30 de dezembro de 2011

Toda Ponchita


- Mas tu vais sair a esta hora, Rúbito? - pergunta-lhe a mãe, depois de entrar na sala e sentir um cheiro forte a perfume.

- Vou sim, mamã. Vou ter com uns amigos - responde-lhe o rapaz, que de catraio até tem muito pouco, pois ninguém chega menino aos 42.

- Com uns amigos? Mas isto agora é todas as noites? Com quem é que tu andas Rúbito? Com quem é que tu andas Rúbito, Rúbito? - exalta-se a mamã - Quem são essas companhias?

- Oh mamã, não se preocupe. Já não confia no seu filhinho. Não sabe que eu me porto sempre bem?

Tem razões para confiar, a mamã. Lá em casa, Rúbito é todo delicadezas. Joelhinho no chão pela manhã e ao deitar, Pai nosso que estais no céu dai-me força, daí-me sabedoria, amor e humildade. Camisa aprumada, calça vincada e sapatinho lustroso.

- A sua bênção mamã.

- Não me tires do sério. Dormes na rua se voltas tarde - Ai, ai, ai - pausa para respirar e corrigir a entoação - ai, ai, ai - esforçando os graves.

Olha para o relógio Rúbito. São 20 agora. Tem duas horas entre ir e voltar. Apressa o passo, com o coraçãozinho a bater rápido.

A ele nunca ninguém conheceu namorada. Caseirinho, trabalho, casa, casa, trabalho, acredita-se que leva a vida de feição, comendo a horas certas - e nunca sai da mesa sem acabar o que está no prato - abdicando do futebol e indo à missa todos os domingos e dias santos.

Aos ímpetos das partes baixas, pecado, pecado, sempre respondeu com uma enérgica punhetinha debaixo dos lençóis, luz apagada, sem ui que se ouvisse. Se ao despertar lhe aquecessem os ânimos durante o banho, que lugar impróprio, desligava a água quente de rompante e esperava que o frio se entranhasse no corpo, descesse até ao membro armado e desse cabo da libido matinal.

O dia da desgraça de Rúbito chegou aos 13 de Outubro do ano da graça de 2011, mais precisamente às 15:32, hora a que, depois de um robalo assado no forno, com batatinhas e salada, tudo empurrado com um copinho de sumo de laranja, que este homem nunca foi de vinho, Rubito estacionou a Renault Kangoo três ruas a seguir ao mercado, pegou na caixa de cartão, 20 de largo, 20 de comprimento e outros 20 de altura - um cubo, portanto - e, depois de andar duzentos metros a pé, tocou no 5º F da morada que estava escrita.

- ¿Hola, quien eres?

- Estafeta. Para entregar uma encomenda.

No quinto andar, à saída do elevador, a Terra parou. Ao olhar para a porta, sentindo o volume púbico a aumentar, Rubito teve de se esforçar para voltar ao essencial. 

- Ponchita Lizarraga?

- Para ti, Toda Ponchita.

- Tod... Pon...

- Se quieras, Ponchita, la Peruana.

Posto isto, nem cinco segundos passaram, avé Maria cheia de graça, de nada lhe valeria a água fria, gelada que fosse, Rúbito foi todo fel. O estafeta teve o seu primeiro orgasmo com uma mulher sem que esta, sequer, lhe pusesse as mãos.

Caído em tentação, não mais o menino da mamã, conseguiu parar. Desde aí, então, não há dia que passe sem que, de manhã, à tarde, ou à noite, não interessa, tanto faz, o ex-beato, agora visitador, se entregue aos prazeres da carne e se delicie em actividades exploratórias, pelos seios redondos, os mamilos rosados e duros, o ventre liso - um desvio - a coxinha de pele sedosa e, agora sim, o sexo húmido que, de ser o primeiro, lhe parece o mais perfeito de todos. 

- Ponchita, queres ser a minha putinha?

- Ya lo soy, Rúbito. Ya lo soy.

29 de dezembro de 2011

Já temos página no Facebook. Mais uns tempos e começo a falar de marcas e a fazer passatempos, simulando total desinteresse, como se fosse apenas um gajo de bom coração.

Podeis gostar. Deveis faze-lo. Clicai na imagem ou ide até ao fundo da página.


2.0


Lembrei-me da simpática família Parret. Os Parret, pai e mãe, acolheram-me há alguns anos, durante a minha passagem por Londres.

Relativamente formais, relativamente afectuosos, zelosos de uma boa experiência londrina, receberam-me no quarto de hóspedes da sua casa, num dos bairros periféricos da cidade.

Desse bairro, partia todos os dias para o centro da capital britânica. Fazia a pé o trajecto até à estação de comboios. A meio caminho, passava por um pub, a very typical one, que tinha este escrito numa das janelas da frente: "Pass by us, and forgive us our happiness" (Fyodor Dostoyesky, O Idiota).

Quem me conhece sabe que não sou - e tenho em relação a isso uma certa mágoa - um tipo de citações. Admiro muito aquelas pessoas que têm sempre a sentença perfeita para todas as ocasiões, mas a minha memória não dá para tanto - dá até para muito menos, devo admitir.

Acontece que estas palavras, talvez pela apresentação original - a ideia da montra de bar, com um grupo de bêbados bem dispostos no seu interior - ficaram-me na memória e a imagem é um belo mote para o exercício que se segue.

Foram voláteis os dias de 2011. Tão vorazes que tenho alguma dificuldade em me encontrar na vida que tinha nos primeiros de Janeiro.

Comecei o ano com uma casa, uma vida partilhada, e a certeza absoluta de estar onde queria estar, sem precisar de mudar nada do que é essencial. Termino-o noutra casa, para a qual me mudei sozinho, e com mais dúvidas do que alguma vez me lembro de ter tido.

Agora, agora que estamos no fim, revisito essas tão certas certezas - todas elas - e já não me parece lógico que fossem tão absolutas assim. 

Se pudéssemos antecipar, se conseguíssemos saber antes, cometeríamos menos erros, faríamos menos disparates.

Não compreendo aquelas pessoas que insistem em defender que nunca se arrependem de nada (a não ser do que não fizeram). Há algo de 'desumano' nisto. Ser Homem é errar, reconhecer os erros, mostrar arrependimento, pedir perdão por eles,  pelos outros e por nós mesmos.

Sou dado à razão, mas isso, e é este o compromisso que assumo para 2012, não me impedirá de viver o dia-a-dia. Farei a minha parte, anteciparei o que puder ser antecipado, mas aceitarei que nem tudo depende de mim.

A vida tem duas vidas: a que temos e a que nos escapa. Uma percentagem significativa da nossa felicidade devirá (na Filosofia, devir é o movimento pelo qual as coisas se transformam) de guardarmos os bons momentos e não o seu fim.

Há muito medo no ar. Eu também tenho medo. Mas acho que todos estaríamos menos receosos se aproveitássemos a oportunidade para um regresso às origens, à vida simples, aos amigos e à família. É esse o caminho que quero fazer a partir de Janeiro.

Estamos juntos. Bom ano para todos.

27 de dezembro de 2011

Morrer depois das 8:00

O problema, diz com aquele ar definitivo que sempre coloca quando aborda algum assunto sério, é que, e nessa altura suspira, nada disto é novidade.

Começam sempre assim, como que actos consumados, as discussões das terças-feiras. O mote, um silêncio, e a matéria de facto.

Cheia de razão, comenta na quarta. Tempo perdido, pensa à quinta, ainda sem o embaraço que lhe chegará apenas no dia seguinte, habitualmente depois de almoço.

A semana está pensada para se suceder sem surpresas. No sábado forçará a primeira trégua e domingo de manhã "sim, está tudo bem",  conservando apenas o pouco à vontade no trato que só virá na segunda, antes de terça, e da discussão seguinte.

Por isso, quando naquela manhã de Março, nem tão quente nem tão fria, Júlia decidiu morrer, a única coisa que verdadeiramente a manteve inquieta - e viva, podemos dizer - não foi tanto o acto em si, quanto a isso não restavam dúvidas, mas antes que dia, dos indisponíveis, escolher para concretizar o gesto definitivo.

