31 de dezembro de 2012

2013

Quando criança, talvez nos meus 6 ou 7 anos, à pergunta "o que é que queres ser quando for grande?" costumava responder "Presidente da República". Cresci mais um pouco e percebi que a vocação, afinal, seria para outras áreas mais dentro da lei.

Tenho muita sorte e digo-o muitas vezes (porque me acho realmente um privilegiado): há quase treze anos que faço aquilo que sempre sonhei fazer. E nunca precisei de fazer outra coisa que não isto. À minha volta, vejo tanta gente com talento, com tanto para dar, agarrada a empregos que não lhes dizem nada e a vidas aborrecidas que lhes tiram os sorrisos e só me posso considerar um sortudo.

Mas a sorte também se conquista. Com trabalho, abnegação e muitas, muitas horas de entrega àquilo que acreditamos valer a pena. Na faculdade, tive um professor que, além dos péssimos hábitos de higiene, tinha uma frase que usava sempre que nos queria fazer entender. Dizia mais ou menos assim: "só depois de terem feito a vossa parte é que têm direito de reclamar se as coisas não vos correrem bem". 

No fundo é isto. Fazer a nossa parte. No limite, podemos fazer até o que nos compete e mesmo assim não resultar. Mas desistir antes de tentar, é assumir a derrota sem sequer termos entrado em campo.

Os bons empregos conquistam-se, a realização profissional e pessoal alcança-se. Mas custa. O que eu vejo hoje, para além de toda a crise, é a promoção da cultura do facilitismo (e os seus resultados). Pais que levam os filhos ao colo até muito depois do que era suposto e filhos que esperam que os pais lhes bastem muito para lá do que deveriam bastar.

É preciso lutar por aquilo que queremos e os protagonistas das nossas lutas só podemos ser nós.

Já não quero ser Presidente da República, mas quando cheguei a adulto percebi que o disparate de criança tinha, afinal, que ver com outra coisa: ambição. 

Quanto maior sonharem, mais longe chegarão. Mas acordem, entretanto. Acordem e façam o que querem que seja feito. 

Que 2013, para lá de todos os défices, seja o ano de quem ambiciona.


26 de dezembro de 2012

Telefonar

Por favor, não me telefonem. Se tiverem alguma coisa para me dizer, enviem um e-mail, sms, até uma mensagem no Facebook. Telefonar, não. 

O telefone tem para mim funções essenciais. Mas telefonar não é uma delas. Não contem por isso com conversas prolongadas ou simpatias extremas.

Restrinjamo-nos ao estritamente necessário: se, à distância, querem mesmo falar comigo - se não podem (ou não sabem) escrever - digam-no rapidamente, sem rodeios. E terminada a empreitada, desliguem na hora. Um "até logo" é suficiente para indicar o fim da conversa. 

Por outro lado, se sou eu a telefonar, notem que o faço com um interesse específico. Para perguntar alguma coisa, dar um recado que é mais perceptível dito que escrito, ou confirmar uma informação. Ou seja, poupem nas derivações.

Não encontro, acreditem, ponta de romantismo em telefonemas sussurrados, prolongados no tempo durante horas a fio. Não desvendo, confirmo-vos já, réstia de amabilidade em perguntas de circunstância. Acho até suspeito que queiram saber sobre a minha prima e pior ainda sobre a saúde dos meus gatos.

Se por acaso tentaram falar comigo e eu não atendi, o mais provável é que tenha optado por vos ignorar. Não vos guardo nenhum rancor, não me recordo do grande mal que pensam ter feito (o que quererá dizer que não me fizeram grande mal nenhum). Simplesmente, simplesmente mesmo (e às vezes as coisas são lineares, sim), não quero falar ao telefone. 

Temos uma relação difícil eu e ele. O meu telefone de casa, que tive de instalar para poder ter ADSL, está na realidade desligado, arrumado a um canto. E quanto ao telemóvel, é óptimo - fundamental - para aceder à Internet em qualquer lugar. 

Num sentido restrito, telefonar é uma seca. Poupem-me ao aborrecimento. Por favor.


25 de dezembro de 2012

Volúpia


E no final fica assim, deitada, de lado, corpo despido, apenas parte das pernas tapadas com a colcha. Virada de costas para ele e de frente para a janela, olhando a rua e esperando um abraço não demasiado apertado ou excessivamente longo. Apenas a mão por alguns segundos em cima da sua barriga, subindo depois numa carícia até ao peito nu, apertando-lhe um dos seios.

É como se ainda o sentisse dentro dela. O seu sexo continua húmido e quente, latejando de desejo, mas agora de uma vontade consumada. Um fio do prazer dele escorre-lhe pela coxa e acabará por cair no lençol. 

Fumasse, fumaria agora um cigarro, entregue à volúpia do momento. Quem a vê com o este ar doce, olhos semi-cerrados, não imagina que, não há muito tempo, o seu corpo esteve entregue a uma transe de gemidos e gritos e palavrões e expressões faciais.

Da viagem recente ao Mali, trouxera um CD de Salif Keita. Foi então ao som do pouco condizente Madan que tudo se passou. E o que se passou foram gestos largos, posições de momento, pedidos de "mais forte", "tudo, tudo", "agarra-me", "puxa-me o cabelo", "o rabo, o rabo" e um expressivo "ohhhh foda-se, estou-me a vir" final, a duas vozes. 

Para ela, o sexo deveria ser sempre assim, com foi o de hoje. Preliminares - muito importantes - demorados, de preferência num lugar inesperado. Despida peça a peça, roupa espalhada pela casa, apalpada contra a parede, em movimentos descoordenados pela tesão. E então atirada contra a cama, "come-me agora". 

O seu sexo não tem hora marcada. Também não tem proibições prévias. Entrega-se e espera que desse acto de confiança resultem orgasmos, de preferência muitos e de preferência vários seguidos. 


23 de dezembro de 2012

De umas e outras coisas


E haviam os lugares e as pessoas nos lugares. E haviam os cheiros e as conversas. E assim haviam os lugares, as pessoas, os cheiros e as conversas. E tudo no mesmo tempo, aquele em que, sem darmos por isso, éramos felizes, tanto como se pode ser. 

Mudaram então as coisas, as coisas todas. E do passado fica o restolho, as cadeiras vazias e a sala desarrumada. Fica o eco das conversas que já não se têm. E as memórias, as lembranças até do cheiro que já não se sente, a não ser de olhos fechados. E fechando os olhos voltamos a estar ali - por ficar tão perto - no lugar onde as coisas aconteciam.

Crescemos uns, envelhecemos e morremos, outros. E conjugávamos o verbo assim, sempre na primeira pessoa do plural, fazendo-nos parte da colectividade, dos que ao mesmo tempo entre os que cresceram e os que morreram, porque era assim, unos, que nos tínhamos uns aos outros, não só ali, naquela mesa comprida, mas sempre que precisos.

Os abraços e os beijos, o afecto. E percebemos agora as palavras, uma, outra e a terceira. Entendemos que havia ali tempo presente, o mesmo que agora é passado. 

E agarramo-nos às recordações. E no que não esquecemos mantemos viva uma coisa qualquer, indefinível, mas decifrável, se nos restarmos a pensar sobre o quê, onde e quando.

Nas palavras em desalinho, sem que as frases que delas resultam tenham que fazer sentido, eternizamos qualquer coisa, que nem sabemos o que é. Que nem será o que julgamos ser.

Mas não lamentamos. Temos saudades, mas não sentimos pena. Foi como acabou por ser. É como se tornou. E, com o fatalismo com que se justificam as coisas que não têm explicação - ou não precisam de ter - aceitamos o que a vida fez connosco, o que a vida fez de nós.

Natal feliz.

22 de dezembro de 2012

Vinho

(se o autor do blogue gostasse de coisas vulgares, aqui estaria uma imagem com uma frase feita atribuída a Clarice Lispector, mesmo não sendo ela a autora)


A mais firme convicção que me chegou com os trinta é a de que não voltarei a beber vinho mau. Porque a diferença que há entre um bom e um mau tinto - e o vinho será sempre tinto - é a duração do final. 

