8 de janeiro de 2013

Miguel

Traz no olhar (como nos ombros caídos, no andar arrastado, nas costas curvadas) a tristeza de sempre. Empurra a porta, que alguém deixou encostada, com uma mão, enquanto na outra segura o saco das compras. Entra no prédio frio e dirige-se às caixas do correio. Tem a jeito a chave e com ela faz rodar a pequena fechadura. No interior, nada. As notícias porque espera insistem em não chegar (nem repara que hoje já ninguém escreve em papel). Não chegarão, mas ainda não o sabe. Ou talvez o saiba e prefira negar-se a aceitar.

Estamos em 2009 e à mágoa guarda-a desde há dois anos. Há 746 dias, aliás, e contou-os assim, exactos.

No saco das compras a que nos referimos no início, e ao qual voltaremos por mais uma vez além desta, está o essencial - e nada mais do que isso - para se manter viva. Come por verdadeira necessidade, não encontrando no acto o mais ínfimo gáudio. De resto, prazer de qualquer espécie é nela substantivo abstracto.

- Miguel - disse ao chegar a casa.

- Miguel - repetiu ao não obter resposta.

- Miguel - procurou no telemóvel.

- Miguel - disse-lhe a voz do outro lado a meio da frase "Olá sou o... e não posso atender". 

- Miguel - pensou repetidas vezes nas horas seguintes. 

- Miguel - contou a toda a gente, do ex-marido ao resto da família. Da polícia aos amigos. Dos vizinhos a desconhecidos. 

- Miguel - chorou como ainda chora sempre que se aproxima do quarto, intacto, como no dia em que Miguel, demasiado novo para não estar ali, desapareceu. 

A cama continua por fazer, a roupa ainda está espalhada e a secretária onde estudava e fazia os trabalhos de casa (ou fingia fazer uma e outra coisa) permanece desarrumada. Nos dias, raros, em que não sente que morre, diz, como se fosse ouvida, "olha como é que deixaste o quarto". 

O pão, os iogurtes, as maçãs, o saco vazio que aperta nas mãos. Fixando o olhar num ponto indefinido, paralisa.

- Miguel - volta a chamar. 

Há uma lágrima - provavelmente sempre a mesma - a escorrer-lhe pelo rosto. Desencontraram-se para nunca mais. Em suspenso, recomeça a cada dia, ignorando que o ciclo não vai ter fim.


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