ai Deus me acuda’, que se for por mim, canso-me antes de lá chegar.

O país de Sócrates de Cavaco e de Alegre. O que mente, o que já mentiu e o que quer mentir, ou não fosse isto uma mentira pegada.

Este país, de inveja feito, cheio de mesquinhice, cusquice e outras ‘ices’, que isto é mas é tudo uma grande chatice. Trabalhar cansa e cansar faz mal. A cunha já tenho, dá-me lá um subsídio.

O país do oitavo para o décimo ano, dos professores que reclamam da avaliação, dos alunos e da ministra que os governa. Aqui o que importa é ter um curso e haver uma ‘nova oportunidade’ de ser doutor, mesmo que em tubagem e sanitários.

Este é o país dos medíocres, dos maus e dos mauzinhos, em que a culpa morre solteira, mas só porque não é gay.

Este é o país dos tipos que escrevem textos como este, o país que não vale a pena, que a selecção vai perder, ficar logo na fase de grupos. Pai, filho, espírito santo.

Este é o país que eu amo. Este país é Portugal.

2 de junho de 2010

Carta

Olá!

Então como vão as coisas por aí? Não conheço o sítio para onde te mudaste, mas têm-me dito que vale a pena. Faz frio, calor? Como é que são os dias? Há dias? E como é que se ocupam? Acredito que tenham muito tempo livre. Tens estado com a avó? Ela está boa? Diz-lhe que tenho saudades das cócegas na barriga e da mousse de chocolate nos anos. Olha, o importante é que estejas feliz e tenho a certeza que sim... caso contrário já terias voltado.

Hoje lembrei-me daquela vez em que a chuva tentou estragar o nosso piquenique e tu, com aquela paciência que tinhas para as coisas vulgares, improvisaste uma floresta no escritório. O sol, no candeeiro; o pano verde, nas vezes da erva; as formigas na parede. Ainda assim, consegui ficar doente.

Aliás, tu sabes que eu tenho uma tendência para estragar as melhores intenções de toda a gente. O febrão no circo Chen? A Expo de Sevilha? E a cama na Bendada, dias antes da jarra partida em Madrid?

Fiquei muito contente por ter chegado a tempo de te desejar boa viagem, "vai com Deus". Estava imensa gente. És mesmo popular. Pudera! Passaste a vida inteira a viver a vida dos outros e, às vezes, até te esqueceste da tua. Ou talvez não. Talvez tenha sido nos outros, naqueles a quem tanto bem fizeste, que encontraste a razão do teu viver.

Acho que foi isso que tanta gente, naqueles bancos corridos, ao som melodioso de canções bonitas, te quis dizer, mesmo antes de te ires embora.

O que ainda não percebi é porque é que tiveste de sair tão de repente. Estava mesmo para te ligar a saber de ti, dessa chatice que te levou de mim.

A Dulce fica bem. Cuidamos dela. Cuidaremos de nós, também. Não te preocupes: jamais seguiremos caminhos que nos levem para longe da casa de partida, à qual, inevitavelmente, voltaremos sempre que precisarmos de recuperar o fôlego.

Em todo o caso, quero que saibas que a tua morte provoca em mim um imenso embaraço.

Falamos depois.


Nuno


28 de maio de 2010

Tenho imensas coisas para escrever, mas não o fazer, simplesmente, porque está tanto vento nesta terra (tanto, de TANTO) que a minha casa deve cair a qualquer momento. Como estou cá dentro, percebem que não vale a pena perder tempo em narrativas, certo?

15 de maio de 2010

Não me lixem a vida

Tivesse sido um acaso, e a coincidência seria perfeita. Acontece que a escolha do Governo para anunciar, esta semana, o aumento - mais do que esperado - das medidas de combate ao sempre presente défice foi tudo menos inocente.

Toda a gente sabe que os portugueses passam a maior parte do ano a dormir, mas não há semana mais perfeita para aprovar e fazer passar medidas que vão directamente aos nossos bolsos, do que aquela que se segue à consagração do Benfica como campeão nacional e na mesma altura em que Bento XVI - mesmo sendo Bento XVI o dono daquela cara que se vê - por cá andava.

Os noticiários televisivos e os jornais tiverem de dividir atenções entre tanto acontecimento. Ontem, no final de um dos telejornais na noite, o pivot dizia, com todo o direito, que esta tinha sido uma semana atípica em termos de produção noticiosa. Pois sim, verdade.

Quem me conhece mais a fundo, no sentido figurado da profundidade, sabe das minhas limitações académicas (ah, Economia do 2º ano) no que a assuntos económicos diz respeito. Ainda assim, não é preciso ser um grande especialista na matéria para perceber que um aumento da receita, ainda que o temporário passe a definitivo, não resolve o problema estrutural que está do lado da despesa.

Reconheça-se, contudo, a inteligência da escolha por um aumento ligeiro da taxa de IRS, (além do IVA e do IRC) ao invés do congelamento do décimo terceiro mês. Os resultados, mais imediatos e o peso, mais discreto. Tão discreto que, facilmente, a medida conjuntural passará a estrutural, sem que ninguém se lembre disso. Com o subsídio de Natal seria diferente. Dificilmente poderia ficar congelado por mais de dois anos, sem causar uma celeuma e um ruído insuportáveis.

