30 de março de 2010

Sobre os comentários nos jornais online

A quantidade de disparates que aparecem nos comentários que os leitores deixam nos jornais online são a prova de que o povo nunca tem nada de importante para dizer. Aliás, se assim não fosse, os boletins de voto tinham várias linhas e não apenas pequenos quadrados, onde se cabe uma cruzinha.

25 de março de 2010

De como me irritam os portugueses (categoria na qual me incluo)

O problema é o sentimento de impunidade. Quantos portugueses acham que José Sócrates e os seus cachicos se imiscuíram nos critérios editoriais de órgãos de comunicação social? Muitos. Quantos portugueses acreditam que da Comissão de Inquérito, criada no Parlamento, sairão resultados conclusivos? Muito poucos.

A dinâmica de "deixa andar" com que a classe política gere a agenda dos escândalos, que se abatem sobre os seus mais destacados dirigentes, é gregoriante. O país está cheio de figuras a quem a justiça não chega.

O mais revoltante não é fulano de tal ser ou ter sido, em dado momento, corrupto, indecoroso, pouco digno. Todas as famílias têm as suas ovelhas negras. Profundamente inquietante é nós sabermos, à partida, que "não vai dar em nada", que uma suspeita não passará disso mesmo. E, pior, estamo-nos a borrifar.

A nossa passividade, a nossa incapacidade de sair às ruas, de exigir responsabilidades, de fazer questão que, aqueles que nos dirigem, sob os quais existem suspeitas (suspeitas deveriam bastar), saiam pela porta pequena, está a dar cabo do conceito de país sobre o qual nos falam os livros de história (qualquer dia só nos compêndios seremos grandes).

Não há ninguém - muitas vozes a uma só - capaz de cumprir o desígnio de, cara a cara, dizer aos medíocres que povoam o mais alto espaço político: "se queres fo%&# alguma coisa, arranja uma charolesa e vai-lhe por trás, mas deixa o meu país sossegado!"

Se me irritam os governantes, os governados irritam-me muito mais.

18 de março de 2010

Até já

Talvez seja o meu destino: andar de casa às costas, sem ganhar raízes em nenhum sítio, a deixar sementes espalhadas por uma série deles (e não falo de filhos).

Se calhar, o melhor é começar a deixar as malas à mão, com um kit de sobrevivência lá dentro. Não há nada como estar sempre pronto a partir.

Cheguei à Praia, aluguei casa, comprei coisas, fui assaltado, bebi muita cerveja e... pronto, é isto.

Agora, arrumo tudo, meto num barco, apanho o avião e aterro numa nova paragem. Pelo menos, desta vez, não vou precisar de pedir novo número de contribuinte.

A partir de dia 1, o Mindelo será a minha cidade. Tenho um quarto a mais. Aceitam-se reservas.

16 de março de 2010

Uma análise ou um murro nas trombas

Depois de um dia cansativo, chegado a casa, para lá das dez da noite, sentei-me no sofá a comer noodles e a ver o Pontos de Vista, na RTPN.

A meio do debate, enquanto os representantes dos partidos dissecavam a Lei da Rolha - não sei qual é o espanto, ou não existisse, desde há muito, em todos os partidos parlamentares, aquela coisa chamada de disciplina partidária - diz-me a mulher com quem partilho os meus dias, até então sentada e enfastiada, a um metro de distância: "no teu país passam a vida a debater tudo e mais alguma coisa, arre, que dá asco".

Bem, talvez não tenha sido exactamente assim, mas no essencial foi isto. Precisei apenas de 20 segundos para engolir o orgulho patriótico e lhe dar razão. De facto, no meu país, toda a gente debate sobre todas as coisas. Debate-se muito. Só.

Não faço ideia - e não me vou dar ao trabalho de contar - quantos programas de análise política, desportiva, económica e social é que existem nas televisões portuguesas. São muitos, de certeza. Fazer informação de baixo custo tem este preço. A dada altura, todos os canais generalistas acharam que era um imperativo moral ter um canal de informação. À falta de orçamento, usam do método fácil: mesas redondas, entrevistas, gente em estúdio a falar durante uma hora, quase sempre sobre os mesmo temas - Portugal nem sequer é um país onde aconteçam coisas muito interessantes - só que em horários e sob nomes diferentes.

Enfim, no país onde até o Pacheco Pereira tem um programa só dele, tudo é possível, claro. Mas soubessemos nós canalizar tanta capacidade de análise para acções concretas e teríamos um país bem melhor. Ou isso ou murros, que cenas de pancadaria também ficam bem em qualquer democracia.

12 de março de 2010

Estive a (re)ver fotografias de Luanda. Aquela cidade é mesmo um esgoto. Vivia no meio da merda... e era tão bom.

