29 de novembro de 2010

Cuidados paliativos

Quando, já lá vão quase dez anos, a minha avó teve o seu segundo e mais forte AVC e depois de uma curta passagem pelo hospital, colocou-se um desafio a toda a família: o que fazer com ela dali em diante?

Aos 80 anos, nunca tinha vivido sozinha. Foi mãe de sete filhos, dois rapazes e cinco raparigas. Duas tias minhas, que nunca chegaram a casar, foram sempre o seu braço direito.

Contudo, o desafio que se colocava a todos os filhos e netos, na porta do banco de urgências, era completamente diferente. Já não estava em causa acompanhar um senhora de idade ao médico ou garantir que a sua fraca memória não originaria um qualquer acidente doméstico. Perante nós estava a impaciência do director clínico de uma unidade hospitalar sobrelotada e que, só a custo e depois de um telefonema para um contacto no conselho de administração, tinha consentido em não deixar uma doente incapacitada nas mãos de uma família em completo desamparo.

A minha avó estava, como permaneceu nos oito meses seguintes, os últimos da sua vida, num estado de quase coma. Apesar de respirar sozinha, deixou de falar e, passado algum tempo, de ver. Alimentava-se por intermédio de uma sonda e raramente respondia a algum estímulo.

Fomos confrontados com uma situação nova para todos. O meu avô, que teve Parkinson, precisou de acompanhamento, mas manteve até ao fim um pequeno grau de autonomia, suficiente para evitar a necessidade de cuidados técnicos especializados permanentes.

Por mais unidos que fossemos - e somos, em momentos de crise - seriamos, percebemos de imediato, incapazes de lidar com a situação. Em causa estava a dignidade de alguém que muito amávamos e que, desde sempre, tudo tinha feito pelo nosso bem-estar. Percebemos também que não se tratava de um período de convalescença. Mais ou menos longo, o tempo que se seguia seria de uma lenta agonia. Era preciso fazer de tudo para atenuar ao mínimo possível o sofrimento.

Felizmente, encontrámos uma residência de iniciativa religiosa com óptimas condições técnicas e um quadro de pessoal de grande sentido humano. Mais uma vez, por conhecimentos e influência de um familiar que, à data, ocupava um cargo de responsabilidade na Segurança Social, conseguimos uma vaga.

Foi ali que a avó 'Minda' fez a sua última caminhada. Tenho a certeza de que a escolha que fizemos foi, dadas as circunstâncias, a melhor possível. Nós, que sempre nos mostrámos contra o internamento em lar, aceitámos a evidência e assumimos a nossa natural incapacidade. Às vezes, estar à altura é saber reconhecer que não somos capazes.

Apesar do trabalho meritório dos médicos, das enfermeiras, das técnicas e das auxiliares do centro, a sua vocação não era aquela. Fizeram-no num acto de boa-vontade e com um empenho muito para lá das suas responsabilidades contratuais.

Pergunto: quantas famílias não têm a mesma sorte que nós tivemos? Quantas pessoas são deixadas à sua sorte em hospitais ou mesmo em casa, sem acesso a cuidados especializados que garantam um fim de vida com dignidade e sem dor?

Quantos homens e mulheres, velhos e jovens, a braços com uma situação clínica irreversível, mas com desfecho certo, sofrem mais do que teriam de sofrer só porque não existem, ou escasseiam, em Portugal estruturas de saúde e profissionais vocacionados para a prestação de cuidados paliativos?

O respeito pela vida humana é também o respeito pela inevitabilidade da morte e pela garantia de que a última hora chegará sem um sofrimento desnecessário. Perceber e praticar isto é uma expressão de desenvolvimento civilizacional.


No Facebook, sítio onde perdemos tempo com grupos, movimentos e aplicações de utilidade e interesse duvidosos, nasceu uma causa que merece o meu apoio e que espero possa vir a merecer o vosso. Chama-se "Pelos Cuidados Paliativos em Portugal" e conta já com mais de 35 mil membros.

21 de novembro de 2010

Deixamos o tempo correr e embora saibamos que estamos mais velhos, não aceitamos que algo de mal possa encurtar o nosso caminho para a eternidade. Um mais um são dois e quem está vivo, morre. Agora, caramba, se eu vou morrer, se vamos todos, ao menos que seja quando tiver de ser e não antes.

Uma mensagem. "Despeço-me de ti". Como assim? Desculpa lá, não estou a perceber? O que é queres dizer com isso? Vais viajar. Tens as malas feitas e um bilhete de ida. Próxima estação, sete palmos de terra.

Ainda ontem estávamos lá em baixo, na mesa de sempre, e hoje estás para aí, armado em valentão, a pensar que vais sozinho. Deixa-te mas é de merdas. Não vais a lado nenhum. Ou vá, se tiver mesmo de ser, fala com o gajo que te marcou passagem e pede-lhe mais um tempo. O máximo possível. Estou aqui a uma certa distância e gostaria de te dar um abraço. Só não bebemos um copo, porque foi isso que te fodeu. Isso e os cigarros. Aquela tosse nojenta tinha de ser presságio de qualquer coisa. "Não, nem pensar". Pois não, claro que não.

Meu grande filho da puta, que toda a gente te avisou. Mas apesar de seres um tipo inteligente, nunca foste muito esperto. Portanto, o bagaço para o fígado e o tabaco para os pulmões. Espanta-me que não tenhas dado em paneleiro, só para dares cabo do cu.