A questão é que aumentar a receita, a fórmula usada repetidamente e que, impopular, sempre acaba por ser mais pacífica do que cortar a sério na despesa, limita-se a chutar o problema para a frente. O Estado tem de ser mais magro. Tem de cortar nas prestações sociais. Tem de passar para os privados a tutela parcial de sectores - entre eles, precisamente, a protecção social - tradicionalmente debaixo da sua alçada. Terá de faze-lo, pelo menos, até ao dia em que conseguir convencer os portugueses a ter mais filhos. Em que dê a quem cá mora condições para que as famílias aumentem, contribuindo, desta feita, para o aumento, a médio prazo, da população activa.

Somos um país com cada vez menos gente a trabalhar. Independentemente da curva ascendente do desempro, a verdade é que Portugal tem cada vez menos contribuintes e mais beneficiários e isso implica - implicará - consequências, mesmo que numa situação de contas públicas saudáveis e crescimento económico digno de registo. É aritmética simples (e ainda bem, porque essa cadeira eu fiz sem problemas). Se há mais gente a receber e menos a pagar, só há duas soluções: ou quem paga, paga mais, ou quem recebe, recebe menos.

Não se enganem, sou um homem de esquerda. Defendo um Estado presente e interventivo. O que eu quero é um país inteligente, que proteja quem precisa de ser protegido, mas que não hipoteque o futuro. É que, nessa altura, os que agora vivem sob a sua protecção, já estarão mortos e quem se vai lixar sou eu.

14 de maio de 2010

Martinho

Martinho é uma espécie de historiador. Apesar de não ser natural da ilha onde agora vive, por lá se fixou há muitos anos e conhece de cor as lembranças que cada rua, cada travessa e cada porta conservam. Ou então não. Em todo o caso, foi assim que me convenceu.

Martinho, que presumo estar no esplendor dos 60 (tenho os sexagenários em grande conta), é um personagem, só por si. Quando lhe bati à porta, com 24 horas de atraso, acolheu-me como se fossemos amigos de longa data. Decretou, quase de imediato, que, pela similaridade dos nossos nomes – não tão iguais assim, perceba-se – passaríamos a ser primos. Não fosse a sua casa um caos completo, como estava prestes a descobrir, e teria desconfiado dele.

O lugar onde vivemos diz muito sobre quem somos. A loucura daquele primeiro andar – ao qual se chega por uma escada estreita e, também ela, atabalhoada – tranquilizou-me. Eis um homem coerente.

No escritório, onde os livros roubaram, aposto que há muito, o lugar ao chão, as estantes esforçam-se hold and still para sobreviverem ao excesso de carga a que são sujeitas.

Na sala, os sofás, cobertos de uso, viram-se para o piano. A visita não acabará sem uma morna.

Conversa solta, desprendida e desconexa. Despropositada. Eis um homem coerente. A cidade, as pessoas da cidade e a cidade das pessoas. De Adriano, claro (era sobre ele que ali estava). E do Manuel, da Carlota, da Joaquina, do Serôdio e de todos os nomes que conseguirem, comigo, inventar. Martinho tem, sobre qualquer um de vocês, uma memória.

Duas horas depois, Sagres Mini para elevar o espírito, o piano, finalmente o piano. Desafinado. Um desafino que é um desatino. B’Leza em notas soltas, a uma mão, sem acordes por decreto. Não há compasso. Que homem tão coerente.

Saí da casa, na segunda rua de Chã de Alecrim, às seis da tarde. Podia ter saído às 10 da noite. Podia ainda lá estar hoje. Caminhei até à pracinha do bairro, à procura de um táxi. Quis acompanhar-me e pedi-lhe que não o fizesse. Martinho, na sua casa, é tudo o que quer e quiser ser. Nós somos o que formos, onde tivermos de ser. Na circunstância – eis um homem coerente – isso bastava.


10 de abril de 2010

Outras marchas

"Os dois lados da Revolta" - Um trabalho sobre as duas facções do mais recente incidente político na Guiné-Bissau.

"Chegou a hora da decisão" - A menos de um mês das eleições, o perfil dos dois candidatos a Primeiro-Ministro no Reino Unido.

"Morreu o homem que sonhava com um país de brancos" - A reportagem da morte do líder político racista sul-africano, Terre'Blanche.


Aqui ao lado, no Marcha dos Pinguins - Trabalho.

9 de abril de 2010

Pão com marmelada

Do seu tempo de criança recorda-se, em especial, dos Verões que, embora passados sempre no mesmo sítio, nunca se repetiram.

Ao chegar Agosto, eis as férias em família. Do último dia de Julho, traziam as malas feitas, o Fiat, carregado para lá do razoável (a mala e dois dos três lugares do banco traseiro), e o eco dos gritos de uma inconsequente discussão entre o pai e a mãe. Ele atarefado a inventar espaço para tudo o que Ela queria levar: "não vá faltar-nos alguma coisa".