A partir de uma determinada idade um homem deixa de ter vontade de perder tempo com copos de três, bebidos de penalti, sujeitos a uma cara feia e a um ligeiro esgar que, não sendo de dor, será sempre de algum arrependimento. 

Escolhi, então, beber vinho bom, mesmo que isso signifique que beberei menos.

Não sei o momento exacto da decisão, mas aqui há dias dei por mim a olhar para o expositor do supermercado e a concentrar-me apenas nas garrafas das prateleiras mais altas.

Acontece que este não é um texto sobre vinho. E a ser sobre alguma coisa, então ele é sobre decisões, sobre estar preparado para as tomar e até sobre a sua inevitabilidade.

Há um momento em que tudo faz sentido. O momento em que nos sentimos libertos (e não apenas livres) e em que, mesmo sem darmos por isso, respiramos de alívio porque estamos a conseguir seguir em frente.

Aceitarmos as coisas - boas e más - como naturais será a condição essencial para aceitarmos, logo a seguir, que não há histórias perfeitas. E o dia em que compreendemos isso - e compreender não é só perceber - torna-se o dia em que nos sabemos capazes de recomeçar tudo de novo. E recomeçar não tantas vezes quantas necessárias, mas tantas quantas aconteçam. 

E de repente acontece mesmo. E mesmo sem quereremos - ou querendo sem saber - deixamos que seja assim e acaba por ser muito melhor do que pensávamos que seria. 

Uma amiga que sabe da vida muito mais do que eu disse-me em Outubro, à mesa de um casamento, que é tudo uma questão de escolha, de querer e fazer por isso. Parece que a nossa vida depende muito mais de nós do que aquilo que imaginamos. 

Com a idade, tornei-me muito mais exigente com o vinho. E o que de melhor isso tem, é que sou agora capaz de o apreciar como nunca antes o fizera. 


16 de dezembro de 2012

Condição: estrangeiro em qualquer lugar

Sou de um país de gente ainda muito preconceituosa e onde o racismo persiste, em grande medida, por força da ignorância (mas sou inteligente o suficiente para perceber os enormes progressos alcançados no espaço de algumas gerações). 

Se agora estou em Cabo Verde, antes vivi em Luanda e em Angola - onde passei alguns dos melhores momentos da minha vida - houve uma altura em que recebi ordens para, em reportagem, assegurar que o operador de câmara ocultava a minha mão branca da imagem.

Sociedades totalmente inclusivas só existem nas concepções teóricas.

Participo. Envolvo-me activamente na minha comunidade. Formulo e emito opiniões. Contribuo e não me conformo.

Não me acho um "mau imigrante". Não sou um agiota, como tantos. Não estou aqui a fazer fortuna à custa dos recursos do país ou dos "locais" - ou fortuna, de qualquer forma e feitio. Trabalho para uma empresa local - como sempre trabalhei - e ganho um salário condizente com a média salarial cabo-verdiana (e muito abaixo, até, das funções que desempenho). Mantenho uma relação cordial com os meus colegas e de grande respeito por toda a gente. 

Se quiserem, estou aqui porque escolhi estar. Porque troquei um bom salário, casa e viagens pagas pelo embalo destas ilhas e um orçamento apertado.

Permitindo-me a lei fazê-lo, recenseei-me e votei nas últimas eleições autárquicas. Porque não quero e não sei ser indiferente. Não sou pessoa de chegar, estar e ir. O exercício do voto dá-me, de resto, não só o direito, como o dever de ser parte activa. 

Sei bem o que se está a passar (e lamento as causas tanto como discordo das consequências). Sei e sinto um aumento da hostilidade generalizada em relação aos portugueses, em número cada vez maior no país e na ilha. 

Os fluxos migratórios são assim mesmo. Quem não tem emprego na sua terra, procura-o na terra dos outros. Mas sei também que muitos cabo-verdianos qualificados estão a ser preteridos a favor de estrangeiros com as mesmas habilitações e sei bem o que é que isso, numa sociedade jovem, com uma significativa taxa de desemprego, pode significar. 

Talvez o governo deva legislar sobre isto, mas talvez o governo de um país que tem mais nacionais no estrangeiro do que no seu território não o possa fazer com a assertividade que as pessoas esperam. Ou talvez não seja uma questão de lei, mas sim de bom senso: aquele que às vezes falta aos decisores do Estado e das empresas, eles próprios cabo-verdianos, que preferem um expatriado a um patrício seu (e não será isto preconceito também?). 

Talvez devêssemos deixar de depender tanto da ajuda externa para sermos mais donos do nosso destino (e que me desculpem aqueles a quem possa causa estranheza o verbo na primeira pessoa do plural).

"Somos de onde nos sentimos e não de onde nascemos", dizia um amigo a propósito de uma polémica recente (disse-o em espanhol, o que conferiu um outro encanto à frase original). É assim que penso. 

Só não podemos esperar que isso seja verdade para as nossas próprias opções de vida e não para as opções dos outros. 

O homem faz-se e conquista o seu lugar na polis pelo mérito que tem. Não quero ser bem visto se não tiver direito a uma opinião. Não me peçam que seja passivo. Se algum dia isso se tornar inevitável, arrumarei as malas e partirei para outro lugar. Jamais viverei sem o meu juízo crítico. Fui ensinado a pensar.

Vivo neste limbo: aqui nunca serei de cá; onde nasci, não voltarei a ser de lá.

Fazer pela vida tem destas coisas, o não sermos de lugar nenhum. Valha-nos o facto de, não sendo de um sítio só, podermos ser de todos os sítios que quisermos. Mesmo que sejamos os únicos a pensar assim.

8 de dezembro de 2012

Entrevista ao comandante Pedro Pires: "Ainda não nos libertámos da dependência do Estado"


Figura cimeira da política nacional desde a independência, o comandante Pedro Pires considera que em Cabo Verde ainda existe uma cultura assistencialista. O antigo Presidente da República assinala os progressos verificados ao longo das últimas décadas, mas pede rigor na gestão dos recursos dos Estado.


Somos uma sociedade participativa?
Acredito que sim, se nós fizermos uma análise apurada podemos ver que há uma boa participação dos cabo-verdianos na vida da sua sociedade e da sua organização. Podemos começar, por exemplo, pelos clubes de futebol ou por outro tipo de organização e com o tempo, apareceram outras formas de organização. Entendo os cabo-verdianos são participativos e há uma tendência para melhorar essa participação.

Na palestra que proferiu no IX Encontro de Fundações da CPLP disse que "a participação e responsabilização cívica são dois elementos essenciais para o aprofundamento da vida democrática e para a consolidação dos regimes democráticos."
Até que ponto é que a sociedade cabo-verdiana já interiorizou de facto esta ideia? 
Às vezes temos a impressão de que as pessoas agem de uma forma despreocupada, sem o esforço de aprofundar e analisar bem as suas responsabilidades. Todos nós somos responsáveis por aquilo que acontece na nossa terra e somos responsáveis pela construção do nosso futuro. Mas uma coisa é a responsabilização política, cívica se podemos dizer assim, e outra é a responsabilização social. Muitos dos problemas existen-tes podem ser resolvidos com a participação interessada do cidadão sem que haja necessidade da intervenção do estado e dos municípios.

Existe de alguma forma em Cabo Verde, uma cultura assistencialista, nessa ideia de que o Estado é o garante de tudo?
Sim, ainda não nos libertámos dessa dependência do Estado, de modo que há necessidade de se descobrir outras formas de contribuir para a solução dos problemas que possam existir.
Por exemplo, a questão do emprego: será que o Estado é o único responsável pela criação de emprego? Está claro que não, porque os serviços públicos não têm lugar para toda a gente, nem podiam ter. Cabe ao cidadão, ao privado e a cada um de nós trabalhar no sentido para que haja mais emprego. Pode-se dizer que para ter emprego precisamos de dinheiro, isso sim, mas podemos ter outras iniciativas. Uma das iniciativas possíveis, por exemplo, é o cooperativismo, o mutualismo. Entendo que podíamos resolver muitos problemas do sector da saúde com organizações mutualistas ou o próprio sector da educação, mas não há ainda essa cultura, não há essa preocupação, de modo que há que insistir nesse sentido e quebrar a ideia do monopólio de responsabilidade.