Seria assim: às 7:00 o despertador tocaria pela primeira vez (Pedro tinha acordado uma hora antes e já não estava em casa), às 7:15 voltaria a tocar. Levantar-se-ia não antes das 7:25. Ainda sonolenta, tropeçaria na mala que levara na viagem a Londres, em Novembro do ano anterior, mas que permanecia à entrada do quarto.

Tomaria o mesmo pequeno almoço de sempre: torradas de pão de forma aparado, manteiga de um lado, doce de amora do outro, sumo de papaia, uma maçã. Não lavaria a loiça - morrer sem fome, sim, com a casa arrumada, exagero. Banho, um duche rápido, para poupar água, e verificaria o estado da depilação - poupando um susto ao médico legista. 

Vestiria uma roupa elegante mas confortável. No bolso guardaria um pequeno bilhete,  dirigido a quem possa interessar: "levem-me com esta, por favor, e cuidado com o botão da saia que está meio solto (em caso de necessidade, as coisas da costura estão no guarda-fatos, porta da direita, segunda prateleira a contar de cima, caixa horrível com os flores)". 

Arranjada, penteada, na medida do possível - o cabelo rebelde, assim classificado por uma marca de shampoo, nunca fica totalmente composto - até com um pequeno toque de maquilhagem, pegaria então na caixa de compridos, um cocktail infalível, preparado com o rigor profissional de farmacêutica, e ingeriria as pílulas multicolor uma por uma até à quinta e três em três daí por diante. Teria o cuidado de escolher alguma coisa que a fizesse adormecer primeiro, antes do organismo entrar em falência

Então, nos minutos finais, lembrar-se-ia daquela pergunta parva, lida num fórum na Internet: "Acabei de tomar 11 comprimidos de 3mg. Posso morrer?". "Queira Deus que sim, idiota", respondeu na altura.

Deitar-se-ia a meio da cama, com uma almofada de cada lado da cabeça, para evitar que esta tombasse. Fixaria o olhar num qualquer ponto do tecto, provavelmente na pequena mancha de humidade, e esperaria.

Porque à terça é dia de discutir, à quarta está demasiado irritada, quinta vem o arrependimento, à sexta quer voltar atrás, no sábado começa a fazê-lo, domingo esforça-se um pouco mais e à segunda as coisas correm bem, Júlia continua viva. Falta-lhe, enfim, o dia certo para morrer.

26 de dezembro de 2011

Últimas Coisas

Gosto muito de Paul Auster. Quase tanto como de Vargas Llosa (ainda assim o meu escritor de eleição). Conheci-o pelo Leviathan e depois disso já o revisitei algumas vezes. Invisivel será, de todos, o meu preferido.

Aqui há tempos chegou-me às mãos No País das Últimas Coisas. Demorei a leva-lo a sério. E eu, que tanto devoro um livro em poucas horas, como o arrasto durante meses, optei pela segunda via, alternado a sua leitura com outras coisas com que me fui cruzando. Disparate meu.

No País das Últimas Coisas é, afinal, um relato dos dias do fim. A Cidade no limite, o Homem para lá do possível. A luta pela sobrevivência, num lugar em crise. 

Demasiado tarde percebi o sentido que tudo aquilo faz. Da sua razão de ser para os dias de hoje.

É o fim: o fim das coisas e de nós mesmos. Parece tudo tragicamente real.

22 de dezembro de 2011

Mar

Às vezes, e hoje é uma dessas vezes, penso que o jornalismo já não me basta.

É verdade que fiz muitas coisas nestes onze anos e meio: vivi em três países, visitei duas dezenas de outros, experimentei a rádio, a televisão e os jornais. Mas também é certo que perdi a inocência dos primeiros tempos.

Não mudamos o mundo, raramente fazemos a diferença e na maior parte dos casos as pessoas, simplesmente, não querem saber. Os leitores, os ouvintes, os telespectadores conseguem ser especialmente cruéis, como se todos pudessem errar... menos nós, os tipos das notícias.

Gosto muito daquilo que faço, não sou derrotista, nem estou conformado. Tenho a sorte de ser quem sempre quis (nunca ponderei outra profissão), mas em dias assim vou-me daqui.

E é então que penso em ser marinheiro.

Aproveito-me destes desconsolos para imaginar uma vida a bordo. Claro que me retenho apenas no lado lírico. A imensidão, as chegadas e as partidas, a leveza das paixões fáceis e de circunstância, o je ne sais quoi.

Todas as cidades onde vivi tinham com o mar - ou com o rio - uma relação de dependência que, julgo, ter-se-à apoderado de mim. Há nele um sentido de ir. Em mim também.


(A versão original deste post foi 'comida' pelo Blogger. Reescrevi-o)




Percebam: este blogue é volátil como eu. Nuns dias sim, noutros dias não, nos demais, os que sobram, talvez. Por isso vai e vem. É actualizado todos os dias, ou fica para aqui, moribundo, durante semanas seguidas.

Penso não me importar. Afinal, não assinei com ninguém um contrato de escrita criativa e não devo caracteres ao Blogger.

Tento ver as coisas de forma simples, nenhuma causa, zero efeito, mas depois desassossego-me. Passou um mês.

O mundo dos blogues tornou-se tal lugar estranho. Pelo menos parte dele, onde estão os da velha guarda. Muitos transformaram-se numa espécie de casas de alterne, entregues às marcas, aos passatempos, à publicidade dissimulada, como se todos nós fossemos estúpidos, não soubéssemos o que se está ali a passar.

De repente penso em acabar com isto. Estou noutros lugares, podemos continuar juntos. Arrependo-me. Deixo estar.

Será sempre assim, enquanto for. Por isso, a quem me enviou um e-mail, com tão bons argumentos, eis-me aqui. Aqui estarei. Mas só até deixar de estar.

Obrigado a quem insiste.


16 de novembro de 2011

Ir e voltar

Dias de reencontros e de novos conhecimentos. O regresso à minha primeira morada em Cabo Verde, quase dois anos depois da mudança para o Mindelo.

Uma boa formação, com o lançamento de bases para o que pode ser uma classe jornalística mais atenta e comprometida com as questões ambientais. Trocas de contactos, ideias para reportagens e partilha de pontos de vista.

De ver, gostei do que vi. Uma cidade que aos poucos tenta nascer do caos. É ali que está o centro do país. Um centro demasiado central que deixa pouco para as outras ilhas.

Velhos amigos com vidas diferentes daquelas que tinham quando nos despedimos. Agora casados - de forma - e a viverem os desafios da paternidade.

O café da Achada, a antiga casa no largo dos Negócios Estrangeiros, as rabidantes, a redacção em dia de fecho e até um inusitado pedido para uma reportagem de última hora.

O livro autografado, as escadas até ao último andar, a conversa solta, tu a falar sozinha e o pêlo no teu queixo.

Quarenta e oito horas sem pausas ou intervalos para pensar, se não agora,  quando de regresso ao T1 de Monte Sossego, de novo em São Vicente.



9 de novembro de 2011

Justa medida

Não sou de celebrações. Passam-me ao lado as efemérides. Sou pouco dado a saudosismos e raramente recordo o passado como um tempo melhor do que o de agora.

A verdade é que vivemos um período singular. Somos protagonistas de um momento de mudança. Da tese e da antítese dos dias sairá algo de novo. 

Se quase sempre as dispenso, por vezes sinto falta delas, das certezas. De ter os pés em terra firme, do dia-a-dia inocente, um pêndulo que vai e que vem.

Sou do ser, do estar, do querer e ainda assim o futuro angustia-me. Deixa-me expectante esta coisa de não saber como adjectivar o que está para vir.

Não gosto de exclamações. Interrogo. Mas ainda hoje me surpreendo com a capacidade do Homem para ser o bem e o mal. 

Vivemos (do passado) além do que podíamos, viveremos (do futuro) aquém do verbo, para podermos chegar a viver (do desejo) na justa medida. 

Para onde caminhamos? Estamos a destruir ou a construir? Nisto de ser, somos todos. Não há inocentes que não sejam culpados, nem arguidos com a culpa toda.

Não tenho o que tanto dure como o vazio dos bolsos, o ridículo de uma conta bancária, as roupas usadas e os sapatos gastos, alguns livros, menos discos. E as ideias.

