30 de janeiro de 2013

Viver sem joelheiras

São para mim tudo as pessoas que não se conformam. Sou um bocado assim, também. Quanto temos um problema, se estamos insatisfeitos, o melhor que podemos fazer - e talvez a única coisa a ser feita - é arregaçar as mangas e reverter a situação. 

Da minha experiência, sei que nem sempre conseguimos (ou pelo menos com os resultados esperados), mas alguma coisa, nem que seja o embrião de uma mudança, fica ali, a germinar. 

No final do ano passado, uma amiga de muita estima disse-me que se preparava para largar tudo: a cidade e a família que ama, os amigos que adora e um emprego confortável e que lhe garantia um futuro sem grandes sobressaltos. 

Isso não lhe basta. O emprego e a cidade, um e outro - que no caso se relacionam - não lhe bastam. Porque precisa de novos horizontes, porque olha para a secretária do lado e não se revê na tacanhez das ideias e das vidas feitas. 

Disse-lhe o que pensava: se vais, corta de vez. Se é para cortar, que seja a direito. Se vais arriscar, arrisca sem medo. 

Quando arriscamos, existe sempre a possibilidade de correr mal. Mas o resultado do atrevimento, na sua imprevisibilidade, só é conhecido depois de feito o exercício. 

Sou assim pelo risco. Pelo tentar. Por isso, apaixonam-me as pessoas ousadas, que perseguem ideais, que sonham, ambicionam. 

De uma forma ou de outra, todos procuramos o nosso lugar no mundo, na cidade latu sensu. Há quem o encontre em rotinas e dias programados Há quem o deseje em empregos estáveis. E depois existem os outros, os que não o encontram numa vida de longo prazo e que por isso mesmo precisam de continuar a procurar. 

Será essa a principal maravilha dos tempos modernos. É fácil - é muito mais fácil, pelo menos - concretizar a inquietude.


12 de janeiro de 2013

Nota breve sobre os silêncios

Com a idade, vai-se tornando cada vez mais óbvia a minha incapacidade para conversas de circunstância. Com a idade também - e esta é a parte boa - habituei-me ao facto e aceitei-o, até. 

Percebi, enfim, que nunca serei daquelas pessoas capazes de passar horas a trocar trivialidades com um qualquer interlocutor. Para mim, uma conversa deve ser suculenta. Pode até estar cheia de disparates, mas ainda assim, no registo, suculenta. 

Foi uma conquista importante. Deixar de me sentir obrigado a manter viva uma troca de palavras só pelo cumprimento de uma obrigação social (?). Agora, assumo os silêncios. 

Se perante alguém, não tenho nada para dizer, então o que tenho a dizer é isso mesmo: nada. Libertador.

8 de janeiro de 2013

Miguel

Traz no olhar (como nos ombros caídos, no andar arrastado, nas costas curvadas) a tristeza de sempre. Empurra a porta, que alguém deixou encostada, com uma mão, enquanto na outra segura o saco das compras. Entra no prédio frio e dirige-se às caixas do correio. Tem a jeito a chave e com ela faz rodar a pequena fechadura. No interior, nada. As notícias porque espera insistem em não chegar (nem repara que hoje já ninguém escreve em papel). Não chegarão, mas ainda não o sabe. Ou talvez o saiba e prefira negar-se a aceitar.

Estamos em 2009 e à mágoa guarda-a desde há dois anos. Há 746 dias, aliás, e contou-os assim, exactos.

No saco das compras a que nos referimos no início, e ao qual voltaremos por mais uma vez além desta, está o essencial - e nada mais do que isso - para se manter viva. Come por verdadeira necessidade, não encontrando no acto o mais ínfimo gáudio. De resto, prazer de qualquer espécie é nela substantivo abstracto.

- Miguel - disse ao chegar a casa.

- Miguel - repetiu ao não obter resposta.

- Miguel - procurou no telemóvel.

- Miguel - disse-lhe a voz do outro lado a meio da frase "Olá sou o... e não posso atender". 

- Miguel - pensou repetidas vezes nas horas seguintes. 

- Miguel - contou a toda a gente, do ex-marido ao resto da família. Da polícia aos amigos. Dos vizinhos a desconhecidos. 

- Miguel - chorou como ainda chora sempre que se aproxima do quarto, intacto, como no dia em que Miguel, demasiado novo para não estar ali, desapareceu. 

A cama continua por fazer, a roupa ainda está espalhada e a secretária onde estudava e fazia os trabalhos de casa (ou fingia fazer uma e outra coisa) permanece desarrumada. Nos dias, raros, em que não sente que morre, diz, como se fosse ouvida, "olha como é que deixaste o quarto". 

O pão, os iogurtes, as maçãs, o saco vazio que aperta nas mãos. Fixando o olhar num ponto indefinido, paralisa.

- Miguel - volta a chamar. 

Há uma lágrima - provavelmente sempre a mesma - a escorrer-lhe pelo rosto. Desencontraram-se para nunca mais. Em suspenso, recomeça a cada dia, ignorando que o ciclo não vai ter fim.