A manhã começava cedo. Ainda a aurora estava longe, já a D. Carmelinda andava pela cozinha, com a sua camisa de noite florida, a panar os bifes que, depois de estarem dentro do pão, que o Sr. Carlos iria comprar logo às seis, assim abrisse a padaria, seriam o almoço da longa viagem. Impreterivelmente, Pedro era o último a acordar. Os pais poupavam-no à madrugada e poupavam-se à sua presença ensonada

Seriam sete, se já não fossem oito e meia. Motor nervoso, válvula do ar fechada. Quatrocentos quilómetros - "ainda falta muito? quantos quilómetros faltam?" - ou nem tanto, de Nacional. A serra e o vale. Um caminho apertado, nem sempre com asfalto. As bermas, no inverno, quando lá iam pelo Natal, verdes, às vezes brancas. No esplendor da "melhor estação do ano", castanhas, a cor do calor intenso, que não deixa respirar. Sufocante, como o aperto no peito, à última curva, antes da recta, 300 metros até ao início dos casebres. A periferia, mesmo nas aldeias, nunca é tão bonita como o centro. Dispersa e vulgar.

Pedro era o primeiro a sair do carro. "Pai, já vou". A corrida até ao tanque comunitário, a ver se água continuava verde. "Sim, continua". Naquele tanque, de águas paradas - numa altura em que os meninos o eram, como se os germes e os vermes de então não fossem mais do que personagens do Grande Livro dos Contos, essa narrativa sem páginas, a não ser as inscritas na memória da avó Maria sabia de cor - toda a aldeia, a de Agosto, de gentes ocasionais, se banhava.

Os Verões do seu tempo de criança não tinham consolas, televisão por cabo - televisão, sequer - ou Internet. Só calções, sapatilhas, joelhos magoados e pernas arranhadas pelos espinhos dos arbustos onde apanhava as amoras que comia, quentes, até ficar com uma dor de barriga que passava quando fazia cocó na horta do Sr. Casemiro, sem que ele imaginasse.

Agosto desses anos teve sempre demandas sagradas, do sol que nasce ao sol que se põe. "Mãe, posso ir?". E a mãe dizia que "sim, mas leva um boné". E levava também uma mochila com o lanche, que comia a meio da manhã. Duas fatias de pão caseiro, com marmelada e manteiga, um sumo, uma banana e era uma festa.

Voltava para casa ao meio-dia e meia, ao assobio combinado com o pai. Voltou sempre, todos os anos, durante muitos anos. Voltei hoje, já sozinho, para percorrer as ruas vazias, de uma terra que já não é de ninguém, mas que continua a ser a minha.

30 de março de 2010

Sobre os comentários nos jornais online

A quantidade de disparates que aparecem nos comentários que os leitores deixam nos jornais online são a prova de que o povo nunca tem nada de importante para dizer. Aliás, se assim não fosse, os boletins de voto tinham várias linhas e não apenas pequenos quadrados, onde se cabe uma cruzinha.

25 de março de 2010

De como me irritam os portugueses (categoria na qual me incluo)

O problema é o sentimento de impunidade. Quantos portugueses acham que José Sócrates e os seus cachicos se imiscuíram nos critérios editoriais de órgãos de comunicação social? Muitos. Quantos portugueses acreditam que da Comissão de Inquérito, criada no Parlamento, sairão resultados conclusivos? Muito poucos.

A dinâmica de "deixa andar" com que a classe política gere a agenda dos escândalos, que se abatem sobre os seus mais destacados dirigentes, é gregoriante. O país está cheio de figuras a quem a justiça não chega.

O mais revoltante não é fulano de tal ser ou ter sido, em dado momento, corrupto, indecoroso, pouco digno. Todas as famílias têm as suas ovelhas negras. Profundamente inquietante é nós sabermos, à partida, que "não vai dar em nada", que uma suspeita não passará disso mesmo. E, pior, estamo-nos a borrifar.

A nossa passividade, a nossa incapacidade de sair às ruas, de exigir responsabilidades, de fazer questão que, aqueles que nos dirigem, sob os quais existem suspeitas (suspeitas deveriam bastar), saiam pela porta pequena, está a dar cabo do conceito de país sobre o qual nos falam os livros de história (qualquer dia só nos compêndios seremos grandes).

Não há ninguém - muitas vozes a uma só - capaz de cumprir o desígnio de, cara a cara, dizer aos medíocres que povoam o mais alto espaço político: "se queres fo%&# alguma coisa, arranja uma charolesa e vai-lhe por trás, mas deixa o meu país sossegado!"

Se me irritam os governantes, os governados irritam-me muito mais.

18 de março de 2010

Até já

Talvez seja o meu destino: andar de casa às costas, sem ganhar raízes em nenhum sítio, a deixar sementes espalhadas por uma série deles (e não falo de filhos).

Se calhar, o melhor é começar a deixar as malas à mão, com um kit de sobrevivência lá dentro. Não há nada como estar sempre pronto a partir.

Cheguei à Praia, aluguei casa, comprei coisas, fui assaltado, bebi muita cerveja e... pronto, é isto.