5 de março de 2010

Integração ao som do berimbau

O som do berimbau ouve-se ao longe. Ultrapassado o portão da Escola Técnica, não é preciso andar muito, para lá do portão verde da Escola Técnica, para que o batuque ecoe pelos corredores quase vazios. Por baixo de um telheiro, onde o calor do dia ainda se sente, um grupo de crianças repete, ao compasso da música, os passos da dança que o professor ensina. É uma aula de capoeira. Gamal é o professor.

De cabelo trançado, calças largas e t-shirt com as letras da associação cultural de que é o principal mentor, Gamal passa aos mais novos os ensinamentos que trouxe do Brasil, já lá vão 13 anos. Recorda-se do tempo em que atravessou o Atlântico e descobriu mais sobre aquela que é hoje a sua grande paixão. “Fui para o Brasil estudar Educação Física e mesmo antes de começarem as aulas na universidade, inscrevi-me na capoeira. Nas primeiras férias trouxe uns vídeos e aquilo que, entretanto, aprendera”. Estavam deitadas à terra as primeiras sementes.

Em 2000, concluídos os escudos, Gamal regressou definitivamente ao arquipélago. Professor, começou a dar aulas. Às modalidades tradicionais – futebol, basquetebol, atletismo – juntou uma outra, a capoeira. O resultado foi surpreendente. “Como todos estavam no mesmo nível, gerou-se uma fenómeno interessante, em que alunos que nunca se destacaram, revelaram-se óptimas surpresas”.

O segredo do sucesso da dança, que também é luta, sem contacto, pode estar precisamente no inesperado que se gera. “A capoeira, é uma modalidade que consegue envolver os aspectos da expressão e consciência corporal, da formação do esquema motor e da disciplina mental”, resume o ‘mestre’.

O projecto actual promove a integração das crianças e jovens que nele participam. “É a ocupação saudável dos tempos livres”, enquanto alternativa à violência e criminalidade de que tanto se fala.

Ao todo, são cerca de 400 alunos, em vários bairros da cidade da Praia e noutros pontos da ilha de Santiago. Os números do Centro Cultural Humaitá impressionam: além da modalidade mãe, 50 jovens frequentam uma orquestra de percussão e 300 estão envolvidos nas aulas de iniciação à dança. Já são muitas centenas, mas, para um público numa idade em que a afirmação pessoal é o mais importante, todas as alternativas são poucas. “Faltam ginásios públicos, placas desportivas, pistas de skate e de patins. É preciso apoiar as associações juvenis e eclesiásticas”, considera Gamal. “Com apoio institucional pode ser feito muito mais”.

Falta de formação académica, desemprego, inexistência de um projecto de vida. O diagnóstico há muito que está feito. Às novas gerações cabo-verdianas faltam, muitas vezes, perspectivas de futuro. Nada que intimide um dos pioneiros da capoeira no pais crioulo: “Cabo verde é pequeno e em 10, 20 anos pode-se resolver o problema da juventude. Há que ter vontade e disponibilizar meios”, acredita. Se depender do professor, a chave é esta: “ocupar o tempo livre com algo de positivo, onde as pessoas canalizem as suas energias”.

Exemplos de sucesso

Foi isso que fez Juca. Com 24 anos, tem 12 de entrega à modalidade. Via os “muleques” na televisão. Agora, alem de continuar a dançar, é também monitor. “Os meus pais não tinham muitas possibilidades, por isso não pude estudar muito. Queria ter alguma coisa com que ocupar os meus tempos livres. A capoeira foi a minha oportunidade”, reconhece.

Oportunidade é também a palavra que Ady usa para justificar a entrega à luta sem toque. “Coloca os jovens a fazer outra coisa que não a consumir drogas ou a beber álcool”. São sete anos de experiência, em menos de 25 vividos.

O entusiasmo não tem fronteiras de género. Liliane e Maily também fazem parte do movimento. “Desenvolve o eu da pessoa”, defende a primeira. “É uma libertação”, acrescenta a segunda. Têm 20 anos, e, se Liliane acredita que “quando os jovens entram na actividade, já só pensam nisso”, Maily prefere alertar o governo para que “se preocupe com o povo em vez de gastar o dinheiro noutras coisas”.

Uma luta de paz

Não há contacto na capoeira, o que “impõe respeito”, julga Gamal. “Tens de te preocupar com o colega com quem estás a lutar. Temos de ter auto-controlo suficiente. É assim na vida”. A rotatividade de funções – “ora cantas, ora tocas, ora lutas” – ensina que “há uma hora em que temos de servir o outro, outra em que temos de ser servidos”.

“Há momentos em que tu tens de ceder, em que tu tens de fugir. Na vida real precisamos de aprender a ceder. Temos de saber quais as vontades e os deveres de cada um e construir um equilíbrio a partir daí”.


publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 431, de 3 de Março de 2010
fotografia de André Amaral