Alguns Estados experimentaram, com sucesso visível, soluções de cooperativas em diferentes sectores de actividade, como a agricultura. São experiências que poderíamos replicar em Cabo Verde?
Há sociedades onde de facto o cooperativismo tem um enorme peso. Por exemplo, nos países nórdicos, mas até lá chegarmos vamos levar muito tempo. Falou da agricultura. Há vários níveis de cooperativas, a cooperativa não significa que temos de juntar as propriedades, mas podemos cooperar na transformação, pode-se cooperar na venda, na compra dos adubos, há várias formas de cooperar. Por exemplo a cooperativa do vinho de Chã das Caldeiras, não é uma cooperativa completa, no sentido em que as propriedades estão juntas, é uma cooperativa de produtores, que produzem a uva, vendem à cooperativa a um preço, faz-se a transformação e no fim fazem-se as contas.

Ao longo das décadas, o próprio Estado não contribuiu para fomentar nas pessoas o sentimento de que é o garante principal das suas vidas?
É bem possível que sim. As pessoas precisam sempre de garantias e numa sociedade pobre, que começa a vida de Estado independente, você tem de dar uma garantia e essa garantia quem a pode dar é o Estado, mas em certas condições, as prioridades tinham de ser garantidas pelo Estado. Em sociedades pobres e subdesenvolvidas o estado tem um papel extremamente importante, mas não deve cometer o erro de convencer as pessoas que é a partir das instituições públicas que vamos resolver todos os problemas. Tem de saber estimular as pessoas.

Esses estímulos estão a ser dados?
Talvez não o suficiente, mas o liberalizar a economia é um sinal grande que significa que agora a economia privada, o promotor privado, têm um papel fundamental, mas nós aqui estamos a falar da sociedade civil, no contexto da economia social, aquilo que se pode fazer sem ter como motivação primeira o lucro, mas ter como motivação a prestação de um serviço ao seu associado. Entendo que na economia Cabo-Verdiana há um espaço para a economia social e até agora isso tem tido desenvolvimentos e recuos. Seria necessário fazer um esforço para que não tenha mais recuos, se estabilize e cresça.

Relativamente à criação de uma sociedade civil, ela pode ser medida também numa dimensão política. Os partidos políticos cabo-verdianos têm deixado que imerja essa sociedade civil, que haja participação política extra-partidária?
Tudo sai do mesmo bule, da sociedade no geral. A orientação e o campo de intervenção. A sociedade politica intervém no campo da organização do poder politico, as organizações da sociedade civil, não a sociedade civil, intervêm noutro campo diferente, que pode ser económico, pode ser no campo cultural, social, cooperativo mutualista, num campo muito próximo da politica, embora não seja a mesma coisa, que são as fundações.

Diz-se frequentemente que a sociedade cabo-verdiana é ainda uma sociedade exces-sivamente partidarizada. No seu entender isso é verdade?
Entendo que sim. Muitas vezes fica-se com a impressão que a pessoa não tem opinião própria. Mas há que enveredar-se para outra situação em que há um espaço que não é o espaço dos partidos políticos, mas sim o espaço dos cidadãos que podem intervir sem ter que se referir a ideologias ou à posição de um partido. Admito que haja essa necessidade. Do meu ponto de vista, isso é muito necessário, porque nós não podemos resumir as opiniões e as analise às posições dos partidos políticos. Eu acho que é reducionista, então precisamos de espaços mais ou menos neutros, imparciais onde a pessoa pode emitir a sua opinião sem problemas e sem complexos.

A sociedade cabo-verdiana, neste ano de 2012, é uma sociedade muito diferente daquela que existia nos anos 70, no período imediatamente após a independência. Como é que encara estas aceleradas mudanças?
Em 1975 havia mais pobreza, mais falta de instrução. O que se conseguiu no decurso desses anos permitiu a melhoria das condições de vida, das relações entre as pessoas, entre as ilhas, entre as comunidades e com o exterior.

Aumentaram também as desigualdades sociais?
Aí tenho dúvida, porque havia tanta miséria que eu não posso afirmar que houve aumento da desigualdade social. Não é possível uma comparação. Mas se me perguntar se houve uma diminuição da miséria, digo que sim. Depois da redução da miséria, podemos discutir se houve ou não aumento da desigualdade social. Houve crescimento da riqueza e a repartição é que não terá sido a mais justa, mas tome nota que na altura a pobreza era muito maior. Podemos dizer que o desenvolvimento da nossa sociedade poderá ter sido ou estará a ser desigual e que é preciso ter cuidado com essa desigual-dade.

Como é que olha para fenómenos que são relativamente recentes, nomeadamente questões de violência urbana, criminalidade urbana e juvenil. Pergunto-lhe se estes são sinónimos dessa evolução que a sociedade tem verificado?
Está claro que é um fenómeno endógeno com influências externas. Se é produto nosso, se é gerado aqui dentro, é consequência do desenvolvimento dessa sociedade de todos os pontos de vista. É consequência do desenvolvimento da sociedade cabo-verdiana e se podia ser ou não evitado, eu acho que sim, talvez pudesse ser evitado e o problema que se coloca é analisar e aprofundar o conhecimento das causas, para se poder reduzir esses factores e essas causas. Eu não diria que o desemprego é um factor determinante nisso. Um outro elemento que podemos colocar diz respeito ao funcionamento das famílias. Há uma desresponsabilização das famílias.

Desestruturação familiar?
As famílias não estão a funcionar devidamente para dar protecção ou orientação aos seus membros. Mas há mais: o problema da urbanização rápida, a perda de referências e do controlo social, as mudanças demográficas, a educação, o papel desempenhado pela co-municação social. Existem, portanto uma série de factores.

Como é que se devolve a família à sua função original de elemento primário de socialização dos indivíduos?
Não devemos olhar para a família de uma forma utópica. Não sei até que ponto é que as nossas famílias funcionaram bem durante todo o tempo. Entendo que a sociedade é formada por famílias estruturadas e famílias desestruturadas e quando você tem situações em que os pais não estão presentes ou o pai não está presente ou não se responsabiliza pela educação dos filhos, há então uma certa desresponsabilização. Quando as pessoas não se preocupam com isso e preferem sair a noite ou preferem ir ao bar ou fazer a vida de botequim, isso fica complicado, então o que eu acho é que não há uma responsabilização com a educação dos filhos e muitas vezes a educação dos filhos está entregue às mães desprotegidas. É tudo isso que é preciso melhorar. Assistimos hoje em dia a uma crise internacional que tem consequências que são por todos conhecidas e que tem contornos mais ou menos claros. Essa crise tem levado a que muitos estados em dificuldades questionem em particular aquela que deve ser a função social do Estado.

Como é que o Comandante Pedro Pires olha para esta discussão que é feita, sabendo que a função social do Estado não se limita ao pagamento de prestações sociais, vai também à saúde, à educação, à promoção da cultura, etc.? 
Essa crise já se anunciava há muito tempo. Há anos que se tem estado a debater como garantir a sustentabilidade dos sistemas de previdência social, mas isso é um problema antigo. Em Cabo Verde, não temos condições para ter um estado social, porque os estados sociais nascem com o grande desenvolvimento industrial e económico dos países mais ricos e nós não temos ainda essas condições, mas as pessoas quando falam, quando exigem, quando pedem, dão ideia que já temos as condições para ter um estado social. A meu ver, nós não temos condições para ter um estado social e às vezes as pessoas confundem tudo isso e apresentam soluções que não são as viáveis.

