19 de novembro de 2010

O que [não] sou

Descobri há dias uma fotografia dos meus primeiros tempos de escola. No final da década de 80, lá estávamos nós, em duas filas, nos degraus que do portão davam acesso ao pátio.

A Susana, a Bárbara, o Vítor, a Vanda, o André, a Raquel, a professora Antonieta e muitos outros, cujo nome o tempo se encarregou de apagar da minha não muito prodigiosa memória. De todos, mantenho contacto com apenas duas pessoas. Como não poderia deixar de ser, perdi o rasto à maioria.

Passaram-se mais de 20 anos desde o dia em que o fotógrafo, cumprindo uma tradição quase protocolar, fez a sua visita anual à numero 1 da Torre da Marinha e gravou na película do rolo Kodak - nessa altura, digitais, só os relógios da Casio - a inocência de quem, aos 6 anos, não faz a mínima ideia do que ainda está para vir.

Lembro-me do pão com manteiga que levava na mochila, juntamente com o pacote de Nesquik ou Bongo. Lembro-me de jogar ao mata e de, já na altura, não ser especialmente dotado para as actividades físicas. Lembro-me de ver o Vítor a fazer chichi nas calças em plena sala de aula. Da vez em que escrevi "serra" com "ç" (e do castigo que se seguiu) e da outra, em que a Paula (afinal também me lembro dela) me espetou na testa o lápis acabado de afiar.

A Susana Moreira foi a minha primeira 'namorada' e nós dávamos beijinhos envergonhados debaixo de um kispo, escrevíamos bilhetes apaixonados e toda a gente achava muita piada ao casalinho.

O tempo passou. Tenho tido uma vida boa. Ensinaram-me a lutar por aquilo que quero e foi isso que sempre fiz, às vezes de forma obstinada, mas sem nunca perder a dignidade ou o respeito pelos outros e por mim próprio. Acontece que não sei ouvir um "não" como resposta.

Acho que sou um homem justo. Evito fazer julgamentos primários e dou sempre uma segunda (uma terceira, uma quarta) oportunidade às pessoas. Talvez por isso não tenha inimigos ou não os conheça.

Sou jornalista porque quis ser. Antecipei-me e conquistei o meu lugar. Procuro merecer a confiança que depositam em mim. Na vida profissional, tanto como na pessoal, mais do que fiel, sou leal. Se estou, acredito. Se acredito, entrego-me. Por causa disso, passei ao lado de muitas oportunidades e recusei muitos convites, mas não há quem me possa apontar o dedo e dizer que estive num sítio, com a cabeça noutro.

Não sou um tipo muito sociável. Falo com toda a gente e disfarço a timidez com um humor sarcástico, mas raramente aprofundo relações de amizade. Dificilmente troco um desabafo que não de circunstância.

Não sei e não quero aprender a dançar. Gosto de ir a concertos, mas não me procurem nas primeiras filas, a não ser que sejam lugares sentados. A verdade é que também não percebo muito de música. Aliás, não percebo muito de muita coisa, a não ser de política, o que talvez faça de mim um chato.

Sou dos que cobra atenção. Se dou, quero em troca. Não precisa de ser hoje, mas terá de ser um dia e de preferência não muito longínquo. Não gosto de balanças desequilibradas. Choro com a mesma facilidade com que me rio à gargalhada e não tenho vergonha nenhuma disso.

Já conheci muitos países, já vivi em três. Comi coisas inimagináveis, em restaurantes luxusos ou tabernas com moscas, ratos e baratas. Bebi mais do que devia, embora sem nunca perder a compostura. Nunca fumei droga e não tenho curiosidade em experimentar.

Amei incomensuravelmente e fingi gostar de alguém. Também me enganei muitas vezes em relação a isto. Envolvi-me com a pessoa errada e magoei quem menos merecia. Mudei (ou tentei mudar) por alguém. Fiz amor, fiz sexo, fodi. Tive e dei prazer, mas também já correu mal e a culpa foi minha.

Aquilo e aquele que sou, imensa imperfeição, é o reflexo de tudo o que vivi e do que ambiciono viver. A minha essência é o resultado do somatório dos dias passados, presentes e futuros, elevados à categoria de semanas, meses e anos.

Sou aquilo que sou. Gostem ou não, este aqui sou eu.

8 comentários:

Alda Couto disse...

Este texto deixou-me com um largo e estúpido sorriso na cara :):):)

Libertinna disse...

O que és. Inteligente, boa pessoa, óptimo escritor, excelente jornalista e amigo dos teus amigos.Isso deve ser suficiente para muita gente mas, dançar nunca fez mal a ninguém...

Jardineiro do Rei disse...

Bem...
Agora é a vez do progenitor. Do Pai Jão!Daquele tipo que te mudava as fraldas antes que tu lhe mijasses em cima (muitas vezes mijaste mesmo...) Daquele fulano que, perdido de sono, te dava o biberão às tantas da madrugada e que tu - sem vergonha! - exigias: Pai Jão! Canta o "Ai... ai". Era - para que fiquem a saber - aquela canção infantil, que dizia assim: Ai... ai... ai... minha machadinha, quem te pôs a mãos sabendo que és minha!
E ainda não te cobrei a vergonha que me fizeste passar, quando me obrigaste a cantar essa cantiga à frente do Dr. Vitor! "assim não dá! - Pai Jão, canta o ai... ai!" - Safado!
E olha... agora também já não vou cobrar nada...
Cresceste demais para a "cobrança" ter efeito!
E de resto tu até eras (e és...) um puto fixe.
És o que és... um gajo de corpo inteiro, cheio de virtudes... e "alguns" defeitos.
Já andamos às "turras", já nos reconciliamos...
...de resto, Nuno, passamos tão bons momentos de cumplicidade (a "velhota" fica sempre tramada...
Sempre foste um lutador. Sempre deste a cara por aquilo em que acreditas.
Casmurro... chato... às vezes arrogante (ou não?). Amigo leal...
Mas há uma coisa com que não concordo... quando dizes que não tinhas grande aptidão para o desporto! Foste um excelente guarda-redes de Andebol. Do Seixal Futebol Clube! E eu sei do que falo! Quem sabe onde poderias ter chegado...
Tu és tudo o que dizes e muito mais...
És um Homem! Porra... continua assim!

Ana C. disse...

"Confesso que vivi"
Se fosse a ti mandava gravar isto tudo na tua lápide. Se não couber o texto inteiro, põe apenas:
Fiz amor, fiz sexo, fodi.
Escreves pouco por aqui, mas quando escreves rebentas a escala.

Emanuel disse...

Foi o mais belo texto escrito neste blogue.

andorinhaavoaavoa disse...

Podes ser tudo o que escreveste ou podes ser outra coisa qualquer. Conheci e aprendi a gostar de ti. Apesar de estares longe de mim, o que por vezes é quase trágico, continuo a adorar-te como pessoa e como o chato que efectivamente és. Posso dizer-te que és um dos meus amigos, membro permanente no meu coração. Por vezes penso aquilo que poderíamos partilhar se estivesses à minha beira... enfim!! Sim, dançar não é o teu forte, mas também não podes ser perfeito, pá! LOVE U... tu sabes!

Anónimo disse...

É isto o que tu és?
Então o que tu és, é escritor!
Para quando um livro, pá?

Queen of Drama disse...

Adorei o texto e não posso discordar do amigo "anonimo". Resumiu perfeitamente aquilo que tu és: ficamos à espera do livro