14 de julho de 2011

Daqui até Ressano Garcia

Imagem retirada do site http://boagente.blogspot.com

O cheiro é pérfido e não preciso de subir mais do que o primeiro degrau para ficar enjoado. Uma mistura de suor e urina que invade as narinas e, por instantes, nos faz pensar em recuar. "Esta merda não é uma boa ideia".

A estação de caminhos de ferro de Maputo é um edifício histórico, referenciado por quem se interessa por essas coisas e cenário de algumas cenas do filme Diamantes de Sangue

O bilhete é barato e a viagem relativamente curta. São apenas três horas de caminho até Ressano Garcia, uma povoação fronteiriça, no sul de Moçambique, e um daqueles lugares onde o que parece não é e o que é por vezes desaparece.

Quinze meticais (pouco mais de 30 cêntimos) chegam para se ter acesso à plataforma de embarque, para lá do velho portão de ferro que o segurança acaba de abrir.

Dezenas de pessoas correm em direcção ao comboio. Confiro o relógio e ainda faltam vinte minutos até à hora da saída. 

Maputo acorda cedo, como o sol. A partir das cinco e meia instala-se um burburinho que cresce à medida que as ruas são invadidas pela luz que não aquece, num dos cacimbos mais frios dos últimos anos. São sete e vinte e cinco.

Procuro um lugar. Tento escolher a melhor posição. Quero observar e passar despercebido, mas também quero alguma distância da casa de banho sem água, cuja porta não fecha (no lavabo do outro lado da carruagem a porta sequer existe).

Sento-me sensivelmente a meio, num banco com a lona vermelha rasgada. À minha frente, por enquanto, ninguém. Meia-casa, "porreiro". Estico as pernas. 

Está na hora e partimos à tabela. Concentro-me no que se passa lá fora e tento ver alguma coisa pela janela imunda. Uma barata passeia-se pelo vidro e outra segue-lhe o rasto.

"Refresco, refresco", grita um dos rapazes de bata azul aos quadrados. "Pão, bolachas, saldo", anuncia outro.

Paramos em lugares imprevistos. Na maior parte dos casos, não existem estações, apenas metáforas. Paramos muito e muito tempo. Para estas povoações, que cresceram propositadamente ao longo da linha férrea, estes dez minutos de descanso da marcha são o momento alto do dia. Tudo se passa neste fragmento. Gente que sobe e gente que desce. Gente que espera e gente que se limita a olhar sem esperar nada. 

De repente, deixo de conseguir esticar as pernas. De repente, deixo de ter onde pôr a mochila. De repente, deixo de conseguir baixar os braços, que terão ficado algures entre duas pessoas. Sem que me tivesse apercebido, o comboio lotou. Será assim até Moamba, terra com nome de comida. Pensando nisso, já almoçava.

Entre apertos, ruído e embalo, deixo-me ir. Não me lembro de tudo. Devo ter adormecido ou, pelo menos, mergulhado numa suave letargia.

"Refresco, refresco"; "Pão, bolachas, saldo"; "Refresco, saldo, pão, bolachas"; "Bolachas, refresco, saldo"; "Refresco, refresco, pão".

Há uma mulher a dar de mamar. Há outra a comer peixe e a cuspir as espinhas. Está uma criança à minha frente a lamber um chupa. Tem a cara e as mãos sujas e acaba de as limpar às minhas calças. Pego nela ao colo e conversamos por gestos e sons durante largos minutos.

Estamos a chegar. Percebe-se pela movimentação. As capulanas voltam a ser amarradas à cintura, as caixas de plástico regressam ao interior dos sacos, os miúdos são novamente presos às costas das suas mães, num habilidoso movimento de braços.

Tomo posição numa das portas da carruagem e cumpro um sonho de infância: viajar sentado nas escadas, com as pernas para o lado de fora. Acendo um cigarro. Habitualmente não fumo, mas o momento exige celebração. A velocidade, que nunca foi grande, diminui. 

Ressano Garcia tem pó. Tem armazéns e tem gente. Ricos, pobres e duvidosos. Interessam-me estes, acima de tudo.  

Logo ali está a África do Sul. Lícita ou ilicitamente é possível comprar e vender quase tudo. Às claras, ou neste beco para o qual me convidaram. Telemóveis e computadores. Televisores e microondas. Tecnologia mais ou menos moderna, mais ou menos interessante. Um tax free de aeroporto, no quintal da casa de alguém.

Tenho fome. Entro num café e peço uma bifana. "Uma bifana e uma Laurentina, por favor". Média. Clara. "Essa cerveja bem fresca, sim?"


2 de julho de 2011

Perdão, o senhor disse que acabava?

Prefiro pontos finais. As reticências não são para mim. Escrevo assim, definitivo. Ordeno as letras em palavras, estas em frases, das quais nascem parágrafos e textos. Insignificantes narrativas, iguais a esta e a estas que por aqui se preservam, ao abrigo do tempo, envelhecidas e descontextualizadas por ele, mas aqui, como em tantos outros lugares.

De muitos [deles, dos textos], perdi-lhes o sentido, a intenção. São retalhos de uma vida que, embora minha, sempre minha, inclusive se vivida por outro alguém que não eu, deixou de ter a lógica de outrora, permanecendo-me, porém.

Escolho terminar as frases, ao invés de as deixar abertas. Reticências são isso, continuidade, seguimento, abertura. Prefiro fechar. Preciso de encerrar. Ideias, momentos, sentimentos, contratos, projectos. Só resolvido serei capaz de continuar. Aprendi isso, entretanto.

Do período a que  remonta a origem deste blogue sobra a incapacidade de antecipar ou aceitar a antecipação. Mas convenci-me de que só o definitivo satisfaz. Chegado o momento, o momento é esse. Não antes, não depois. Aquele, aquele ali. Agora de agora.

O ponto final é isso, o fim. Tanto como o novo parágrafo é o recomeço. Não se recomeça sem se ter acabado, só se acredita de novo, depois de ser ter desacreditado.

Escrevo para viver. Faço-o literalmente. Do produto da minha escrita, não esta mas a outra, resulta a matéria que me alimenta, que me veste e me transporta. Acontece que passei a última semana a questionar-me e a ser questionado sobre a forma como o faço. Sucessivas horas de dúvida, reflexão e crítica. Saí de mim e vi-me com tanto para aprender. Eu que sou, até com algum orgulho, um homem de pontos finais, percebi que há frases que se escrevem e que, julgando-se terminadas, ainda não chegaram ao fim. Essas frases somos nós.