As pessoas esperam mais do que o Estado pode dar? 
Eu acho que sim, que devemos ser realistas e ter uma gestão rigorosa, porque Cabo Verde foi, é e continua a ser um desafio e esse desafio exige sempre uma gestão rigorosa e prudente. Há uma grande diferença entre o rigor e a austeridade. O rigor é um princí-pio de gestão e a austeridade é uma medida emergência para enfrentar situações de risco. Assim, o rigor exige que os meios sejam bem utilizados mas também exige que a pessoa tenha a produtividade necessária para compensar o salário que recebe. A questão do rigor e a questão da produtividade e da poupança são princípios fundamentais que não se confundem com a mera austeridade. Logo, o rigor no bom uso de recursos e a produtividade constituem princípios elementares de uma boa gestão. Por outro lado, partir do princípio que o que é do Estado não tem dono, que pode ser gasto à toa, é mau e não conduz a parte nenhuma.

originalmente difundida na Rádio Morabeza e publicada no jornal Expresso das Ilhas (Cabo Verde)

7 de dezembro de 2012

Relógio


Parou o relógio às 17:22, no minuto antes do último minuto em que a viu e em que, ao vê-la por aquela que pode ter sido a derradeira vez, não lhe disse todas as coisas que tinha por dizer. Deixou então o tempo na oportunidade final, convencido de que assim poderá, querendo, retoma-lo não antes ou depois, mas no momento certo. Dir-lhe-à aquilo em que tem estado a pensar e virará costas antes da eventual resposta. Não quer saber e não precisa de. O que pretende é só dizer e, assim, descer a rua sem olhar para trás.


6 de dezembro de 2012

Guiné-Bissau

A situação na Guiné-Bissau interessa-me particularmente. Tenho feito algum acompanhamento do que se passa no país. Deixo duas entrevistas que fiz recentemente a personalidade guineenses de relevo.

Domingos Simões Pereira, ex-secretário executivo da CPLP:




António Aly Silva, jornalista:


14 de novembro de 2012

Bilhete


Depois de muito pensar no assunto, como só pensam as pessoas que não conseguem pensar noutra coisa, Pedro chegou a uma conclusão imperial. Escrevendo-a, colocou-a debaixo de uma caneca, em cima da mesa, à espera que um dia alguém lesse aquelas que foram as suas últimas palavras... sobre o assunto. Depois, apagou as luzes e saiu, levando consigo o que abaixo se relata.
 
Preciso de te dizer uma coisa: estou fodido. 

Peguei há pouco nas tuas coisas, nas que ficaram, determinado a arruma-las, a resolver de uma vez, espero que por todas, o assunto pendente, que deixámos a meio no dia em que, sem um aviso, um "olha, vou indo", "é agora, fica bem", saíste por aquela porta, empenhada, pelos vistos, em não voltar.

Passei as últimas semanas, aliás, acho que foram meses - quantos? - à espera de te ouvir chegar. De perceber, como percebi sempre, os teus passos lá em baixo, ainda na entrada do prédio, e saber que o elevador, ao subir, pararia no quinto andar e dele sairias tu. 

A casa do avesso. Tenho tudo espalhado por sítios indevidos, a roupa na sala, os copos no quarto, a loiça acumulada à espera de ser lavada. Deve haver merda aí algures. Fiz tudo ao contrário, presumo que também tenha cagado fora da sanita.

Tenho este ar sujo, a barba por fazer, as unhas encardidas, o cabelo oleoso. Há pouco olhei-me ao espelho e assustei-me com a sombra de mim mesmo. Mas depois passou, porque já me sou indiferente.

És uma puta. De entre todas, a maior. Como é que te achas no direito de seguir em frente sem esperares que eu esteja pronto. Libertador? Ah, quem me dera. "Um dia vou-me embora para que possas continuar". Continuar? Para onde, se agora não sei para onde ir?

13 de novembro de 2012

Vesguinha


A Pimpinela Espongiforme, de agora em diante, nos referiremos apenas e quase sempre por 'a Vesguinha'. O cognome, deve-o, já se percebe, à vista trocada. Um dos olhos à  hora certa, o outro, dez minutos atrasado. Sobre o nome, o que dizer? O papá, Bonifácio, a mamã, Efigénia, gente rude do campo, quiseram homenagear, simultaneamente, a hortaliça da família das cucurbitaceaes e a vaquinha Mimi, falecida havia dias, depois de uma lenta agonia, que a levou à loucura. 

O nome e o estrabismo são, ainda assim, os menores dos seus pecados. Além da zarolhice, observam-se a olho nu - e até a alguns metros de distância - a pilosidade facial, nalguns sítios tão cerrada que capaz de suscitar dúvidas de género, o pouco peito e o muito rabo. "Mas onde é que tu foste buscar esse anexo, miúda? Os teus pais são da Madeira, não da costa ocidental africana!" 

Baixinha, pé ligeiro, achando-se perfeita na ginga, Vesguinha sai à rua vestida com roupa justas, que atrás lhe vincam o rego e à frente desvendam o umbigo, ligeiramente pintelhudo (arrepia-se o narrador: "Ai meu Deus, a reserva natural que não deve haver abaixo da linha do horizonte!").

E se os moços lhe assobiam ao passar, fazem-no mais por comiseração que por real prazer, sentimento difícil de encontrar naqueles embutidos 160 centímetros.

Vesguinha quer um homem. Um que seja alto, forte e definido. Daqueles que andam sempre nus da cintura para cima, iguais aos das revistas que lê no caminho para o trabalho. Daqueles, suspira, corando, em que se pode lavar a roupa na barriguinha de tanque. 

É no autocarro de carreira que pequena Vesga mais se deixa levar pelo desejo. E desejando, fantasia. E fantasiando, fá-lo com tal entusiasmo que, em certos dias do mês, chega mesmo a sentir um calor que vem de baixo para cima e sobre o qual também leu já faz algum tempo.

- O que fazes Pimpinela? - pergunta-lhe alguém de vez em quando.

- Sou agente privada de segurança - responde, fitando o interlocutor com o olho que dá as horas.

Na verdade, Pimpi é só a menina da entrada. A mocinha que, do lado de dentro da porta da junta de freguesia, dá os bons dias a quem chega, atende o telefone a quem liga e passa as chamadas a quem se destinam. Pimpi, a porteira, também poderia, ser, pois, o seu nome.

Na vida de Vesguinha, mundana como se percebe, há, contudo, uma sombra negra, nuvenzinha cinzenta na sua existência fantasiosa.

Vesguinha guarda, com temor, um segredo que a persegue: o dia fatídico em que, não tendo mais do que dezassete aninhos, decidiu experimentar aquilo que a Dra. Rute dizia ser um preliminar fundamental do que logo após se haveria de consumar.

Consultando no dicionário o significado da palavra e percebendo que a ela diziam respeito os assuntos que antecedem "o assunto principal", supôs que ao intróito se seguiria, acto continuo, a consumação sem volta a dar.

Criado o ambiente no quarto de uma amiga de longa data, de férias com os pais, aguardou ansiosa a chegada de Tobias, esse agricultor de pouca escola, conhecido pela grandeza das coisas.

Muito esperou a peludinha, certa de que não lhe faltaria o camponês. Esperou até que a noite caiu e mesmo depois disso. Esperou, primeiro ansiosa, depois desconfiada, finalmente chorosa.

Descobriu, semanas mais tarde, que no café da vila se comentava que Tobias das Couves havia há dias rejeitado desbravar caminho numa cabrita tresmalhada, sobre quem se dizia ser mais a mais feia do rebanho.

Resolveu mentir sobre essa tarde, a da sua imaginária defloração. A partir de então, mulher feita, mesmo que só da cintura para cima. E que ninguém algum dia ouse perguntar se a ela se referiam os senhores à volta da mini. Negará tudo. Dirá que não até morrer.


9 de novembro de 2012

Esfénico

Ontem, a propósito de um vídeo viral, escrevi um artigo de opinião para um jornal digital (link no post abaixo) que se tornou, também ele, alvo de muitas atenções. 

Tanto quanto percebi, o texto foi lido uns milhares de vezes, partilhado várias centenas e comentado outras tantas. Como esperava, a maioria dos comentários foi desfavorável ao que defendi. 

