26 de outubro de 2011

A estrada



O local está referenciado nos guias turísticos da ilha. Em Santo Antão, a alguns quilómetros da Ribeira Grande, o Vale da Garça estende-se por entre as montanhas, até ao mar. 

Da Manta Velha até à Cruzinha, o caminho é feito pela ribeira, local que, durante a época das chuvas, fica cheio de água e, naturalmente, intransitável. Para a população local, são períodos de um isolamento profundo. Perdido o contacto terrestre,  a ligação com o resto do mundo é feita apenas por via marítima. Se a ondulação o permitir, um bote viaja desde Ponta do Sol, transportando os mantimentos necessários para a subsistência de quem vive numa clausura temporária.

No sentido contrário, a embarcação leva consigo aqueles que precisam de se deslocar à povoação para, por exemplo, receber cuidados médicos. 

Nem sempre o socorro é possível e as gentes daquele lugar, por vezes tão distante, contam que não são raros os episódios de mortes provocadas pela demora na resposta aos pedidos de ajuda.

Se os prazos forem cumpridos, dentro de aproximadamente um ano o cenário poderá ser diferente. Está em curso a empreitada de construção da estrada que ligará Cruzinha, Chã de Igreja e outros pequenos povoados ao resto da rede viária da ilha. 

As expectativas são elevadas. Fala-se de concretização de um sonho e em desenvolvimento. Imagina-se o número de turistas a aumentar e deseja-se a melhoria das actuais condições de vida.

Uma promessa

A ideia de construir uma estrada de desencravamento dos povoados do Vale da Garça tem quase tantos anos como o país de independência. Em visitas ao local, os sucessivos governos prometeram resolver o problema, mas só recentemente é que o projecto começou a ganhar forma.

A obra foi adjudicada a um consórcio de empresas, liderado pela portuguesa Somague. A primeira pedra foi lançada em 2009 e os trabalhos arrancaram em 2010. Com um prazo de execução de 24 meses, a empreitada está mais ou menos a meio.

A 8 de Setembro do ano passado, Celso Pires, expressava no seu blogue - chadigreja.webnode.com - a satisfação pela chegada das máquinas. "Finalmente começamos a ver uma luz no fundo do túnel", escrevia.

Celso não está sozinho na alegria. Em Chã de Igreja, José Nascimento junta-se ao entusiasmo. 

"As pessoas estão satisfeitas. Vai mudar muita coisa. Em termos de agricultura e de turismo, isto vai avançar de grande maneira. Vai haver um salto qualitativo. Acreditamos que vai trazer um impacto extraordinário para esta freguesia", assegura.

"É um sentimento de esperança, de grande alegria", resume.

À localidade, o sinal da televisão pública não chega. O contacto com o exterior é feito essencialmente pela rádio. 

O período das cheias torna a vida árdua, recorda José. "A comida chega com muita dificuldade. Os comerciantes trazem-na por via marítima, mas todo esse trabalho faz com que, depois, precisem de subir os preços". 

"A chuva é sempre bem-vinda", esclarece, "mas é um mês muito difícil. Esperamos que no ano que vem isso possa estar normalizado". 

A sua expectativa é grande, "muito grande", reforça. "Temos emigrantes em Portugal, em França e na Holanda que querem investir cá".

A esses projectos refere-se também Benvindo Santos. Saindo de Chã de Igreja, a viagem de carro até à Cruzinha dura pouco mais de dez minutos.

Lá, onde não chegam notícias - há três anos o mau tempo destruiu o emissor da RTC - o presidente da associação comunitária aguarda por dias melhores.

"Com a estrada pode ser que as pessoas cheguem cá mais depressa", espera. "Esta é uma zona preferida pelos turistas".

Com uma vista singular para o mar, Cruzinha tem uma economia centrada no turismo da natureza - há quem se dedique ao artesanato, fabricando colares de missangas e esculpindo pequenas peças em casca de coco - e na pesca.

"As pessoas estão com esperança", assume Benvindo, alertando que a estrada, por si, não resolverá todos os problemas.

"Somos uma comunidade piscatória. Esperamos que a entrada dessa estrada torne possíveis alguns investimentos no sector, como por exemplo, melhorar a condição do arrastadouro, ou melhorar a energia". 

No topo das prioridades está também o acesso a uma máquina de gelo que possa substituir a existente, de pequena capacidade.

Preocupações

Antigo deputado nacional pelo Movimento para a Democracia e ex-secretário da Assembleia Municipal da Ribeira Grande, eleito pelo mesmo partido, Adriano Duarte afastou-se da vida partidária. 

Mora em Manta Velha, onde começará o asfalto, e reconhece que o projecto é "muito bem-vindo".

"É uma reivindicação de há muito tempo. Vai ser uma mudança radical, porque é uma zona que sempre esteve encravada", antevê.

Apesar de considerar que "a construção da barragem suplanta tudo o resto", não deixa de observar que as obras estão a provocar um problema ambiental com consequências imprevisíveis. 

"Os trabalhos estão a dar origem à queda de pedras para o leito da ribeira. Há zonas com casas e zonas agrícolas em que, se vier uma chuva como aquelas que têm aparecido nos outros anos, essas pedras poderão constituir um grande problema", teme.

A quantidade de detritos é tão grande que, em alguns pontos, a paisagem está totalmente alterada.

Preocupados, os habitantes do vale promoveram um abaixo-assinado, apelando à intervenção das autoridades. 

"Estamos à espera de uma solução. As máquinas vão retirando alguma coisa, mas a maioria vai ficando", explica Adriano Santos.

A preocupação do antigo parlamentar é partilhada por José Nascimento. "As pessoas estão inquietas com as consequências da construção".

"É importante que limpem a ribeira, porque se vier chuva a situação pode ser muito complicada".

"Esta ribeira sobe muito alto, com muita força. Espero que o governo tome medidas para resolver este problema", alerta.

As preocupações da população convergem com as da câmara municipal. O executivo autárquico tem acompanhado os trabalhos e, apesar de satisfeito com o investimento feito pelo Ministério das Infra-estruturas, esperava outra atitude por parte do consórcio responsável.

O Vale da Garça deve receber uma barragem, já adjudicada. O vereador Arlindo Fortes teme que, "se não forem tomadas medidas, em vez reter água, a barragem sirva para a retenção de inertes".

"É preciso diligenciar, logo com a conclusão da obra, para que seja realmente retirada toda aquela enxurrada que vem de cima", avança o autarca.

A Câmara da Ribeira Grande está convencida de que a estrada vai desencravar os povoados isolados, mas apela ao governo e ao consórcio para que, durante os trabalhos, mantenham um diálogo mais permanente com as autoridades locais. 

"Até termos o produto final, temos de garantir a satisfação das necessidades das pessoas", justifica Arlindo Fortes.

A estrada Manta Velha - Cruzinha faz parte de uma pacote de infra-estruturas rodoviárias que estão a ser executadas em Santo Antão com financiamento através de uma linha de crédito concessional atribuída a Cabo Verde por Portugal, no valor de 2,5 milhões de contos.

Excerto revisto de uma reportagem publicada no 
Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 515 

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