As ideias que me levam e que me trazem. As ideias do nada e as ideias do tudo.

4 de novembro de 2011

Quo vadis São Vicente?


A Assembleia Municipal de São Vicente promoveu um fórum destinado a mostrar uma ilha que vive para lá da crise e do pessimismo. 

Durante oito horas, foram muitos os que subiram ao palco e, do palanque, apresentaram as suas ideias e projectos para o segundo centro urbano de Cabo Verde.

Do balanço do evento, uma nota essencial: o que nos falta em visão estratégica, sobra-nos em imaginação. 

Houve exuberância, extravagância e megalomania. Unidades hoteleiras com centenas de quartos (apesar da taxa de ocupação média dos hotéis e residenciais rondar actualmente os 18%), empreendimentos de vários quilómetros quadrados, prédios com dezenas de andares. Coisas avulso, sem qualquer tipo de enquadramento. Uma espécie de competição para ver quem tem a maior Babel. 

Para a Praça Estrela, antiga Polícia e áreas envolventes, por exemplo, anunciou-se um complexo composto por duas torres de arquitectura moderna.

Aliás, a ausência de cuidado com o meio envolvente foi, como tem sido quase sempre, a nota dominante das apresentações. 

No Mindelo, a julgar por aquilo que se viu - por aquilo que se tem visto - modernidade rima com fachadas espelhadas. O que é velho, tradicional, não interessa, não presta e por isso  pode e deve ser demolido. Foi assim com o Fortim e foi assim com a casa de Adriano Duarte Silva, para nos mantermos num passado recente.

Falou-se de oferta, sem nunca se mencionar a procura. Sabemos quantas camas "vão" existir, quantos apartamentos com chão de mármore "vão" (entre aspas porque felizmente é quase tudo hipotético) nascer, mas ninguém nos disse de onde virão as pessoas que podem ocupar essas camas e comprar as tais casas. É que não será nenhum de nós, parte da maioria que vive com um magro salário e em ginástica orçamental permanente, a faze-lo.

Numa altura em que o mercado imobiliário - tradicional e turístico - está em forte abrandamento a nível mundial, existe em Cabo Verde um grupo de visionários que acredita que o país - nesta como, ao que parece, noutras crises - será capaz de passar à margem deste período de incerteza e contracção. Assim fosse.

São Vicente precisa de uma visão estratégica. De um plano de ordenamento do território claro (e sobre o Plano Director Municipal também há muito por dizer) e de um modelo de desenvolvimento que se baseie não apenas no betão pelo betão. 

A aposta no sector produtivo, gerador de emprego e de riqueza, e com reflexos na balança comercial, deve mobilizar toda a sociedade e deve concentrar a atenção dos privados. 

Se metade - não mais do que isso - do que se sonha investir em jardins do éden, sem noção exacta do nível de retorno, fosse usado para a industrialização e terciarização do país e da ilha em particular, acredito que os ganhos seriam incomensuravelmente maiores.

Sobre o turismo e o imobiliário, existe naturalmente uma margem de crescimento. Mas esse terá de ser alicerçado em princípios completamente diferentes daqueles que estão a ser defendidos. Ao invés de aplaudirmos quem nos promete levar a tocar a lua, deveríamos perceber que, quase sempre, "simple is better". 

Uma intervenção urbanística profunda e séria no centro histórico do Mindelo, acompanhada da diversificação da oferta cultural e da criação de uma conjunto de serviços de apoio ao turista, que o façam sentir verdadeiramente a "experiência cabo-verdiana", farão mais por esta cidade do que 30 arranha-céus.

Queremos prédios gigantescos? Arranjemos pois uma zona virgem da ilha e urbanizemo-la com esse propósito vanguardista.

O turista  que procura ou pode procurar São Vicente quer  e quererá genuinidade e nem isso nós estamos a conseguir oferecer.

A dada altura, no auditório do Centro Cultural, o meu vizinho de fila disse-me em tom jocoso que se todos os projectos apresentados saíssem do papel, passaríamos a viver no Dubai (ainda por cima sem a parte do petróleo). 

A questão, pensei, é que se eu quiser ir ao Dubai, não apanho o avião para Cabo Verde.


Post Scriptum: Antes que mandem o estrangeiro de volta para a terra dele, pela ousadia de ter opinião própria, deixem-me salvaguardar que enquanto eu morar no Mindelo, aqui trabalhar e pagar impostos, tenho todo o direito a ter e a expressar as minhas preocupações em relação a esta cidade. Criticar construtivamente é um exercício de liberdade ao qual todos se deviam dedicar.

28 de outubro de 2011

A idade da solidão


 
A história de ‘Tanha’ Joaquina conta-se assim: nasceu em São Vicente, “lá na Ribeira Bote”, à memória foge-lhe o dia exacto, mas recorda que corria o ano de 1924. Terá por isso 87 anos, ou 86 por mais alguns dias.

O tempo foi passando, mas na sua vida pouco ou nada se alterou. Hoje, como antigamente, continua a precisar de trabalhar para garantir sustento. O seu e o dos dois filhos, um homem e uma mulher, que tem a seu cargo. Não sabe ao certo a idade deles. Contas rápidas e por estimativa chega a um número aproximado: “sessenta e tal”.

Permanecem em casa porque sozinhos não se bastam. As deficiências físicas e mentais de que são portadores tornam-nos dependentes de terceiros. Resta-lhes a coragem da mãe e a magra pensão que o Estado lhes paga, insuficiente para fazer face a todas as despesas que o dia-a-dia de três pessoas acarreta.

A dona ‘Tanha’ não resta outra alternativa: todos os dias, entre tachos e panelas, prepara os doces que vende a quem quiser comprar. O negócio não corre de feição, mas quando o orçamento é apertado, todos os escudos contam.

“Tenho de continuar a trabalhar, não tenho outro remédio. Faço bolos e rebuçados. Quando não consigo vender em casa, venho para a rua”, desabafa.

O passar do tempo trouxe-lhe as maleitas próprias de quem já anda por este mundo há muitos anos. Contudo, não há-de ser a tensão alta a faze-la baixar os braços.

“A minha vida tem sido sempre na luta, criando os meus filhos. Desde que tenho dezassete anos que estou a trabalhar”.

Ao todo deu à luz dez vezes e já chorou a morte de cinco descendentes. Os que resistem estão na sua própria contenda, “mas sempre que podem ajudam com qualquer coisa”.

“Passei muitos sacrifícios, mas tenho de lutar. Se Deus escreveu assim, é assim que vou viver. Tenho de continuar”, conforma-se.

A história de ‘Tanha’ Joaquina confunde-se com a de muitos outros idosos que, chegados ao ocaso da vida, não têm meios de subsistência que lhes garantam a tranquilidade que o cabelo grisalho justifica. Falta-lhes em dinheiro o que lhes sobra em solidão e desamparo. Trabalharam desde sempre, a família dispersou-se ou, estando por perto, não lhes presta a atenção necessária.

As ruas do Mindelo estão cheias de protagonistas de existências plenas de memórias e amarguras.

Pensão social

“Sou de São Vicente sim senhor”. A voz trémula e ligeiramente embargada não ofusca a convicção com que a frase é proferida.

O que leva Daniel Almeida à porta da igreja de Nossa Senhora da Luz, numa peregrinação diária, explica-se em poucas linhas e em discurso directo.

“A minha história é como a desta gente que está aqui sentada. Estamos a ver se catamos uns tostões para comer uma bolacha, porque já somos velhos e não conseguimos trabalhar”.

São setenta e sete anos, sabe-o bem. Em novo, trabalhou nas obras e como segurança. Não fora um problema na vista e continuaria a faze-lo. Nunca teve filhos. Todas as manhãs, sai de Espia, bairro periférico da cidade, com rumo certo.

Recebe uma magra reforma de seis mil escudos e não precisa de grande matemática para concluir que de pouco ela lhe serve. “Se não vier aqui pedir, com certeza que passo fome”.

A grande maioria dos idosos em situação limite teve uma vida de trabalho. Contudo, dedicados a negócios informais ou desenquadrados do sistema de protecção social, sem uma carreira contributiva, chegaram à velhice desamparados.