Fui insultado como nunca antes. Ameaçado de porrada, rotulado e ofendido.

Estou habituado à ira dos leitores - a maioria de dedo rápido e reacções desmedidas. A maior parte das pessoas que comenta nem lê os artigos ou quando lê, não os percebe.  

Um dos leitores disse-me que só posso ser de famílias ricas ou boy do PSD. Outro sugeriu que eu deveria arranjar um emprego no governo. 

Eis-nos chegados. 

Faço hoje trinta anos. E o que sou fala por mim. 

Os únicos que algum dia me deram alguma coisa foram os meus pais. Deram-me a melhor educação, a oportunidade de estudar e a formação humana que me transformou no homem que sou (e se não passo disto, a culpa é minha).

Sou íntegro, esforço-me por ser justo e, apesar de intempestivo, demasiado exigente e dono de um mau feitio senhorial, as pessoas não se costumam queixar da minha falta de humanidade. 

Trabalho desde os 17 anos. Estudei e trabalhei em simultâneo e sei o que custa conciliar as duas coisas. Estive um ano sem folgar, cheguei a ter três empregos e a trabalhar 20 horas por dia, várias semanas seguidas.

Um dia fiz as malas e fui para Angola. Depois voltei a fazer as malas e vim para Cabo Verde. Vivo há mais de quatro anos longe da minha família que, na melhor das hipóteses, vejo uma vez por ano. 

Tenho um ordenado pequeno e uma conta de electricidade que todos os meses me parece demasiado grande.

Continuo solteiro, mas sei como é que se fazem bebés (embora ainda não tenha feito nenhum). Não tenho a certeza se já sei amar, mas tentei algumas vezes e, pelo menos a espaços, acho que me desembaracei com relativa desenvoltura. Por falar nisso, amei a uma mulher mais do que a todas as outras e apesar de não ter acabado bem, foi o melhor que me aconteceu. 

Não tenho grandes perspectivas, mas tenho ambições.

Ambiciono sair-me bem. Ambiciono um filho. Ambiciono escrever um livro. Ambiciono que os meus pais percebam o quanto são importantes para mim. Ambiciono manter-me fiel a mim mesmo e leal aos outros. Ambiciono menos dez quilos. E ambiciono, acima de tudo o resto, continuar sempre a ter ideias próprias.

Não vejo nenhum romantismo nos trinta. A primeira coisa que me aconteceu depois da meia-noite foi uma dor de barriga. Agora, se querem saber, acho que não me estou a dar nada mal nesta coisa de viver.


8 de novembro de 2012

Crónica à bruta

"Ainda não percebemos que Portugal é um país de parcos recursos, cheio de gente vaidosa, para quem a vida só o é se puder ser vista num televisor LED e fotografada por uma câmara de 12 megapixel."

A quem possa interessar, o resto da crónica está aqui.

6 de novembro de 2012

Como uma carta


Seguro-te num abraço sem urgência. A tua pele nua, no meu corpo despido. A tua mão sobre o meu peito. O arrepio de te saber assim, junto.

No reflexo do teu olhar curioso revejo-me como em nenhum espelho. Segues-me e percebo a tua curiosidade, o conforto que sentes só por estar aqui.

O instante presente que guardo neste texto que escrevo - e que talvez um dia leias - é a expressão maior de uma simbiose tão perfeita que, fosse eu compositora, faria dela e em teu nome uma sinfonia, com violinos e clarinetes, tubas e violoncelos. 

Não queria ser mãe. Assustava-me na maternidade o eterno, até ao fim, o verdadeiro - e tanto quanto percebo, o único - compromisso "até que a morte vos separe". 

Ligar-me para sempre a alguém era até há pouco, e aos olhos de uma mulher efémera - passageira nos amores, no empregos, nas cidades e nas vontades - um longo termo demasiado pesado de pensar. 

"Tudo passa", diria a quem me perguntasse sobre o que fazer. E afinal, na subtracção do que fica pelo que passa, sobras tu, filho maior.

Levar-te-ei, pois, guardado em mim, e enquanto te cuido, preparo-te (e a mim) para que sigas por onde eu não for. E mesmo sozinho, certamente no abraço que agora te dou com este corpo que te deu a vida, aquela que te levará para longe de mim. 

O silêncio. E o amor. Da tua mãe.

5 de novembro de 2012

A morte de C.


C. tinha, na altura, a idade que agora tenho. Isso fazia dele bem mais velho do que eu. "Bem mais" não será, por ventura, a expressão exacta. Um tanto ou quanto mais, digamos antes assim. Para o caso, contudo, pouco interessa. O que sempre o distinguiu foram as ideias claras sobre a vida. A sua, a dos outros e a vida em geral - aquela que existe para lá das pessoas. 

Acreditava especialmente nessa terceira expressão, parece-me que de alguma forma relacionada com a existência. A vida além das gentes. 

C. era um tipo às direitas. Em tudo, porque confiável. Em tudo, porque de direita mesmo. Era aí que estava o nosso principal desencontro. Sempre fui de esquerda e sempre cuidei de o afirmar a C., mesmo sabendo que, a dada altura, faltar-me-iam os argumentos. Porque a sua mente estava cheia dos livros que leu, dos textos que escreveu e daqueles que, mesmo não tendo lido ou escrito - eu sei, parece estranho - compunham o seu pensamento pragmático, arrumado, perturbadoramente inabalável. 

Irritava-se comigo quando, cansando-me da obstinação, calava-o, atirando um seco "com essas ideias fixas, cá para mim és mas é comunista".

A C. faltou apenas o reconhecimento das massas. Não sei, sequer, se o procurava, provavelmente não, mas a um homem de tão grande dimensão um pouco de aplauso teria caído bem.

Sentado na terceira cadeira a contar da porta, na sala fria, cheia de rostos anónimos, semblantes carregados de dor genuína e presumida, vendo C. pelas últimas vezes, dei-me conta de que, nele, a morte foi como a vida: arrebatadora. 

Entre o álcool em excesso, o sexo despreocupado e as drogas em crescendo - "mas os betos de direita também se drogam?" - C. bebeu, fodeu e snifou o que quis, sempre que quis, enquanto quis. 

Literalmente enquanto quis. Porque nem depois do diagnóstico "três meses" senti em si, digamos, alguma moderação.

Decidiu que o cancro seria o principio do fim, mas não o fim em si mesmo. Morreria, sim, mas de livre vontade. E ali estava ele, cumprido o desejo, morto por vontade própria. E eu, sentado ao lado da senhora chorosa, que vagamente me fazia lembrar alguém, não conseguia mais que disfarçar um sorriso orgulhoso: "é de homem, é de homem".

16 de outubro de 2012

Joana


E perguntava-me ele: mas tu não te enxergas?

E respondia-lhe eu: tu sabes que não tens hipótese. 

E terminava, arrancando: olha, emagrece. 

Fazia-me sempre assim. Resolvia a conversa com uma frase definitiva e, sem esperar por resposta - para ele o assunto estava arrumado - virava costas e seguia caminho.

Bem, talvez a conversa não se tivesse passado por estas mesmas palavras, mas no essencial o que acontecia ali era um duelo de testosterona adolescente de quem, quando não ocupado a roubar chocolates, se empenhava na mais nobre das conquistas.

Lembrar-me-ei para sempre das prolongadas discussões, mas de nenhuma como daquela em que, quase chegando a vias de facto, disputávamos Joana, a miúda mais gira do liceu.

Joana destacava-se, digamos assim. Era crescida para a idade e, contudo, o que mais se evidenciava era a desenvoltura a falar, a certeza dos gestos - caramba, pois se até no sentar se notava a elegância - e, todas a paixões têm o seu lado trágico, a indiferença com que, sem alguma vez sequer vacilar, nos brindava em todos os intervalos.

Derradeira esperança aquela do fatídico baile de finalistas, uma aproximação estudada até ao mais ínfimo detalhe e também ela um gigantesco fracasso.

