5 de novembro de 2012

A morte de C.


C. tinha, na altura, a idade que agora tenho. Isso fazia dele bem mais velho do que eu. "Bem mais" não será, por ventura, a expressão exacta. Um tanto ou quanto mais, digamos antes assim. Para o caso, contudo, pouco interessa. O que sempre o distinguiu foram as ideias claras sobre a vida. A sua, a dos outros e a vida em geral - aquela que existe para lá das pessoas. 

Acreditava especialmente nessa terceira expressão, parece-me que de alguma forma relacionada com a existência. A vida além das gentes. 

C. era um tipo às direitas. Em tudo, porque confiável. Em tudo, porque de direita mesmo. Era aí que estava o nosso principal desencontro. Sempre fui de esquerda e sempre cuidei de o afirmar a C., mesmo sabendo que, a dada altura, faltar-me-iam os argumentos. Porque a sua mente estava cheia dos livros que leu, dos textos que escreveu e daqueles que, mesmo não tendo lido ou escrito - eu sei, parece estranho - compunham o seu pensamento pragmático, arrumado, perturbadoramente inabalável. 

Irritava-se comigo quando, cansando-me da obstinação, calava-o, atirando um seco "com essas ideias fixas, cá para mim és mas é comunista".

A C. faltou apenas o reconhecimento das massas. Não sei, sequer, se o procurava, provavelmente não, mas a um homem de tão grande dimensão um pouco de aplauso teria caído bem.

Sentado na terceira cadeira a contar da porta, na sala fria, cheia de rostos anónimos, semblantes carregados de dor genuína e presumida, vendo C. pelas últimas vezes, dei-me conta de que, nele, a morte foi como a vida: arrebatadora. 

Entre o álcool em excesso, o sexo despreocupado e as drogas em crescendo - "mas os betos de direita também se drogam?" - C. bebeu, fodeu e snifou o que quis, sempre que quis, enquanto quis. 

Literalmente enquanto quis. Porque nem depois do diagnóstico "três meses" senti em si, digamos, alguma moderação.

Decidiu que o cancro seria o principio do fim, mas não o fim em si mesmo. Morreria, sim, mas de livre vontade. E ali estava ele, cumprido o desejo, morto por vontade própria. E eu, sentado ao lado da senhora chorosa, que vagamente me fazia lembrar alguém, não conseguia mais que disfarçar um sorriso orgulhoso: "é de homem, é de homem".

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