Nestes casos, o Estado garante o pagamento de uma pensão social, actualmente fixada nos cinco mil escudos. Muito pouco para quem esse valor é tudo.

Têm direito à pensão básica os cidadãos com idade igual ou superior a 60 anos e com um rendimento anual inferior ao limiar da pobreza estabelecido pelo Instituto Nacional de Estatística.

Em 2010, saíram dos cofres públicos 1,3 milhões de contos para concretizar esta medida, que beneficia mais de vinte mil cabo-verdianos.

Institucionalização

O país não tem uma rede pública de lares da terceira idade. A Promoção Social mantém abertos alguns centros de dia, espalhados pelas ilhas, que garantem a alimentação dos idosos e a ocupação dos tempos livres no período diurno. À noite, estes regressam às suas casas, muitas das quais desprovidas das condições mínimas de habitabilidade.

No Mindelo, o segundo maior centro urbano das ilhas, existe um único lar a funcionar 24 horas por dia, em regime de internamento. Parte integrante do projecto social da Cruz Vermelha, a casa está de portas abertas na Ribeirinha, junto à Cadeia Central.


“Infelizmente, não conseguimos dar resposta a toda a procura”, assume, para início de conversa, a responsável técnica do espaço.

“Em Cabo verde, em geral, e em São Vicente, em particular, os familiares costumam dar pouca atenção aos idosos”, defende Kátia Cruz.

Com capacidade para 21 utentes, o lar tem lotação esgotada. Nem todos são idosos. Duas senhoras de quarenta anos residem no local. Estão sozinhas, distantes da família. Uma, com Sindrome de Down, a outra sofreu um acidente em Santo Antão e viu a sua mobilidade ser fortemente condicionada. Ambas, na casa dos quarenta e em situação limite.

A solidão com que muitos estavam confrontados antes da institucionalização perpetua-se dentro dos portões da residência. Recebem todos os cuidados básicos e combatem a ociosidade, mas nada substitui a desejada presença dos filhos e netos. Para a maioria, a espera por uma visita daqueles que ajudaram a crescer é um exercício que não tem fim.

Kátia Cruz acredita que a sociedade cabo-verdiana não está preparada para lidar com a terceira idade. Para contrariar essa tendência, sugere a realização de palestras e actividades comunitárias que envolvam gente de diferentes origens.

No entender da responsável pelo lar da Cruz Vermelha, a mobilização da sociedade passa também pela maior disponibilização de recursos. O apoio às causas sociais deve ser encarado como uma necessidade.

“As instituições, as empresas, todas têm de ajudar e dar o seu contributo”, apela.

Dia internacional

No dia dezanove de Novembro Maria Medina completará 87 anos. Nasceu em São Nicolau, mas cedo se mudou para São Vicente. São vagas as recordações que guarda da sua terra natal.

Nunca teve filhos. Trabalhou como doméstica. Agora, passa os dias de forma serena, entre conversas que a levam, muitas vezes, a anos passados.

Gosta de cozinhar, especialmente de fazer bolos. “Disso é que eu percebo”, confessa.

A sua história cruza-se com a de Edite. São agora companheiras. Edite também gosta da vida tranquila que conquistou.

“Gosto de estar aqui”, revela, assumindo que às vezes lhe falta a paciência para aturar os colegas de casa. “Você sabe, isto há aqui gente mais idosa do que eu, e, como é normal, têm sempre as suas fadigas. Uns viram levianos, outros doidos, outros malucos, mas vai-se aguentando”, sorri.

No último ano, por três vezes, recebeu a visita dos filhos. O mais novo, que vive na Praia, prometeu vir busca-la, assim que reúna condições para a receber. Edite aguarda por esse dia.

A 14 de Dezembro de 1990, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou 1 de Outubro como o Dia Internacional das Pessoas Idosas.

Um ano mais tarde, o mesmo órgão plenário aprovou uma resolução onde adopta um conjunto de princípios que devem nortear a acção dos estados no que toca à terceira idade.

No início deste mês, na sua mensagem alusiva à efeméride, o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, apelou a que os países, parte de um mundo em crise, sejam capazes de assegurar aos mais velhos o acesso à protecção social e a cuidados de saúde gratuitos.

Excerto revisto de uma reportagem publicada no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) 516

26 de outubro de 2011

A estrada



O local está referenciado nos guias turísticos da ilha. Em Santo Antão, a alguns quilómetros da Ribeira Grande, o Vale da Garça estende-se por entre as montanhas, até ao mar. 

Da Manta Velha até à Cruzinha, o caminho é feito pela ribeira, local que, durante a época das chuvas, fica cheio de água e, naturalmente, intransitável. Para a população local, são períodos de um isolamento profundo. Perdido o contacto terrestre,  a ligação com o resto do mundo é feita apenas por via marítima. Se a ondulação o permitir, um bote viaja desde Ponta do Sol, transportando os mantimentos necessários para a subsistência de quem vive numa clausura temporária.

No sentido contrário, a embarcação leva consigo aqueles que precisam de se deslocar à povoação para, por exemplo, receber cuidados médicos. 

Nem sempre o socorro é possível e as gentes daquele lugar, por vezes tão distante, contam que não são raros os episódios de mortes provocadas pela demora na resposta aos pedidos de ajuda.

Se os prazos forem cumpridos, dentro de aproximadamente um ano o cenário poderá ser diferente. Está em curso a empreitada de construção da estrada que ligará Cruzinha, Chã de Igreja e outros pequenos povoados ao resto da rede viária da ilha. 

As expectativas são elevadas. Fala-se de concretização de um sonho e em desenvolvimento. Imagina-se o número de turistas a aumentar e deseja-se a melhoria das actuais condições de vida.

Uma promessa

A ideia de construir uma estrada de desencravamento dos povoados do Vale da Garça tem quase tantos anos como o país de independência. Em visitas ao local, os sucessivos governos prometeram resolver o problema, mas só recentemente é que o projecto começou a ganhar forma.

A obra foi adjudicada a um consórcio de empresas, liderado pela portuguesa Somague. A primeira pedra foi lançada em 2009 e os trabalhos arrancaram em 2010. Com um prazo de execução de 24 meses, a empreitada está mais ou menos a meio.

A 8 de Setembro do ano passado, Celso Pires, expressava no seu blogue - chadigreja.webnode.com - a satisfação pela chegada das máquinas. "Finalmente começamos a ver uma luz no fundo do túnel", escrevia.

Celso não está sozinho na alegria. Em Chã de Igreja, José Nascimento junta-se ao entusiasmo. 

"As pessoas estão satisfeitas. Vai mudar muita coisa. Em termos de agricultura e de turismo, isto vai avançar de grande maneira. Vai haver um salto qualitativo. Acreditamos que vai trazer um impacto extraordinário para esta freguesia", assegura.

"É um sentimento de esperança, de grande alegria", resume.

À localidade, o sinal da televisão pública não chega. O contacto com o exterior é feito essencialmente pela rádio. 

O período das cheias torna a vida árdua, recorda José. "A comida chega com muita dificuldade. Os comerciantes trazem-na por via marítima, mas todo esse trabalho faz com que, depois, precisem de subir os preços". 

"A chuva é sempre bem-vinda", esclarece, "mas é um mês muito difícil. Esperamos que no ano que vem isso possa estar normalizado". 

A sua expectativa é grande, "muito grande", reforça. "Temos emigrantes em Portugal, em França e na Holanda que querem investir cá".

A esses projectos refere-se também Benvindo Santos. Saindo de Chã de Igreja, a viagem de carro até à Cruzinha dura pouco mais de dez minutos.

Lá, onde não chegam notícias - há três anos o mau tempo destruiu o emissor da RTC - o presidente da associação comunitária aguarda por dias melhores.

"Com a estrada pode ser que as pessoas cheguem cá mais depressa", espera. "Esta é uma zona preferida pelos turistas".

Com uma vista singular para o mar, Cruzinha tem uma economia centrada no turismo da natureza - há quem se dedique ao artesanato, fabricando colares de missangas e esculpindo pequenas peças em casca de coco - e na pesca.

"As pessoas estão com esperança", assume Benvindo, alertando que a estrada, por si, não resolverá todos os problemas.