Porque, se a obrigarmos, ela vai ter que escolher. É isso, ela que escolha.

Horas de preparação, fato pela primeira vez, camisa berrante, como se usava na altura, e gravata com bonecos, como também era moda. A barba inexistente aparada com rigor. 

Não tinha como falhar. Um de nós subiria ao céu nessa noite. O outro, preterido, caminharia sozinho para o inferno. Confrontada, Joana escolheria.

E Joana escolheu. Escolheu sem sequer nos olhar. Preferiu o miúdo loiro, cabelo à tigela e brinco na orelha direita - Joanaaaaaaa, furo nessa orelha, só pode ser gay, ou paneleiro, como se dizia. 

Perdemos nessa noite e perdemo-nos para sempre. Primeiro a ela e depois um ao outro.
Joana, que hoje passou por mim numa rua da cidade, já não tem um rabo fenomenal. Não que o rabo esteja pior - talvez mais gordo - mas com os anos vi outros melhores. 

Pensei em para-la, agarra-la por um braço e, com a desfaçatez de quem já passou dos quarenta, dizer-lhe: miúda, naquela noite, era suposto teres ficado comigo. 

3 de agosto de 2012

Marco


Vamos encontra-lo no chão, ajoelhado, cabeça escondida entre as mãos. A Marco, nada como aquela derrota o fizera sentir-se tão inapto. Tão grande a humilhação. 

Bola no extremo oposto do campo, recolocada em jogo com um pontapé de baliza ao jeito curto, boa recepção, passe ao primeiro toque, evolução rápida no terreno de jogo, o ponta-de-lança desmarcado lá no centro, cruzamento em altura do flanco esquerdo, domínio exemplar com o peito, remate em estilo mais do que em força, Marco voa, sente a redondinha a raspar-lhe na ponta dos dedos e, sem se virar, percebe que as redes abanam com o impacto. 

Tudo menos isso. O jogo perdido a menos de um minuto do final. 

"Anda, acorda". Vira-se para a parede. "Vais chegar tarde". Agarra o lençol para não ser apanhado desprevenido. "Salta da cama". Pensa que talvez possa acabar a punheta no banho. "Sim, posso, mas para isso vou ter que sair da cama neste estado". Leva a mão à pila e, sentindo-a ainda tesa, constrói um plano. Alternativas: levar a roupa e tapar-se com ela, encolher-se, espreitar se o caminho está livre e correr até ao outro lado do corredor, esperar. "Não te volto a avisar". 

Marco não gosta de história. É daquelas disciplinas que não lhe dizem nada. Não que seja um bom aluno, porque não é e não o é mesmo, mas também não se pode dizer que seja mau. Do que Marco não gosta, no que à história diz respeito, é das datas. E dos nomes. Dos nomes e das datas, portanto. Porque, não sendo bom aluno, e também não sendo mau, Marco sabe que se há coisa que jamais saberá  de cor é a data, o lugar e os nomes de quem, onde e quando foi assinado o Tratado de Tordesilhas. Sequer acha relevante, no particular, como no geral que lhe assiste, encher a cabeça de informação que esquecerá não tarda. 

Além das perversões e das mamas da Sara, tem os pensamentos cheios de coordenadas. Latitudes e longitudes dos lugares mais incríveis. O que lhe interessa é viajar. 

Antes de acabar o relatório -  e mesmo sem olhar para o relógio sabe que está atrasado - mira em redor para garantir que está sozinho. Clica na página do browser que esta minimizada na barra de tarefas. À sua frente o sítio onde mais horas perde. Viagens. 

Nunca foi mais longe do que ali ao lado. Todos os dias faz o caminho entre a casa arrendada nos subúrbios da cidade grande e o escritório de seguros na avenida larga.

No balanço, saiu-se mal, percebe-se. Mas há muito que deixou de querer saber. Agora que pensa nisso, talvez desde o dia em que aquela bola entrou.

24 de abril de 2012

De quatro

Pega no cigarro com a ponta dos dedos, deixando-o arder. Com a mão livre, num gesto propositadamente demorado, tanto quanto reflectivo, recolhe o açúcar caído sobre a mesa, levando-o à boca. Afasta o pires chávena vazia do café.

Num dos poucos bares da cidade onde ainda se pode fumar o ambiente é soturno. Uma nuvem de fumo paira por cima dos presentes. As conversas de uns são abafadas pelas conversas dos outros.

Baixa a cabeça e finge procurar alguma coisa caída no chão. Pega na carteira que ainda tem no colo, pousando-a na cadeira vazia do lado esquerdo. Recosta-se, deixando o corpo afundar ligeiramente. Inspira, sustendo a respiração. 

- O que eu queria era que tu me fodesses por trás.

À frase sentencial segue-se um silêncio que só não o é completamente porque a sala está no reboliço próprio das 18:30 de uma quinta-feira véspera de feriado.

- Tu sabes, é que eu gosto que me comam de quatro. Quanto a isso, nada a fazer. Que me agarrem o rabo com força, que me puxem os cabelos ou apertem as mamas, e que me façam gritar. Que me façam gritar muito, 'tás a ver?

De P., perante aquilo, nada a dizer. Sem pinta de sangue noutra parte do corpo que não a cara, procura, sem sucesso, as palavras certas para uma resposta, se não à altura, pelo menos de sobrevivência. Tudo o que não esperava daquele rendezvous era que lhe saísse uma ninfomaníaca despudorada, tão eloquente quanto detalhada na descrição dos seus voluptuosos e carnais prazeres.

- A cena é, não sou de compromissos. Ah, e não gosto à canzana. Vai ser assim: eu em baixo, tu em cima. Fazes o trabalhinho todo e eu ali a apreciar.  - afirmara, minutos antes, ar maroto, afagando o peito, tomando-se cheio de razão, numa frase que D. assumira como de desafio, incitação ao seu lado mais libidinoso e, por ventura, desequilibrado.

Detesta homens com pelos púbicos e pichinho arqueado, mas o que a deixa fora de si, mais do que qualquer outra coisa terrena ou espiritual, são sacaninhas de jeito gingão. A esses pega-os pelo pescoço, deixando-os inspirar apenas - e não mais do que isso - o ar necessário para que se mantenham vivos.

Mortos não poderiam apreciar o espectáculo vindouro, a consumação da vergonha suprema e o deleite da vitória feminina sobre o eternamente flácido orgulho machão.


7 de fevereiro de 2012

Pieguices


O que eu espero de um político? Que seja assertivo, ciente do caminho a percorrer e determinado em alcançar as metas que define.

Não discuto aqui, já se vê, a razoabilidade das propostas, o sentido da estratégia, tão pouco os resultados produzidos (ainda que elas, ela e eles sejam o mais importante de tudo, claro está). Quero apenas saber, no caso concreto e definido, da postura: aos governantes, prefiro-os assim.

O problema é que os que se sentam à direita do Pai conservam aquele ar sobranceiro, de quem ‘nunca se engana e raramente tem dúvidas’, peculiar característica da generalidade dos protagonistas da vida pública portuguesa.

Confunde-se em Portugal determinação com arrogância. Como se ser humilde signifique ser-se fraco.

Para o politico médio português, cumprir bem o papel que lhe foi confiado é sinónimo de discurso duro e palavras a roçar o insulto.

Gostamos de chicote, pois sim. Preferimos ser mandados, a liderar processos. Os Coelhos desta vida sabem-no na perfeição e, sabendo-o, governam-nos pelo medo.

Escorraçam-nos daqui para fora, rotulam-nos de piegas, dizem que precisamos de trabalhar mais, que somos molengões, uns bandidos cheios de vícios. 

Bem, seremos tudo isso e de facto o melhor é emigrar, mas o que não pode acontecer é que seja o Primeiro-Ministro, e não o nosso pai, a dize-lo.

Não sei se já estiveram (ou estão) num daqueles casamentos em que sempre que a outra parte abre a boca, mesmo antes de falar, já sabemos que dali não vem nada de bom.