Agora, arrumo tudo, meto num barco, apanho o avião e aterro numa nova paragem. Pelo menos, desta vez, não vou precisar de pedir novo número de contribuinte.

A partir de dia 1, o Mindelo será a minha cidade. Tenho um quarto a mais. Aceitam-se reservas.

16 de março de 2010

Uma análise ou um murro nas trombas

Depois de um dia cansativo, chegado a casa, para lá das dez da noite, sentei-me no sofá a comer noodles e a ver o Pontos de Vista, na RTPN.

A meio do debate, enquanto os representantes dos partidos dissecavam a Lei da Rolha - não sei qual é o espanto, ou não existisse, desde há muito, em todos os partidos parlamentares, aquela coisa chamada de disciplina partidária - diz-me a mulher com quem partilho os meus dias, até então sentada e enfastiada, a um metro de distância: "no teu país passam a vida a debater tudo e mais alguma coisa, arre, que dá asco".

Bem, talvez não tenha sido exactamente assim, mas no essencial foi isto. Precisei apenas de 20 segundos para engolir o orgulho patriótico e lhe dar razão. De facto, no meu país, toda a gente debate sobre todas as coisas. Debate-se muito. Só.

Não faço ideia - e não me vou dar ao trabalho de contar - quantos programas de análise política, desportiva, económica e social é que existem nas televisões portuguesas. São muitos, de certeza. Fazer informação de baixo custo tem este preço. A dada altura, todos os canais generalistas acharam que era um imperativo moral ter um canal de informação. À falta de orçamento, usam do método fácil: mesas redondas, entrevistas, gente em estúdio a falar durante uma hora, quase sempre sobre os mesmo temas - Portugal nem sequer é um país onde aconteçam coisas muito interessantes - só que em horários e sob nomes diferentes.

Enfim, no país onde até o Pacheco Pereira tem um programa só dele, tudo é possível, claro. Mas soubessemos nós canalizar tanta capacidade de análise para acções concretas e teríamos um país bem melhor. Ou isso ou murros, que cenas de pancadaria também ficam bem em qualquer democracia.

12 de março de 2010

Estive a (re)ver fotografias de Luanda. Aquela cidade é mesmo um esgoto. Vivia no meio da merda... e era tão bom.

5 de março de 2010

Integração ao som do berimbau

O som do berimbau ouve-se ao longe. Ultrapassado o portão da Escola Técnica, não é preciso andar muito, para lá do portão verde da Escola Técnica, para que o batuque ecoe pelos corredores quase vazios. Por baixo de um telheiro, onde o calor do dia ainda se sente, um grupo de crianças repete, ao compasso da música, os passos da dança que o professor ensina. É uma aula de capoeira. Gamal é o professor.

De cabelo trançado, calças largas e t-shirt com as letras da associação cultural de que é o principal mentor, Gamal passa aos mais novos os ensinamentos que trouxe do Brasil, já lá vão 13 anos. Recorda-se do tempo em que atravessou o Atlântico e descobriu mais sobre aquela que é hoje a sua grande paixão. “Fui para o Brasil estudar Educação Física e mesmo antes de começarem as aulas na universidade, inscrevi-me na capoeira. Nas primeiras férias trouxe uns vídeos e aquilo que, entretanto, aprendera”. Estavam deitadas à terra as primeiras sementes.

Em 2000, concluídos os escudos, Gamal regressou definitivamente ao arquipélago. Professor, começou a dar aulas. Às modalidades tradicionais – futebol, basquetebol, atletismo – juntou uma outra, a capoeira. O resultado foi surpreendente. “Como todos estavam no mesmo nível, gerou-se uma fenómeno interessante, em que alunos que nunca se destacaram, revelaram-se óptimas surpresas”.

O segredo do sucesso da dança, que também é luta, sem contacto, pode estar precisamente no inesperado que se gera. “A capoeira, é uma modalidade que consegue envolver os aspectos da expressão e consciência corporal, da formação do esquema motor e da disciplina mental”, resume o ‘mestre’.

O projecto actual promove a integração das crianças e jovens que nele participam. “É a ocupação saudável dos tempos livres”, enquanto alternativa à violência e criminalidade de que tanto se fala.

Ao todo, são cerca de 400 alunos, em vários bairros da cidade da Praia e noutros pontos da ilha de Santiago. Os números do Centro Cultural Humaitá impressionam: além da modalidade mãe, 50 jovens frequentam uma orquestra de percussão e 300 estão envolvidos nas aulas de iniciação à dança. Já são muitas centenas, mas, para um público numa idade em que a afirmação pessoal é o mais importante, todas as alternativas são poucas. “Faltam ginásios públicos, placas desportivas, pistas de skate e de patins. É preciso apoiar as associações juvenis e eclesiásticas”, considera Gamal. “Com apoio institucional pode ser feito muito mais”.

Falta de formação académica, desemprego, inexistência de um projecto de vida. O diagnóstico há muito que está feito. Às novas gerações cabo-verdianas faltam, muitas vezes, perspectivas de futuro. Nada que intimide um dos pioneiros da capoeira no pais crioulo: “Cabo verde é pequeno e em 10, 20 anos pode-se resolver o problema da juventude. Há que ter vontade e disponibilizar meios”, acredita. Se depender do professor, a chave é esta: “ocupar o tempo livre com algo de positivo, onde as pessoas canalizem as suas energias”.