"Somos uma comunidade piscatória. Esperamos que a entrada dessa estrada torne possíveis alguns investimentos no sector, como por exemplo, melhorar a condição do arrastadouro, ou melhorar a energia". 

No topo das prioridades está também o acesso a uma máquina de gelo que possa substituir a existente, de pequena capacidade.

Preocupações

Antigo deputado nacional pelo Movimento para a Democracia e ex-secretário da Assembleia Municipal da Ribeira Grande, eleito pelo mesmo partido, Adriano Duarte afastou-se da vida partidária. 

Mora em Manta Velha, onde começará o asfalto, e reconhece que o projecto é "muito bem-vindo".

"É uma reivindicação de há muito tempo. Vai ser uma mudança radical, porque é uma zona que sempre esteve encravada", antevê.

Apesar de considerar que "a construção da barragem suplanta tudo o resto", não deixa de observar que as obras estão a provocar um problema ambiental com consequências imprevisíveis. 

"Os trabalhos estão a dar origem à queda de pedras para o leito da ribeira. Há zonas com casas e zonas agrícolas em que, se vier uma chuva como aquelas que têm aparecido nos outros anos, essas pedras poderão constituir um grande problema", teme.

A quantidade de detritos é tão grande que, em alguns pontos, a paisagem está totalmente alterada.

Preocupados, os habitantes do vale promoveram um abaixo-assinado, apelando à intervenção das autoridades. 

"Estamos à espera de uma solução. As máquinas vão retirando alguma coisa, mas a maioria vai ficando", explica Adriano Santos.

A preocupação do antigo parlamentar é partilhada por José Nascimento. "As pessoas estão inquietas com as consequências da construção".

"É importante que limpem a ribeira, porque se vier chuva a situação pode ser muito complicada".

"Esta ribeira sobe muito alto, com muita força. Espero que o governo tome medidas para resolver este problema", alerta.

As preocupações da população convergem com as da câmara municipal. O executivo autárquico tem acompanhado os trabalhos e, apesar de satisfeito com o investimento feito pelo Ministério das Infra-estruturas, esperava outra atitude por parte do consórcio responsável.

O Vale da Garça deve receber uma barragem, já adjudicada. O vereador Arlindo Fortes teme que, "se não forem tomadas medidas, em vez reter água, a barragem sirva para a retenção de inertes".

"É preciso diligenciar, logo com a conclusão da obra, para que seja realmente retirada toda aquela enxurrada que vem de cima", avança o autarca.

A Câmara da Ribeira Grande está convencida de que a estrada vai desencravar os povoados isolados, mas apela ao governo e ao consórcio para que, durante os trabalhos, mantenham um diálogo mais permanente com as autoridades locais. 

"Até termos o produto final, temos de garantir a satisfação das necessidades das pessoas", justifica Arlindo Fortes.

A estrada Manta Velha - Cruzinha faz parte de uma pacote de infra-estruturas rodoviárias que estão a ser executadas em Santo Antão com financiamento através de uma linha de crédito concessional atribuída a Cabo Verde por Portugal, no valor de 2,5 milhões de contos.

Excerto revisto de uma reportagem publicada no 
Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 515 

12 de outubro de 2011

A casa

Calculo que tenham sobrado da obra os mosaicos partidos que cobrem o passeio na entrada do prédio. A porta de ferro parece um improviso. É que, transpondo-a, existem dois canteiros daqueles que costumam ficar do lado de fora e não de dentro. Dois canteiros e outra porta. São duas, então.

A parede das escadas, pintada de amarelo, precisa de tinta. Aliás, não sou engenheiro mas acho que precisa de mais do que isso. Deve haver algum cano roto.

São três andares até lá e lá é onde eu moro, mesmo antes do terraço. Primeiro: duas portas, uma ao lado da outra; direito, esquerdo; um par de apartamentos, ambos vazios, alugados ocasionalmente e ao dia a emigrantes ou turistas barulhentos. Segundo (estou a contar os andares): senhorio; Eugénio, viúvo, dois filhos que se saiba; no patamar, um arranjo floral de plástico, um leque gigante e um vaso que me faz tropeçar diariamente.

Terceiro e é aqui. Chegando, a porta está logo em frente. Tem ela um postigo que costumo deixar aberto.

Não, não é só pequena a minha casa. É esquisita. Parece o pedaço de uma coisa maior, porque, de facto, é disso que se trata: de um retalho arrancado ao T4 que antes existia. 

As janelas são altas e o o tecto baixo (não tão altas, nem tão baixo, porém). Nunca está quente. Enquanto todos se queixam de calor, à noite tenho de me cobrir melhor para não ter frio. 

Tem móveis baratos, móveis que mandei fazer, móveis que outros começaram e eu acabei, moveis que eu próprio fiz do princípio ao fim. Tem também um gato. Tinha outro, mas fugiu. Pela janela. Calculo que tenha morrido e só espero que não tenha sido suicídio. Detesto depressivos.

A minha casa, que é a mais pequena e estranha onde já morei (a segunda mais estranha, agora que penso nisso), é de todas a melhor. Morar num sítio assim... é como morar num sítio assim. É bom. 

6 de outubro de 2011

Fantasia



Aqui me confesso: falo com gente que não existe. Todos os dias mantenho diálogos improváveis.

Não sou esquisito: faço-o tanto em casa como na rua. Sem grande pudor, evito apenas gestos largos e um tom demasiado elevado. Fujo aos embaraços, mas às vezes não tenho como evita-los. Ocasionalmente, um transeunte indignado-me mira-me de soslaio tentando perceber se estou em mim ou noutro alguém. 

Tenho-me, então, noutros que não apenas eu. E, tendo-me fora, posso estar em qualquer lugar, na melhor ou pior companhia. Discuto o mundo e a existência. Raramente chego a conclusões.

Se me olho ao espelho e vejo-o tão igual, estudo as expressões, a gravidade do olhar, o balancear da cabeça que diz e que ouve ao mesmo tempo, sem saber quem faz o quê, se eu ou ele.

Num passeio, faço pausas e atento nas perguntas. Respondo sempre. Quem diz que não me entende, que não percebe o meu lado de lá, talvez deva procurar o velho com cabelo grisalho, andar cambaleante, olhos papudos e óculos redondos, sempre descaídos na ponta do nariz.

As personagens que crio, são parte do meu real imaginário, daquele fragmento que só a mim diz respeito. Projectam a meu respeito uma imagem insana, mas se é esse o preço a pagar para manter a fantasia, podem trazer a factura. 


5 de outubro de 2011

Barba (e cabelo)


Tenho uma relação difícil com a barba. Falta-lhe a consistência e a regularidade necessárias.

Experimentei máquinas descartáveis, lâminas e máquina eléctrica. O resultado foi sempre desastroso.

Desde que estou no Mindelo, e salvo raras excepções, todas as semanas vou ao barbeiro. Na barbearia da esquina, sento-me na cadeira - uma clássica, com mais de 50 anos - que o senhor Chico recosta para trás.

Bata vestida, navalha na mão, borrifa-me a cara, antes de perguntar: "O de sempre?". 

Nhô Chico gosta de um trabalho bem feito e não se inibe de criticar quando vê um cabelo mal cortado ou uma barba mal aparada.

Sem cuidar de saber se os clientes têm pressa, com a legitimidade própria de quem, aos setenta, ainda se levanta todos os dias antes do sol para uma caminhada na cidade e umas braçadas na Laginha, o artista demora o seu tempo: ele demora, eu espero sem refilar e assim nos entendemos. 

Certo dia, depois de uma ausência de algumas semanas (nas quais recorri aos serviços da concorrência), vendo-me passar, inspecciona-me e lança: "Quem é que lhe fez isso?"; "Isso?"; "Esse serviço aí em cima?". Fez-me entrar para "resolver o problema", porque "um homem com mau corte não tem como andar na rua de cabeça levantada". 

Dez minutos depois, sem querer saber de pagamento, mandou-me à minha vida, não sem antes deixar um aviso: "eu que o apanhe mais uma vez nesses preparos e fica sem um cabelo que seja para contar a história".