Se a minha mulher passar a vida a chamar-me nomes, se todos os dias me disser que o melhor é eu sair de casa, que por mais que me esforce nunca vou deixar de ser uma fraude, o que é que ela espera que eu faça com essa informação, mesmo que verdadeira?

As relações constroem-se com base na confiança. Se confio, sigo. Se me entrego, sou melhor. Não acreditamos, não vamos.

Talvez não seja suficiente, mas os portugueses atravessam dias de aperto. Vivíamos uma mentira, já antes o escrevi, mas foi a treta em que nos fizeram acreditar – com o tal tom de ‘Deus no céu e eu aqui’. 

Acordámos, estamos a tomar consciência do que se passa – embora longe da percepção real da embrulhada em que estamos metidos – e, dentro dos possíveis, tentamos seguir com a nossa vida. Tudo o que não precisamos é que o rosto actual da pobreza que nos invade tenha a desfaçatez de dizer que somos o seu maior estorvo. 

É que, Pedro, antes de tudo o resto, Portugal somos nós. O que sobra é abstracção.


30 de janeiro de 2012

Noites na cidade


À noite, na cidade, gosto de casas iluminadas e janelas abertas. De prédios com divisões iguais e decorações diferentes. 

Da parede pintada de azul na sala do primeiro andar, da estante de madeira trabalhada, e dos melhores copos arrumados atrás da porta de vidro. Do póster do Bob Marley no segundo frente, à luz de uma lâmpada económica que abana com o vento. Da cortina do lado de fora no terceiro esquerdo, da parede em branco já sujo, decorada com um quadro foleiro do chinês. E do homem à janela do rés-do-chão direito, vestindo uma camisola de trazer por casa, sem mangas, estampada e com pequenos buracos, distraído do que se passa, concentrado apenas nos seus pensamentos.

Na mão direita segura um cigarro, pelo cheiro percebe-se que não é tabaco. Fuma compassadamente. Está de olhos fechados e balança a cabeça ao som de uma música que não se ouve.

Na rua, debaixo de um candeeiro apagado, dois amantes traem as suas histórias. Perfis sem rosto, escondidos na sombra, de contornos indefinidos. Vira-se ela, abraça-a ele, mordisca-lhe o pescoço, a mão no ventre e o desejo que lhe dá volume aos jeans. "Podíamos...". 

Fecha a loja o merceeiro. Conta notas, moedas e encolhe os ombros, resignado. Cheira a grogue, vinho barato, pó e humidade. Os ratos esperam escondidos o bater da porta de ferro. Duas voltas na fechadura, um cadeado em cima, outro em baixo. "Super Bock Mini: refresca numa rapidinha".

Encostado a uma Hiace, usa o eufemismo e descansa a vista o segurança do banco. Passa um gato no passeio, um taxi na estrada, uma mulher velha e apressada do outro lado. "Irene, oh Irene". E vira-se a puta que ali se queria chamar Caty. "Mamo e à frente. Cu não".

À noite, na cidade, gosto de casas iluminadas e janelas abertas. Gosto das vidas que se escondem, das que tentam mas não conseguem, das que se mostram e das que fazem por aparecer. Do silêncio que deixa ouvir o medo. Das famílias que jantam, de quem janta sozinho e de quem não janta de todo.

27 de janeiro de 2012

Hora de fecho

Manifesto a favor do jornal espanhol Público que corre o risco de fechar

Primeiro serão os jornais, depois as revistas. No final, à imprensa 'impressa' (redundância, sei) restará um papel de objecto de culto, numa onda meio vintage, como acontece com o vinil.

O processo está em curso em todo o mundo e ninguém minimamente informado pode nega-lo. Ainda que a ritmos diferentes - consoante o nível de penetração das novas tecnologias de comunicação - no tempo máximo de uma geração ou duas gerações, o assunto estará definitivamente resolvido.

Os consumidores estão cada vez mais familiarizados com os suportes digitais. Uma fatia importante da população dispõe - ou irá dispor brevemente - de pelo menos um dispositivo com ligação à Internet. 

Se o digital é o caminho, a questão que permanece é de sustentabilidade. Os jornais dependem das receitas publicitárias e estas estão em queda acentuada. Por outro lado, o investimento que está a sair das edições impressas, não está a ser conquistado pelas versões on-line.

São raros os projectos editoriais só web que sobrevivem com um nível de qualidade aceitável, para lá dos primeiros meses de vida. Como são efémeras as experiências de limitar o acesso a determinados conteúdos, disponíveis apenas por subscrição paga.

O mercado dos media demorou demasiado tempo a acordar para o inevitável. Durante anos, acreditou-se na fidelidade dos leitores, na eternidade de um produto em decadência há duas décadas. 

Não tenho resposta para a pergunta que resulta de toda esta conversa: se os consumidores não querem pagar, se as marcas não anunciam, que futuro para o jornalismo escrito?

Apesar disso, acredito que no final sobrará uma imprensa reformulada, digital e intangível, num universo ao qual só chegarão os melhores projectos - apostados num jornalismo de qualidade e não descartável, como aquele que andamos a fazer. Uma imprensa segmentada, especializada em áreas de interesse, virada para nichos de mercado específicos - e não para um público generalista e abrangente - acompanhando assim a vontade crescente das marcas em dirigir as suas campanhas de marketing para uma audiência (a sua) definida e claramente identificada.

O caso do espanhol Público, a braços com um eminente fecho de portas, é mais um dos exemplos que se vão somando. E ainda que o efeito prático possa ser nulo - nunca o será, mesmo que residual - é incrível a forma como os leitores, cientes da importância que o diário tem na construção de uma opinião pública plural, lançaram mãos ao jornal e tentam agora resgata-lo.

24 de janeiro de 2012

O Cavaco que há em nós


Se querem saber, estou-me a borrifar para as pensões do Cavaco.

A questão é de moral, claro, mas é também de falta de oportunidade. A nossa própria falta de oportunidade para, feitas as contas, arrecadarmos tanto ou mais do que ele.

O principal problema de Portugal não está na classe politica que governa o país, antes numa inversão de valores e prioridades. Somos o povo do desenrasca e isso faz de nós pessoas capazes de superar situações difíceis com criatividade, mas também nos transforma em gente que prefere cortar caminho, abreviar processos e ignorar normas, mesmo que isso implique pisar o colega do lado.

Os políticos são portugueses na sua melhor expressão. Ministros, secretários de estado, deputados, presidentes de câmara e de junta ou até o Presidente da República somos nós, uns patamares acima.

O titular de um cargo público que acumula pensões é como o tipo que recebe o subsídio de desemprego e trabalha por fora ao mesmo tempo. O governante que gasta mais de ajudas de custo do que aquilo que recebe de salário é a versão melhorada do beneficiário do Rendimento Social de Inserção que se entretém a fazer filhos para aumentar o valor da subvenção. O autarca que substitui concursos públicos por ajustes directos é um modelo engravatado do empreiteiro que faz orçamentos “com ou sem facturinha”. 

Por isso, e voltando ao início, o que o inquilino de Belém faz é o que todos faríamos, assim tivéssemos como. A ética é volátil. O futuro interessa-nos apenas na medida em que o possamos manietar.

As palavras do Presidente – tão cheias de hipocrisia – só nos incomodaram tanto porque nelas ouvimos a nossa própria voz.

Vivemos uma ilusão. Convenceram-nos de que todos podíamos ter casa própria, carro novo de três em três anos, televisão por subscrição, um telemóvel de ecrã táctil e férias no estrangeiro. Venderam-nos uma mentira e nós, porque preferimos parecer a ser, comprámo-la.

Numa sociedade capitalista, fizemos do cartão de crédito e da Cofidis manuais práticos de socialismo, como se com eles não mais existissem classes. Alinhámos todos por cima e agora fomos revistos em baixa. 

Chegámos onde estamos porque somos mais espertos que inteligentes, não temos juízo auto-critico – embora estejamos sempre a criticar os outros – e passamos a vida à procura da melhor forma de enganar o vizinho o ou colega de trabalho. 