Exemplos de sucesso

Foi isso que fez Juca. Com 24 anos, tem 12 de entrega à modalidade. Via os “muleques” na televisão. Agora, alem de continuar a dançar, é também monitor. “Os meus pais não tinham muitas possibilidades, por isso não pude estudar muito. Queria ter alguma coisa com que ocupar os meus tempos livres. A capoeira foi a minha oportunidade”, reconhece.

Oportunidade é também a palavra que Ady usa para justificar a entrega à luta sem toque. “Coloca os jovens a fazer outra coisa que não a consumir drogas ou a beber álcool”. São sete anos de experiência, em menos de 25 vividos.

O entusiasmo não tem fronteiras de género. Liliane e Maily também fazem parte do movimento. “Desenvolve o eu da pessoa”, defende a primeira. “É uma libertação”, acrescenta a segunda. Têm 20 anos, e, se Liliane acredita que “quando os jovens entram na actividade, já só pensam nisso”, Maily prefere alertar o governo para que “se preocupe com o povo em vez de gastar o dinheiro noutras coisas”.

Uma luta de paz

Não há contacto na capoeira, o que “impõe respeito”, julga Gamal. “Tens de te preocupar com o colega com quem estás a lutar. Temos de ter auto-controlo suficiente. É assim na vida”. A rotatividade de funções – “ora cantas, ora tocas, ora lutas” – ensina que “há uma hora em que temos de servir o outro, outra em que temos de ser servidos”.

“Há momentos em que tu tens de ceder, em que tu tens de fugir. Na vida real precisamos de aprender a ceder. Temos de saber quais as vontades e os deveres de cada um e construir um equilíbrio a partir daí”.


publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 431, de 3 de Março de 2010
fotografia de André Amaral

23 de fevereiro de 2010

A intrigante Sofia

Interessam-me as pequenas histórias. Conheci a Sofia em Luanda. Angolana, passou a maior parte dos 20 e poucos anos que tem de vida em Lisboa. Estudou análises clínicas e, concluída a licenciatura, tirou um mestrado em microbiologia. Quando me foi apresentada estava a meio de um casting para apresentadora de um programa de televisão.

Pelos vistos, não serviu para o posto e acabou como repórter no magazine que, na altura, eu coordenava. De repente, além de analista formada e especializada, virou jornalista do jet7.

Apesar de ter um pai, digamos, endinheirado, a Sofia vivia num anexo, com tecto de chapa, onde divida o espaço com os parcos móveis que conseguiu comprar (um colchão, um fogão, um frigorífico e uma televisão). Para tomar banho, enchia uma mochila com toalha e roupa, saia de casa, andava dez metros e usava o exíguo poliban a que tinha acesso.

Contou-me que gostava de dançar - e conferi que dançava bem. Aliás, foi parar a Angola à conta de um convite para coreografar um bando de insípidos actores, numa telenovela de produção nacional. "Doce Pitanga", uma espécie de "Morangos com Açúcar", só que ainda pior.

O que a Sofia nunca me chegou a contar foi o verdadeiro motivo que a levou a deixar tudo para trás - "uma boa vida", assumia - em troco de nada. Uma casa com baratas, um emprego mal pago e uma solidão quase profana.

Não ficámos amigos, não mantemos contacto e, de certa forma, lamento que assim seja. A Sofia ficou, para mim, uma intriga. Admiro-a, porém. Acho que uma pessoa corajosa deve ser como ela é.

Publicidade porque...

"Juntar artistas consagrados e talentos emergentes, fazê-los tocar Chopin, Schumann, mas também compositores de outras épocas e coordenadas, para um público de todas as idades: é o conceito da segunda edição dos Concertos à Conversa, no CCB, arquitectados por Miguel Henriques e em que participam os pianistas Jorge Moyano, Iryna Brazhnik e Inês Andrade, entre muitos outros músicos e ensembles. Na Outra Margem, antevemos o que prometem ser estes cinco concertos, entre 7 de Março e 11 de Abril.
Para ouvir esta 4ª feira, às 18h05, em 90.4 fm ou em www.radioeuropa.fm, e a partir de 5ª feira em podcast".


... a primeira da vossa esquerda é a minha prima Inês.Tivesse eu o talento dela e não precisava de ser jornalista.

20 de fevereiro de 2010

Explicação aos leitores

Os dois últimos posts publicados neste blog foram alvo de más interpretações e comentários desagradáveis - e ameaçadores - por parte de alguns leitores. Se o primeiro era um texto irónico, relativo ao facto de ter sido assaltado nas ruas da cidade da Praia, por um individuo que levou apenas uma carteira com 10 escudos e a minha carta de condução, o segundo era uma reacção a um desses comentários, que me pareceu (e parece) descabido e sem qualquer fundamento.