Desta quase rotina, gosto do regresso aos clássicos e gosto, acima de tudo, de me olhar ao espelho e conseguir ver no reflexo um gajo que até parece já ter barba de gente grande.

3 de outubro de 2011

Teia


Há por aí muita parvoíce. Nos blogues, mostram-se as roupas que se vestem, aquelas que já se vestiram, combinações de saias, tops, blusas, sapatos, malas e demais acessórios. Nas redes sociais, copiam-se  e colam-se estados, como antigamente se reencaminhavam e-mails. 

Anda toda a gente preocupada com a privacidade que tem, que não tem, que perdeu, que vai perder, e decidem discutir o assunto num sítio que tem tudo a ver com partilha e ao qual todos chegámos por vontade própria.

Desocupados, ocupados, desocupados de quem se esperava ocupação, entopem as caixas de comentários dos sites de notícias com ódio destilado.

A Internet dá-nos liberdades. A de expressão e a outra, a de dever estar calado e escolher não o fazer. Espera-se de nós que tenhamos sempre uma opinião e nós temo-la, mesmo que só por ter.

Ligámo-nos uns aos outros, deixámos um rasto que nos persegue, criámos uma vida paralela e, às tantas, deixámos de saber onde começa o virtual e acaba o real.

Sou daqueles que está, um dos que se ligou. Não estou mais do que quero estar, porque, simplesmente, aquilo de meu que cá está não sou eu, apenas parte de mim.


2 de outubro de 2011

Chá


Não sei quando é que me tornei uma pessoa de chá, mas hoje bebo-o várias vezes ao dia. 

Prefiro-o preto e sempre que com um pouco de leite, sem açúcar . De manhã e à noite, com toda a certeza. Depois do almoço, se ao fim-de-semana.

Não sou grande fã de rotinas, mas gosto de rituais. A chávena que comprei propositadamente, a água a ferver, os minutos de espera. 

30 de setembro de 2011

Hoje


O toque às cinco e trinta,  última aula, camisola ligeiramente para cima, a descobrir o pulso, para ver o relógio, a professora de Inglês, o toque às seis e vinte. 

Como é que naquele tempo cinquenta minutos demoravam tanto a passar?

Paragem cheia de gente, autocarro, Rodoviária do Sul do Tejo. Torre da Marinha, Casal do Marco, Padaria Central, ponte, auto-estrada lá em baixo, Pinhal de Frades.

Ritmo acelerado, curva à direita, casa do dentista, curva à esquerda, casa da velha, fábrica das batatas fritas Dalimar. Sempre em frente, um prédio, outro, terceiro, quarto. D 27, primeiro esquerdo. Mochila na entrada, à rasca para mijar, casa de banho, ufa.

"Lavaste as mãos?". 

É Sexta-feira. Bom fim-de-semana.

29 de setembro de 2011

Monos

Uma das coisas que aprendi nestes anos que levo entre Angola e Cabo Verde é que tudo tem uma segunda vida. Não estou a fazer poesia, até porque não existe nada de lírico em ter o frigorífico avariado, que foi o que me aconteceu.

Lembro-me de ser garoto e de, lá em casa, sempre que se estragava alguma coisa, a primeira preocupação ser tentar repara-la.

Tudo era passível de conserto. Varinhas mágicas, ferros de engomar, televisões, rádios, máquinas de lavar, de barbear e por aí adiante.

Claro que nesses tempos os electrodomésticos tinham outra resistência, mas acho que o fazíamos, essencialmente, porque a vida nos era mais difícil.

Entretanto, Portugal transformou-se num canteiro de Wortens. Deixou de compensar arranjar o velho, porque passou a sair mais barato comprar novo.

Ainda assim, as coisas mudam quando não está tudo acessível ou quando, estando, o preço é quase pornográfico. 

Aqui onde vivo - cidade onde faltou o fiambre durante um mês - tudo tem uma vida muito para lá de útil. Há sempre alguma coisa a fazer, nem que seja apertar com um arame. Nada de se deita fora. 

A oficina onde deixei o frigorífico parece um cemitério de monos brancos, alguns dos quais meio esventrados, sem partes e peças que passaram para outros à procura de salvação. É que mesmo quando não há nada a fazer, há sempre alguma coisa que pode ser feita.





23 de setembro de 2011

Do Amor, esse filho da puta

... e das horas que ele nos dá.
Sobre esse assunto ouvirás dizer que o amor é onde tudo começa e acaba, a melhor coisa da vida e o que faz mover o mundo. Dir-te-ão que nada supera o acto de. Ouvirás tudo isto, o muito mais que te vão contar, e acreditarás.

Depois, sem saberes ao certo como é que a teoria sobre a qual te disseram se realiza na prática, chegará a hora em que julgarás amar alguém. Será cruel, será duro e dramático. Acharás que morres, que assim não pode ser, que sozinho(a) não és capaz. Beijarás e com esse beijo quererás casar, viver feliz para sempre. Afinal, estarás na idade em que o teu eterno é imediato e terminará algures entre o 8º e o 9º ano. 

Crescerás, ainda bem e ainda assim. Farás sexo com outra pessoa que não aquela. Não vai ser tão bom quanto tinhas imaginado, mas sobre isso falarás com propriedade. Eis-te chegado(a) ao clube dos que amam abaixo da cintura. 

Voltarás a amar mais uma vezes, a apaixonar-te pelo menos - porque entenderás a diferença - e de cada vez olharás para o ridículo do teu passado, do tão estúpido(a) que foste.

Cairás e levantar-te-às. Pensarás ser a última, que desta é que é, que agora nunca mais. E apesar das tuas certezas, andarás em círculos, a fazer hoje o que ontem nem pensar.

Até que um dia repousarás. Perceberás que amor é isto e não aquilo. Nem tão muito como antes, nem tão pouco como depois.

Amar-te-às primeiro e amarás só a quem te ama. Não reverterás a equação. Estarás mais esperto(a), mais atento(a), até mais desconfiado(a). Mas estará pronto(a) para perceber que o teu tempo é o presente.

Porque hoje é o dia e não há momentos certos. Que somos nós que nos temos, mas que também é bom sermos tomados por outro alguém. 

22 de setembro de 2011

Inês


Do que eu gosto nela é do seu pragmatismo, da certeza que coloca à vida e da forma como, tendo idade para não saber grande coisa a seu respeito, tão bem conhece o chão que pisa.

Do seu talento, dos 19 valores como média de final de curso, da ida para estudar e trabalhar em Nova Iorque, dos prémios e da carreira promissora, não tiro nada, a não ser a naturalidade de quem, satisfeito, já esperava que dali resultasse algo que, podendo não ser nestes termos, se-lo-ia sempre em outros, no mínimo, semelhantes. O que me importa é a assertividade que coloca naquilo que faz.

Vi-a crescer, como quem cresce. Tornar-se mulher, como quem se torna mulher. Fazer-se, como quem se faz.  É disso que se trata: ser como quem tem de ser.

Dela ficaria a avó Minda orgulhosa. Do alto do seu metro e cinquenta, sorriria satisfeita por, como era seu desejo, um dos netos ter encontrado na música uma forma de ser feliz.

Boa vida, Inês. Boa vida e boa sorte.

20 de setembro de 2011

O velho


Passado um bocado, com as ideias amaciadas pelo álcool, mantendo ainda a lucidez, revela o seu lado mais sentimental.

As rugas crivadas no rosto conferem-lhe, quase sempre, um ar duro, de homem sofrido, amargurado. Naquele fim de tarde, porém, sentado num banco de madeira gasta, com as costas apoiadas na parede por caiar da sua pequena casa e os olhos postos no mar que, como poucos, e como a nada, conhece bem, o seu rosto diz de si apenas que o tempo passou. "Não te foi fácil esta passagem por aqui, meu velho", parece segredar o lado mais visível da idade.

A garrafa de qualquer coisa forte - pouco interessa o que é, desde que forte - está a menos de um quarto. Existem dois copos. O seu, nunca vazio - embora nunca cheio - poisado por breves segundos na laje de pedra. O outro, do interlocutor que o acompanha naquele fim de tarde, metade cheio, a baloiçar entre dois dedos.