Agora, já que te meteste nesta embrulhada, cuida de arranjar uma maneira de sair dela. Mesmo que não consigas, ao menos terás tentado.

19 de novembro de 2010

O que [não] sou

Descobri há dias uma fotografia dos meus primeiros tempos de escola. No final da década de 80, lá estávamos nós, em duas filas, nos degraus que do portão davam acesso ao pátio.

A Susana, a Bárbara, o Vítor, a Vanda, o André, a Raquel, a professora Antonieta e muitos outros, cujo nome o tempo se encarregou de apagar da minha não muito prodigiosa memória. De todos, mantenho contacto com apenas duas pessoas. Como não poderia deixar de ser, perdi o rasto à maioria.

Passaram-se mais de 20 anos desde o dia em que o fotógrafo, cumprindo uma tradição quase protocolar, fez a sua visita anual à numero 1 da Torre da Marinha e gravou na película do rolo Kodak - nessa altura, digitais, só os relógios da Casio - a inocência de quem, aos 6 anos, não faz a mínima ideia do que ainda está para vir.

Lembro-me do pão com manteiga que levava na mochila, juntamente com o pacote de Nesquik ou Bongo. Lembro-me de jogar ao mata e de, já na altura, não ser especialmente dotado para as actividades físicas. Lembro-me de ver o Vítor a fazer chichi nas calças em plena sala de aula. Da vez em que escrevi "serra" com "ç" (e do castigo que se seguiu) e da outra, em que a Paula (afinal também me lembro dela) me espetou na testa o lápis acabado de afiar.

A Susana Moreira foi a minha primeira 'namorada' e nós dávamos beijinhos envergonhados debaixo de um kispo, escrevíamos bilhetes apaixonados e toda a gente achava muita piada ao casalinho.

O tempo passou. Tenho tido uma vida boa. Ensinaram-me a lutar por aquilo que quero e foi isso que sempre fiz, às vezes de forma obstinada, mas sem nunca perder a dignidade ou o respeito pelos outros e por mim próprio. Acontece que não sei ouvir um "não" como resposta.

Acho que sou um homem justo. Evito fazer julgamentos primários e dou sempre uma segunda (uma terceira, uma quarta) oportunidade às pessoas. Talvez por isso não tenha inimigos ou não os conheça.

Sou jornalista porque quis ser. Antecipei-me e conquistei o meu lugar. Procuro merecer a confiança que depositam em mim. Na vida profissional, tanto como na pessoal, mais do que fiel, sou leal. Se estou, acredito. Se acredito, entrego-me. Por causa disso, passei ao lado de muitas oportunidades e recusei muitos convites, mas não há quem me possa apontar o dedo e dizer que estive num sítio, com a cabeça noutro.

Não sou um tipo muito sociável. Falo com toda a gente e disfarço a timidez com um humor sarcástico, mas raramente aprofundo relações de amizade. Dificilmente troco um desabafo que não de circunstância.

Não sei e não quero aprender a dançar. Gosto de ir a concertos, mas não me procurem nas primeiras filas, a não ser que sejam lugares sentados. A verdade é que também não percebo muito de música. Aliás, não percebo muito de muita coisa, a não ser de política, o que talvez faça de mim um chato.

Sou dos que cobra atenção. Se dou, quero em troca. Não precisa de ser hoje, mas terá de ser um dia e de preferência não muito longínquo. Não gosto de balanças desequilibradas. Choro com a mesma facilidade com que me rio à gargalhada e não tenho vergonha nenhuma disso.

Já conheci muitos países, já vivi em três. Comi coisas inimagináveis, em restaurantes luxusos ou tabernas com moscas, ratos e baratas. Bebi mais do que devia, embora sem nunca perder a compostura. Nunca fumei droga e não tenho curiosidade em experimentar.

Amei incomensuravelmente e fingi gostar de alguém. Também me enganei muitas vezes em relação a isto. Envolvi-me com a pessoa errada e magoei quem menos merecia. Mudei (ou tentei mudar) por alguém. Fiz amor, fiz sexo, fodi. Tive e dei prazer, mas também já correu mal e a culpa foi minha.

Aquilo e aquele que sou, imensa imperfeição, é o reflexo de tudo o que vivi e do que ambiciono viver. A minha essência é o resultado do somatório dos dias passados, presentes e futuros, elevados à categoria de semanas, meses e anos.

Sou aquilo que sou. Gostem ou não, este aqui sou eu.

5 de novembro de 2010

Alguém de boa fé é capaz de dizer que este menino não é o filho que qualquer mãe deseja?

Bom dia e uma canção

Em Cabo Verde, na sétima noite após o nascimento de um bebé, junta-se família e amigos (com um ou outro penetra pelo meio, que quer mesmo é comer à borla) e, à meia-noite, canta-se esta canção:

Ô rosto doce de odjo maguado,
Es bo cudado
Botal pa traz
Nhor Dés ta dano um bida de paz
De odjo maguado

Ná, ô menino ná.
sombra rum fuji de li!
Ná, ô menino ná,
Dixa nha fidjo dormi

Sono de bida, sonho de amor
Ou graça, ou dor,
Es ê nós sorte...
Se Deus, más logo, mandano morte,
Quem que tem medo
Ta morrê cedo.

Toma nha ombro, encosta cabeça
Já n'dabo peto,
Amá "ragaz"
Ô espirito doce, ca bo tem pressa
Deta cu jeito
Dormi na paz