No meu segundo texto fiz aquilo que não se deve fazer: Dar valor a um comentário que poderia, simplesmente, ter sido apagado. A autora do dito comentário não percebeu aquilo que eu tentei dizer a priori: não se tratava, Maria, de uma desvalorização do crioulo, antes uma forma humorística de encarar o assalto de que fui vítima.

Todos os cabo-verdianos devem ter orgulho na sua língua materna, mas esse orgulho não pode servir para encobrir uma realidade que é assumida, inclusive, por alguns agentes políticos: há um problema com o ensino e aprendizagem do português. Há um problema em Cabo Verde, na Guiné, em Moçambique, em São Tomé, em Timor Leste e até, imagine-se, em Portugal. Objectivamente, o Brasil é hoje o único e verdadeiro motor da lusofonia no mundo.

Se há coisa que abomino (a palavra é destacada propositadamente) é o preconceito de qualquer espécie. O fundamentalismo - e a falta de disponibilidade para discutir qualquer assunto, sem ameaças e com abertura de espírito - é também uma forma de preconceito.

O meu avô brasileiro, a minha avó e o meu pai angolanos, a minha mãe portuguesa e a minha mulher cabo-verdiana ensinaram-me que o mundo não acaba no fim da rua. Agora, para se conversar, serão sempre precisos dois.

Que me desculpem os leitores que contribuíram de forma construtiva para o debate aqui iniciado. Os textos foram retirados e o blog segue já a seguir.

Abraço a todos.

15 de fevereiro de 2010

Breve constatação

O facto de toda a polémica em torno do Face Oculta ter começado num sucateiro diz muito sobre o estado do país.

13 de fevereiro de 2010

"A lusofonia está a avançar"

Para quem se interessa pelas coisas da lusofonia, fica aqui o excerto de uma entrevista que fiz a Anacoreta Correia, secretário-geral da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa. A entrevista completa pode ser lida aqui.

O espaço da lusofonia resume-se a instituições com a UCCLA e tantas outras, ou é sentido pela população?

Eu julgo que a lusofonia progrediu muito nos últimos anos. Por exemplo, este mês estive no Brasil e o espaço que os noticiários dedicam a países africanos, em horário nobre, é hoje muito maior. Este interesse é inteiramente novo.
Quando começamos a ver o que representa o território dos países - e aí o Brasil é o gigante - nas áreas de territórios agrícolas mundiais, apercebemo-nos que se trata de qualquer coisa de notável.
Quando nos apercebemos da real extensão da costa dos países lusófonos - e aí Cabo Verde conta muito - numa altura em que se acredita que a resolução de muitos problemas do mundo actual pode estar no mar, vemos que temos uma brutalidade, milhares de quilómetros, de Zona Económica Exclusiva.
Finalmente, se pensarmos que, entre as quatro potências emergentes, a única que representa os valores ocidentais, a única que é uma democracia plena, é o Brasil e que o Brasil fala português, é porque temos uma palavra a dizer.
A lusofonia é hoje uma realidade muito maior do que aquilo que podíamos supor há vinte anos. Estamos a avançar.
Repare no interesse que há em Portugal pela gastronomia africana, pela cachupa ou por um caril com coco, fortemente condimentado [prato de Moçambique]. Note a implementação do futebol português nos países africanos.
É claro que gostaríamos de ver coisas mais concretas. Talvez aí, despolitizando um pouco o contexto da CPLP, seja possível a obtenção de mais resultados. Eu julgo que a hora é das pessoas se concentrarem em objectivos. Quem pretende resolver tudo, ao mesmo tempo e com toda a gente, falha.

A língua portuguesa é o principal elemento unificador dos países e das cidades lusófonas. Contudo, em Cabo Verde, há um número significativo de pessoas que não fala, ou fala mal o português, tal como em Moçambique. Em Timor, a percentagem de falantes de língua portuguesa é residual. O que é que está errado?
A língua é o principal factor de união entre os países e dentro dos países. Eu, em meados dos anos 80, estive em Moçambique, numa missão partidária. Lembro-me perfeitamente que o presidente Samora Machel dizia que o português era o que mantinha a integridade da Nação moçambicana.
Em Timor existe um problema, especialmente na geração dos 25 aos 40 anos, que foi educada pela Indonésia. Mas a população gosta muito do português.
A grande surpresa, na expansão do português, é Angola. Sobretudo, pela qualidade da língua que se fala em Angola e isso tem o seu reflexo, nomeadamente na literatura.
Eu estive na Lunda, na fronteira leste de Angola e as pessoas de lá disseram-me que o português extrapolou as fronteiras e fala-se para lá do território angolano. E dizem-me que na Namíbia dez por cento da população percebe o mínimo do português.
Veja, finalmente, o que se passa na América do Sul, onde qualquer latino-americano fala hoje, ou pelo menos ‘arranha', o ‘portunhol'.

12 de fevereiro de 2010

O problema do Pacheco Pereira é que queria ser jornalista e ninguém o deixou, não é? Aquilo só pode ser frustração.