Quem o escuta é muito mais novo. Quem o ouve nas seis e meia do outono em Agosto sou eu próprio. "Está frio aqui", arrisco enquanto me preparo para sentar à sua frente, a não mais de um metro de distância. "Não se sente aí, vai tapar a vista e nunca devemos virar as costas ao mar", avisa, sem responder ao desabafo meteorológico.

"Quer saber o quê, afinal?", pergunta indisposto. Bem sei que foi a contragosto que consentiu receber-me. Chegou àquela fase da vida em que não deve palavras a ninguém. Deve-se a si próprio e, mesmo assim, só para não cair em omissão.

Quero saber tudo, na realidade. Dos tempos passados, das memórias de criança, da primeira vez no mar, dos sustos, as desilusões, o encanto e o seu oposto.

"Já volto", diz, enquanto se levanta. Regressa com a garrafa e os copos. Coloca-os frente a frente, servindo-os. Mira-os, na sua 'bedjice' e estende-me o menos estalado.

Fala. Sobre o que lhe perguntaria e o que não julgava apropriado querer perguntar. Não houve um mote,  um 'como é que...?'. 

Duas horas e trinta minutos de uma existência quase centenária, num monólogo sem interrupções, porque nenhuma faria sentido. Mostro-me atento, interessado. Mais, estou cativado. 

De repente, um silêncio, o primeiro. "A minha vida foi uma merda, sabe? Mas não a trocava por nada". Ergue-se com um ligeiro esgar, arrasta os pés e ao entrar em casa, antes de fechar a porta, avisa: "não se atreva a roubar-me os copos". 


19 de setembro de 2011

Número 42

A Dona Ricardina voltou-se a esquecer de tirar a roupa da corda. Pendurou-a ao final da manhã, altura em que o sol cobre de luz directa a apertada rua e ilumina as fachadas envelhecidas. A humidade que desce neste final de tarde rapidamente poisará sobre as blusas e a saias - negras, do luto - as toalhas e os lençóis - brancos, de simplicidade.

Ainda não se vê o número 42. Ao longo dos 200 metros de ombreiras alinhadas há uma mistura de cheiros no ar. Aqui, torradas e chá. Adiante, a cebola queimada do refogado há demasiado tempo no lume.

Nem todas as casas estão ocupadas. Em muitas, a tinta em sobrepostas camadas começou a sair, desvendando o cimento, também ele envelhecido e rasgado, como se de rugas se tratassem as fendas abertas com os anos.

Uma portada aberta balança com a aragem. Devagar. A espaços, percebe-se o chiar das dobradiças a precisar de óleo.

A estrada é o passeio, mas por aqui passam poucos carros. De vez em quando, como acontece com este Fiat verde escuro, matricula de 92, alguém se lembra de tapar o caminho. De nada servem os avisos da câmara e os reparos dos vizinhos. "Mas custa muito estacionar no parque, merda?"

Pedi ao empreiteiro que pintasse a porta de verde e ele pintou, só que por cima do vermelho que agora se volta a ver.

Cansado, procuro a chave. Bolso da direita, da esquerda; casaco; pasta. "Onde é que a meti?". Um passo atrás, subo o olhar pela parede e procuro luz a sair por uma das janelas no primeiro andar.

Gosto de sítios com história. Às casas, prefiro-as antigas. Sempre que me mudo, transporto comigo o que não deixo para trás. E deixo sempre alguma coisa. Seja um utensílio de cozinha, um varão de cortina, um objecto pessoal dentro da gaveta.

Por isso, quando chego de novo, procuro sempre um sinal da presença que me antecedeu. A mancha de uma quadro que já esteve pendurado, a marca dos móveis no chão de madeira, um pano do pó ou as molas na corda da roupa.

Preciso do que contar. Encontro e invento, como inventada é a parte deste texto que não chegou a acontecer. Imagino. Gosto da sensação de continuidade dos lugares que eram antes de chegarmos e que ficam depois de partirmos.


16 de setembro de 2011

Memória

Riram-se sem saber que era por eles que os outros choravam.

A memória. É também disso que somos feitos. Individual e colectivamente, a nossa história, as recordações que trazemos, as que não vivemos mas que nos contaram, são parte de nós. Há algo mais do que a matéria das carnes.

Algo de intangível e imensurável consubstancia-nos, dá conteúdo à forma. Felizmente, o presente não nos basta, não me basta a mim, pelo menos. 

Perco muito tempo a tentar perceber o porquê das coisas e gosto de enquadrar o hoje no dia anterior. Na minha profissão chamamos-lhe 'dar contexto'. Contextualizar um acontecimento, perceber a conjuntura - causa, efeito - ajuda-nos a inteligir melhor a realidade.

Uma sociedade sem lembrança, sem conhecimento da sua história, é uma sociedade ignorante, irresponsável e, acima de tudo, uma sociedade frágil, exposta.

Não podemos esperar dos outros que assumam a sua condição de parte de um todo, se a eles o colectivo não passa de algo conceptual, sem conversão prática.

Vem isto a propósito de uma conversa recente com um amigo aqui do Mindelo (de Cabo Verde), sobre o que não está a ser feito para posterizar um passado que, gostemos ou não, é o desta cidade. Edifícios históricos são demolidos ou desprezados, calçadas são substituídas por asfalto, riquíssimas colecções de fotografias ficam ao abandono.

A sede pelo progresso, pelo que é moderno, pelo "que se faz lá fora", fazer igual, ser igual, ter igual, tolda-nos o juízo perfeito. Faz de nós carneirada. Estúpidos ao ponto de não percebermos que, se somos iguais, não há diferença que justifique uma visita. Os lugares interessam-nos pela singularidade.

O passado é o que nos une. O suor e as lágrimas que os bravos derramaram, os edifícios que braços fortes ergueram, os poemas que Homens iluminados escreveram.

Existe, em muitos países, a tentação de apagar o que foi, ou parte dele. Fazem-no porque, fazendo-o, nos contam apenas o que lhes interessa que saibamos, não sabendo eles próprios, porém, que uma Nação sem ontem, é, quase de certeza, uma nação sem amanhã. Sozinhos não nos bastamos. 

15 de setembro de 2011

Dos sítios


Se pudesse escolher, sem cuidar de nada mais a não ser da vontade, escolheria morar num espaço híbrido, algures entre o campo e a cidade. Preciso dos dois, ou do melhor de cada um. Do sossego rural e da vivacidade urbana, do silêncio e da confusão, do não acontecer nada e do acontecer tudo.

Sou cosmopolita numa razão não muito exacta. Gosto de me fazer rodear de gente diferente e adapto-me bem a qualquer situação. Sinto-me em casa com facilidade e acho sempre que o sítio onde cheguei é aquele onde vou ficar.

Sou um campónio com muito pouco de agrícola. Não me fascinam por aí além os animais e as plantas, apenas a serenidade, o silêncio, o conforto do conhecido, as noites estreladas e o vento de outono.

Assiste-me uma inquietude e um desassossego inebriantes. Vou, quedo-me, volto a partir. Há nisto algo de epopeico - num canto à escala, sem poesia nenhuma, claro - mas também de profundamente extenuante.

Boa, má; enorme, pequena; Assim é esta sensação de perceber que se pertence a todo o lado, sem se ser (sendo-se cada vez menos) de sítio algum.

Para onde irei, no dia em que quiser voltar?

14 de setembro de 2011

Pepetela

"Quem sabe, talvez a transgressão nunca fosse possível. Mas a granada existiu, essa granada que traçou no ar espantado do planalto a figura da mulher amada. Mas uma granada, mesmo com tal magia, pode materializar um Mundo?"

Foi leitura de um fim-de-semana recente esta Parábola do Cágado Velho. Não leio tanto quanto gostaria,  mas tenho desde há muito o hábito de me fazer acompanhar sempre de um livro. Trago-o comigo e chego a estar uma ou duas semanas sem o tirar de dentro da pasta. Ainda assim, ele lá continua, à espera de ser companhia numa pausa para café. 

Dentro da mesma pasta tenho também um bloco que uso para trabalhar e um outro, mais pequeno, de capa dura, que espera o dia em que me torne escritor, usando-o para posterizar ideias geniais.