Precisamos de melhores políticos, claro que sim. Mas a nossa salvação não virá do topo. As revoluções – mesmo que de mentalidades – nunca nascem nas elites. E é disso que precisamos: de uma nova maneira de estar na polis. Uma forma participada e interessada com o colectivo, cientes de que o todo é mais do que a mera soma das partes. 


Esta publicação também pode ser lida aqui:  


12 de janeiro de 2012

Cabral ca morrê


O fotógrafo e meu amigo Diogo Bento inaugura segunda-feira, no Mindelo, uma exposição de fotografia sobre o legado de Amilcar Cabral no Cabo Verde dos nossos dias.

Os detalhes estão na imagem acima.

Homens de avental


Não sei se chego a perceber o porquê de tanto ruído em torno da maçonaria. Nós, os jornalistas, temos disto. De vez em quando, arranjamos um tema e durante semanas não conseguimos falar de outra coisa. O problema é que a partir do segundo dia já não acrescentamos nada de novo à discussão e o que se segue são matérias enfadonhas, com mais do mesmo.

A coisa resultou? O público mostrou-se interessado? Então vamos continuar, escarafunchar até não sobrar nada. Matar o assunto. Insistimos tanto, tão depressa e com tanta preguiça que o desfecho acaba por ser sempre igual: saturamos as pessoas e saturamo-nos a nós próprios.

Tendo em conta a histeria dos últimos dias, parece que descobrimos agora que a maçonaria existe. Pior. Como se até há duas semanas ninguém soubesse que o Parlamento, a vida política e pública em geral estão cheios de maçons.

A coisa é tão evidente que na Assembleia da República existe uma casa de banho - sim, sanitários - que assinala, desde há anos, a presença maçónica naquele órgão de soberania. Pois: lavabos com o tradicional preto e branco do movimento.

Perante a evidência - não deve haver organização secreta mais pública do que esta - mãos ao céu, vêm os iluminados do costume defender uma declaração de interesses, exigir que quem é - porra, são quase todos - seja obrigado a dize-lo.

Mesmo que o fizessem, o que é que aconteceria a seguir? A política em Portugal transformar-se-ia numa coisa primaveril? 

Grupos de pressão existirão sempre. Chamemos-lhes maçonaria, Sonae ou Isabel dos Santos, o resultado há-de ser idêntico.

Posto isto, recentremos a discussão no essencial: os tipos apertam o avental sozinhos ou pedem ajudam ao maçon do lado?



Esta publicação também pode ser lida aqui:

11 de janeiro de 2012

Guantanamo

A pior face do homem. É isso que representa Guantanamo, prisão que hoje cumpre dez anos de funcionamento.
Homens privados de liberdade, tratados como gado, sem acusação formada, encarcerados pela força da vontade e não da lei. Guantanamo não é só um campo de concentração. É a prova de que o terrorismo também se faz sem bombas.

Begins this journey without reins,
Ends in capture without aims;
Now lying in the cell awake,
with merriment and smiles all fake:

Freedom is spent, time is up -
Tears have rent my sorrow's cup;
Home is a cage, and cage is steel,
Thus manifest realitys unreal.
Moazzam Begg
Preso em Guantanamo, Moazzam foi
libertado
ao fim de três anos sem acusação formada

10 de janeiro de 2012

Carneirada

Como que incapazes de pensar algo novo, levamo-nos por ideias que outros tiveram, repetidas até à exaustão. Somos seguidistas. Preferimos que outros façam por nós, para que nos baste copiar e colar.

O que realmente me chateia nas redes sociais não é a partilha, o querer saber da vida alheia - eu quero, quero muito, e assumo-o sem remorsos. A mim dão-me cabo da paciência os "passa a isto a dez amigos", as "semanas do autismo" (a propósito, não existe tal coisa e o dia internacional assinala-se em Abril, não em Janeiro).

E então, quando achamos que não pode piorar, percebemos que estávamos enganados. Porque agora são os signos, os carros de cada signo, os perfumes de cada signo, as casas de cada signo, os desodorizantes de cada signo, a água mineral de cada signo, os detergentes de cada signo, a puta que os pariu de cada signo.

E se não são os astros, sê-lo-ão os pensamentos, as citações, as reflexões profundas e as imagens com piadas sobre o governo, a crise e a maçonaria.

Temos 400 amigos no Facebook mas podíamos ter só um. Afinal, dizem todos o mesmo.

Vamos lá, um pouco de criatividade, por favor (isso e menos erros ortográficos... usem o Firefox ou o Chrome que têm corrector).


9 de janeiro de 2012

Temp d'Canequinha

O mal de encontrarmos perdida, no meio de uma pasta, uma foto de família com mais de dez anos é que, passando revista, começamos a contar quantos éramos e os que somos. Entre mais velhos que já se foram e mais novos que ainda não se multiplicaram, a conta é necessariamente de subtracção. 

As famílias são hoje mais pequenas. Os nossos pais tiveram poucos filhos e nós teremos ainda menos ou nenhuns.

Sequer a possibilidade de nos juntarmos em pose, como nesse retrato, expositor de loja vintage, parece viável, espalhados que estamos por tantos lugares.

Houve um tempo em que quase mensalmente nos reuníamos em irmãos, tios e primos. Uma vez por anos, fazíamo-lo em versão alargada, até ao terceiro grau.

A festa que era foi acabando e hoje é cada vez mais raro encher a mesa, pedir cadeiras ao vizinho (porque as que temos não chegam) ou acordar cedo para uma viagem ao Oeste. 

Unia-nos o sentido de Família dos nosso avós e parece que também esse se foi com eles.

7 de janeiro de 2012

Que se seguem

Meio inquieta, e a propósito do texto "Morrer Depois das 8:00", uma amiga de longa data perguntou-me há dias sobre o meu interesse pela morte.

Expliquei-lhe que o tema me suscita curiosidade, essencialmente de um ponto de vista literário.
Tenho sobre a morte, uma postura de não relevo. Relativizo o verdadeiro propósito da nossa existência, tanto quanto pragmatizo a inevitabilidade do seu fim - ou desvalorizo a eventualidade de um regresso após cumprida a matéria (embora não negue a possibilidade).

Depois do dia, os dias seguir-se-ão aos dias, tanto quanto as horas ter-se-ão sucedido em horas, os minutos em minutos, os segundos, os instantes.

No fundo, por mais importantes que nos tenhamos, o mundo não morrerá connosco. É sobre isso que fala este poema de Alberto Caeiro, também ele sugerido pela amiga da inquietação.

Bom fim-de-semana pa bzot tud.

6 de janeiro de 2012

Frio

E eu fecho as janelas. Eu, que quase sempre as mantenho abertas, a não ser que chova, porque nos dois dias do ano em que chove a casa ficaria toda molhada se não as fechasse, fecho as janelas. 

Não estou a perceber o tempo deste cacimbo. Arrefeceu e isso é bom - é bom depois do calor infernal do verão - mas este ano está um frio tal que um tipo tem de pôr um um cobertor na cama, vestir calças, até usar uma manga comprida, e rezar um terço completo antes de conseguir abrir a água gelada do banho.

Estou prestes a morrer congelado. Estão 21 graus no Mindelo.

Adenda das 11:48: Hoje de manhã vacilei. Um homem também tem direito a desistir. Aqueci água numa panela e temperei a que já estava no balde.


O primeiro do ano

Ser emigrante - e sê-lo sem família por perto - é também estar disposto a abdicar. Desde que saí de Portugal, apenas por uma vez consegui passar o Natal com a minha gente de sempre. No primeiro ano é estranho, mas depois habituamo-nos e já não fazemos caso.

Desta vez estive em Santo Antão, ilha vizinha de São Vicente, com uma família amiga - a quem a minha mãe envia um abraço de solidariedade pela paciência que tem para me aturar (não é fácil, acreditem).

Foram dias maravilhosos, repetidos no fim-de-semana seguinte, a tempo da passagem de ano.

Aproveitei para ler. O segundo convenceu-me mais do que o primeiro.