5 de fevereiro de 2010

O mundo na ponta dos dedos

Os pequenos pontos, em relevo, organizados numa ordem só perceptível ao toque, são um nada cheio de histórias, escritas assim para quem lê o mundo com a ponta dos dedos. Estivessem as páginas do jornal em Braille e os protagonistas desta reportagem não precisariam que alguém lhes lesse o texto em voz alta. Fomos à escola de cegos.

Ainda antes da cozinha, o cheiro, entretanto espalhado pelos corredores, denuncia que a aula já teve início. Desde que a professora Alzira chegou, e já lá vão alguns meses, que é assim. Ao final do dia, terminadas as aulas, a mesa rectangular – a grande mesa rectangular – enche-se de formandos que aproveitam os cabelos brancos de quem anda há muito entre tachos e panelas, para aumentar conhecimentos. E não se pense que um arroz de cavala ‘comme il faut’ é coisa pouca. Para aqueles a quem as cores do mundo se representam em formas, odores, sons e paladares, saber como não deixar queimar o refogado pode fazer toda a diferença.

A aula, já se percebeu, é de culinária. O projecto, pioneiro no país, é a mais recente aposta da Associação dos Deficientes Visuais de Cabo Verde, uma instituição, fundada em 1993, que tem na escola de cegos a sua principal valência.

A escola chama-se Manuel Júlio e a escolha do nome terá sido tudo, menos aleatória. Manuel Júlio é o pioneiro do ensino de cegos no arquipélago. Primeiro, na sua casa, depois, em salas emprestadas e, desde 2003, no código postal 831 da Achada de São Filipe, cidade da Praia, o sociólogo, também invisual, dedica-se de corpo e alma – dize-lo, não é um exagero – ao ensino especial e à capacitação dos invisuais, tendo em vista a entrada na vida activa.

A sua história tem sido de “um grande desafio”, nas palavras do próprio. Começou “sozinho, em casa, com dois alunos”. A recordação leva-nos até 1977, ano em que regressa a Cabo Verde, depois de uma passagem por Angola e Portugal. O tempo na terra dos ‘palancas negras’ terá sido determinante no percurso que acabou por seguir. “Aprendi Braille em Angola. Com a independência, os meus professores regressaram a Portugal e insistiram muito para que eu continuasse os estudos”, recorda. Após alguma insistência, lá acedeu ao pedido e, passados poucos meses, estava em Lisboa, para só de lá sair dois anos mais tarde, de regresso à Praia.

No entretanto, aprendeu várias profissões. “Aprendi a trabalhar em tapetes, tirei o curso de marceneiro, de recepcionista e de telefonista”. A formação valeu-lhe um emprego no ministério das Obras Públicas. Mas não deixou de estudar. “Uma disciplina de cada vez, aos poucos”.

Fazendo uso dos seus próprios recursos financeiros, continuou a ensinar, em casa, até 1988, quando, “por insistência dos colegas e até do ministro” de então, aceita voltar à capital portuguesa, onde se formou em sociologia.

Numa vida, já se percebeu, feita de partidas e chegadas regressa às ilhas em 1993. À data, uma decisão é tomada: “Achei que não valeria a pena sofrer sozinho por uma coisa que não me dizia respeito só a mim”. O governo mostrou-se disponível para ajudar e, da sala de casa à sala de aula emprestada foi um curto passo. A boa-vontade de muitos, acumulada ao longo de uma década, resultou no edifício onde, agora, meia centena de alunos caminham com a confiança de quem, não vendo senão escuridão, conhece bem o chão que pisa.

Os primeiros passos

Uma dessas alunas é Dercileila. Os óculos escuros, massa vermelha, tapam-lhe mais do que os olhos. Servem para esconder a timidez, denunciada pelos gestos envergonhados e riso nervoso. Há quatro anos, vinda de São Nicolau, chegou para estudar. Aprende Braille – “é um bocado difícil” – e com ele persegue o sonho de “ter uma vida melhor”. Quer “um emprego e uma família”. O desejo de uma vida comum.

A aprendizagem do Braille é o primeiro passo na formação académica de um deficiente visual. O domínio do sistema de leitura e escrita baseado no tacto é fundamental para o acesso à informação. Por isso se compreende a aposta que a escola da ADVIC faz no seu ensino.

A falta de livros, adaptados às necessidades dos alunos cegos, é um problema. O país não produz obras em Braille e o acervo que existe na pequena biblioteca da associação vem de fora, com todos os custos que isso representa. Por outro lado, um caderno, com folhas próprias para o tipo de escrita, ronda os 2500 escudos.

Diz-se que um cego experiente pode ler duzentas palavras por minuto. “O contacto com a leitura e a escrita contribui para o desenvolvimento intelectual de qualquer ser humano”. Quem o diz é Lurdes Borges. Antes de estar reformada, era professora na escola. A aposentação não a tirou da sala de aula, onde continua a passar as tardes, agora como voluntária.

Reconhecendo a importância de dominar o Braille, Lurdes defende também a formação profissional. “Uma formação profissional é fundamental. Só a formação académica não é suficiente”, considera, numa opinião que é partilhada por Manuel Júlio que, por isso, tem apostado em cursos de informática, música e artesanato.