Voltando aos livros, consumo-os muito mais quando saio de casa, durante dias de passeio ou mesmo de trabalho, desde que fora da minha área geográfica de todos os dias.

Foi assim com Parábola. Em Santo Antão, encontrei-o por mero acaso numa mesa de cabeceira na casa onde fiquei e, sem pedir autorização à sua proprietária, assumi-o como meu durante as 48 horas que se seguiram.

Gosto do Pepetela. Quando em Luanda, cruzámo-nos algumas vezes em eventos dos quais ambos tomámos parte. Trabalhava na altura para um canal de televisão e entrevistei-o brevemente em duas ou três ocasiões. Consentiu em agendar uma conversa mais demorada, que nunca chegou a acontecer.

Gosto, e volto à palavra porque é de gostar que se trata, da forma como escreve, mas também do seu ar sério e pesado. Nos seus livros, de contos e lendas tão simples, simples era a vida que nós complicámos, há sempre algo mais do que aquilo que o papel nos diz. 

Considero-o um dos maiores escritores africanos da actualidade, como virtuosa é a geração de Homens de letras que representa. 

Sendo eu neto de uma avó e filho de um pai que nasceram e cresceram a amar aquela terra para lá do Equador, sempre que o leio recordo-me das muitas histórias que ouvi enquanto crescia. Lembro-me ainda daquilo que eu próprio experimentei nos meus tempos de Angola.

Tenho tido a oportunidade de viajar, viver e estar em sítios diferentes e distantes uns dos outros. Tenho tido a sorte de conhecer gente extraordinária, que parece pertencer a outro mundo que não o nosso. Pepetela está nessa lista. 



12 de setembro de 2011

Llanto por un hijo

Reuters
Robert Peraza llora en el World Trade Center a su hijo David, que murió hace 10 años en los atentados del 11 de septiembre.... e provavelmente, a foto do ano. 

11 de setembro de 2011

Terrorismo

Dez anos depois, os ecrãs de televisão voltam a encher-se de imagens dos atentados terroristas contra o World Trade Center, em Nova Iorque. Na verdade, tem sido assim desde 2001. Sempre, a 11 de Setembro - quando não noutras datas - os alinhamentos dos telejornais recuperam aqueles minutos que todos já vimos e revimos 1001 vezes.

Terrorismo. Com o mediatismo que só os Estados Unidos conseguem conferir a qualquer acontecimento, a palavra entrou no léxico do cidadão comum e o conceito ganhou uma nova dimensão. 

Não chego a perceber até que ponto entrámos, a partir de então, numa nova ordem mundial. Houve uma renovada preocupação com a segurança global? Talvez. Mas acima de tudo, os atentados e  aameaça da repetição da tragédia têm servido como argumento político para justificar uma mudança de paradigma na forma como os estados se relacionam com os cidadãos (os seus e os outros) e na forma como, com o despudor de sempre, agora enquadrado num dúbio "supremo interesse nacional", as autoridades invadem e condicionam as liberdades individuais.

Ao abrigo da legitima-defesa, permitiram-se, indulgentemente, assassinatos e torturas, invasões de países soberanos, destruição de cidades e guerras sem fim. É que o tal mundo civilizado também faz justiça com as próprias mãos. 

9 de setembro de 2011

Islândia


Reiquejavique, capital da Islândia


"O castigo por não participares na política é acabares 
governado por pessoas piores do que tu"
Platão

Li ontem esta frase no blogue do Rui Tavares e desde então ando com ela na cabeça. Chamem-me chato, mas não me canso de insistir - e vou repetir a ideia tantas vezes quantas forem necessárias - que todos nós, cidadãos que não fazem política partidária, temos também uma grande responsabilidade na situação a que o nosso país. 

Pela nossa inércia, pelo nosso não querer saber, fomos deixando que os políticos profissionais, que, a ciclos, e desde há quarenta anos, governam Portugal, usassem e abusassem da coisa pública.

Ser cidadão, não se resume a ser-se contribuinte. Esse é o papel que que quem está no poder espera de nós.  Para a elite, quanto menos interventivos e conscientes formos, melhor. Ser cidadão é estar vigilante, é zelar pelo bem comum, é fazer parte da colectividade e defende-la como maior que o interesse individual. 

Nestes tempos de FMI fala-se - como tão bem escreveu o Rui - do exemplo islandês. A Islândia não é só retórica. Faz sentido, por ser verdade, apontar o caso de sucesso cívico deste país nórdico insular.

Gosto de estadistas e de líderes de rara elevação. A Portugal de 2011 faltam estes Homens maiores. Mas a Portugal de hoje faltam, acima de tudo, portugueses de vontade e com vontade. Gente de coragem, que pegue no seu próprio destino.

Temos no poder uma direita ultra-conservadora. Temos na oposição um partido que alinha com quem deveria discordar e uma esquerda radical que prefere faltar às reuniões onde se discute o futuro do país (é agora que sou lapidado pelos meus amigos comunistas).

A Islândia é o exemplo de que o mundo é um só, sim, mas que não é, nem precisa de ser, todo igual. 

8 de setembro de 2011

Mindelact 2011

Cartaz oficial da 17ª edição do Mindelact

Começa amanhã, no Mindelo, em São Vicente, a décima sétima edição do Mindelact, o festival internacional de teatro da cidade e uma das manifestações culturais mais importantes não só do país, como de toda a região africana em que Cabo Verde se insere.

Não estou a exagerar. São dezenas de grupos teatrais, actores e actrizes com vivências e percursos tão diferentes, como distintos são os países de onde chegam. Espanha, Brasil, Itália, Portugal, França, Marrocos, Angola, Alemanha, Polónia e, claro, Cabo Verde.

Aliás, a peça de abertura do festival, Bodas de Sangue, de Garcia Lorca, é assinada por um colectivo nacional que, esta sexta-feira, estreará a sua quadragésima sexta produção.

Nesta cidade há teatro. Bom e mau, como em tudo. Mas mais importante do que isso, há iniciativa e capacidade.

Para mim, que só cá estou há dois anos, o Mindelact é uma lição: a prova em como, num país tão marcado pela separação entre quem veste de verde e quem equipa de amarelo, se arregaçarmos as mangas, pusermos de lado o discurso fatalista, as guerrilhas pessoais e as diferenças ideológicas, conseguimos resultados de que todos, todos sem excepção, se podem e devem orgulhar.


7 de setembro de 2011

Silêncios


Não sou grande coisa com sentimentos. Aliás, corrijo-me, sou uma merda com sentimentos. Bom ou mau, prefiro quase sempre guardar o que sinto, ao invés de o dizer imediatamente. Nas relações de amizade e, especialmente, nas amorosas rendo-me ao comodismo do silêncio. 

Claro que isto é um disparate. O som oco das palavras que não são ditas é ainda mais ensurdecedor do que aquele que sai de uma discussão acesa, cheia de argumentos e opiniões. Ninguém preserva para sempre o que, por ser sobre outro alguém, não lhe pertence verdadeiramente.

Talvez por isso seja um pouco rancoroso. Acho sempre que perdoo depressa, que ultrapasso e esqueço o assunto mas afinal, dias, semanas ou meses depois, dou por mim a reavivar tudo, a fazer renascer uma discórdia passada. 

Acontece que as coisas fazem sentido quando fazem sentido. Se alguém me desilude hoje, então hoje é o tempo certo para que se saiba que assim foi.

Gostava de não ligar, de esquecer. Não consigo. Fica tudo aqui dentro, a consumir-me, fingindo dormir mas esgravatando. Faço metade do que quero fazer: evito o confronto, mas não passo por cima.

Sei que esta é uma parte importante da minha personalidade. Mas também sei - e portanto não pensem que me fazem passar por parvo - que não é a essencial. 

Quando estamos chateados com alguém, tendemos a reduzir essa pessoa ao pior dela própria. Como se, de repente, tudo o que de bom ela em nós representa perdesse o sentido. Aos nossos olhos, nem dois braços, nem duas pernas, rosto ou corpo inteiro. Ali, um sujeito que sequer ao nome próprio pode aspirar.

Felizmente, somos sempre mais do que quem olha vê. Felizmente, somos sempre mais do que quem vê quer ver.