Um emprego

O maior sonho de Jenice é ser telefonista. Também quer “uma família”, mas a ambição de um emprego é tudo para a jovem de 22 anos, há nove na escola de cegos.

O seu percurso tem sido feito de sobressaltos. Apesar de, nem sempre, os estudos lhe correrem de feição – “abandonei a escola muitas vezes” – reconhece a importância das aulas. “Se nós não temos estas escolas, ficamos com muitos problemas”, acredita. “É esta escola que nos dá um emprego”.

Um trabalho para quem termina os estudos é um desafio. De entre todos os alunos que já passaram pela escola, Manuel Júlio sabe que existem 15 a trabalhar. “Estamos a bater em todas as portas, a tentar arranjar novas ofertas”, garante.

“O objectivo é que cada deficiente visual seja auto-sustentável e tenha auto-domínio, para, assim, fazer a sua vida própria e ser independente”.

Para isso, a escola garante um acompanhamento. Do total de alunos, ligados à instituição, muitos frequentam, entretanto, o ensino regular. Outros chegaram à universidade. “Tentamos sempre estar próximos dos alunos, acompanhar a evolução e ver onde estão as falhas, para que as coisas corram da melhor forma possível”, afirma Marciano Monteiro, director do estabelecimento de ensino.

A escola procura “criar o gosto para que todos possam aproveitar aquilo que a associação tem para lhes oferecer”. Contudo, “a tarefa não é fácil”, suspira.

Os cinquenta invisuais apoiados actualmente pela ADVIC representam apenas uma pequena gota da realidade, bem mais expressiva. Estima-se que existam 2500 cegos em Cabo Verde e não é preciso grande aritmética para perceber que somente dois a três por cento da população deficiente visual tem acesso ao ensino especializado. Quando assim é, a entrada no mercado laboral fica, naturalmente, mais difícil.

O estigma e as barreiras

Antes de se mudarem para o quarto onde ainda moram estavam a duas horas da estrada mais próxima, num caminho só acessível a pé. Demasiado longe e demasiado imprevisível. Um dia, Manuel Júlio teve conhecimento da história da família. Subiu o trilho até Longadeira – ainda longe e distante – e encontrou uma casa com dez pessoas: mãe e nove filhos, quatro invisuais. Trouxe-os consigo.

Sem recursos, com uma deficiência, os quatro irmãos – dois rapazes, duas raparigas – estavam condenados a uma vida de dependência.

Durante anos, ainda hoje é assim, a associação garantiu-lhes educação, alojamento e alimentação. O esforço deu frutos. O irmão mais velho concluiu o liceu e trabalha como telefonista, numa câmara municipal. O segundo estuda ciências sociais, na Universidade de Cabo Verde, e as duas mais novas prosseguem os estudos, no ensino básico.

A história destes quatro irmãos avizinha-se de sucesso. Resgatados ao esquecimento, são exemplos de como há quem vença o estigma.

Maria Furtado da Veiga é professora. Também invisual, como os alunos que ensina, sabe o que é sentir descriminação, resultado da sua condição. Uma vez mais, o emprego: “às vezes há empresas que não recebem deficientes visuais, porque dizem que não têm competência para trabalhar”.

O preconceito combate-se, defende, com “todo um serviço de informação, para consciencializar a sociedade civil”, porque “há empregos aos quais as pessoas portadoras de deficiência visual são adaptáveis”.

Na mesma linha, Lurdes Borges acha que “para quem é cego é muito importante conseguir ter uma profissão”. A antiga professora repete a ideia de que “as pessoas ainda não conseguem ver um deficiente visual como alguém que tem uma vida normal”.

Mas não é só do fim do estigma social que depende a ‘normalidade’ da vida dos deficientes visuais cabo-verdianos. A estrutura arquitectónica das cidades não ajuda à sua mobilidade.

“Quando o deficiente visual quer ir à escola ou ao trabalho, tem dificuldades, porque não temos passeios em condições, nem ruas em condições”, exemplifica Manuel Júlio. Os problemas começam, desde logo, na capital. “A cidade da Praia tem barreiras que dificultam a mobilidade de uma pessoa com deficiência visual”, sentencia o director Marciano Monteiro.

De volta à cozinha

Por esta altura, o arroz de cavala está pronto. Para a refeição ficar completa faltam apenas “umas queijadinhas deliciosas”.

Quando convidaram Maria Alzira para o curso de culinária, ela nem queria acreditar. “Não me achei capaz”. A descrença durou pouco. “No primeiro dia que cá cheguei fiquei muito emocionada”.

Decorou o nome de todos os alunos – primeiro 15, agora 20 – e faz questão de os cumprimentar, um por um, “com um beijo ou um abraço”. Começa por ler a receita e passar os ingredientes, “para eles sentirem e tocarem”. Dá as dosagens em colheres ou chávenas e, à vez, todos se lançam ao trabalho.

A Maria Alzira, o cabelo grisalho confere-lhe a autoridade de quem sabe do que fala: “a vida é uma caminhada e mesmo que o caminho seja íngreme, devemos continuar a ter força”.

publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 427, de 3 de Fevereiro de 2009
fotografia de Ulisses Moreira