19 de setembro de 2011

Número 42

A Dona Ricardina voltou-se a esquecer de tirar a roupa da corda. Pendurou-a ao final da manhã, altura em que o sol cobre de luz directa a apertada rua e ilumina as fachadas envelhecidas. A humidade que desce neste final de tarde rapidamente poisará sobre as blusas e a saias - negras, do luto - as toalhas e os lençóis - brancos, de simplicidade.

Ainda não se vê o número 42. Ao longo dos 200 metros de ombreiras alinhadas há uma mistura de cheiros no ar. Aqui, torradas e chá. Adiante, a cebola queimada do refogado há demasiado tempo no lume.

Nem todas as casas estão ocupadas. Em muitas, a tinta em sobrepostas camadas começou a sair, desvendando o cimento, também ele envelhecido e rasgado, como se de rugas se tratassem as fendas abertas com os anos.

Uma portada aberta balança com a aragem. Devagar. A espaços, percebe-se o chiar das dobradiças a precisar de óleo.

A estrada é o passeio, mas por aqui passam poucos carros. De vez em quando, como acontece com este Fiat verde escuro, matricula de 92, alguém se lembra de tapar o caminho. De nada servem os avisos da câmara e os reparos dos vizinhos. "Mas custa muito estacionar no parque, merda?"

Pedi ao empreiteiro que pintasse a porta de verde e ele pintou, só que por cima do vermelho que agora se volta a ver.

Cansado, procuro a chave. Bolso da direita, da esquerda; casaco; pasta. "Onde é que a meti?". Um passo atrás, subo o olhar pela parede e procuro luz a sair por uma das janelas no primeiro andar.

Gosto de sítios com história. Às casas, prefiro-as antigas. Sempre que me mudo, transporto comigo o que não deixo para trás. E deixo sempre alguma coisa. Seja um utensílio de cozinha, um varão de cortina, um objecto pessoal dentro da gaveta.

Por isso, quando chego de novo, procuro sempre um sinal da presença que me antecedeu. A mancha de uma quadro que já esteve pendurado, a marca dos móveis no chão de madeira, um pano do pó ou as molas na corda da roupa.

Preciso do que contar. Encontro e invento, como inventada é a parte deste texto que não chegou a acontecer. Imagino. Gosto da sensação de continuidade dos lugares que eram antes de chegarmos e que ficam depois de partirmos.


4 comentários:

Alda Couto disse...

Quando escreveres o teu livro, quero ir ao lançamento :):)

Nuno Andrade Ferreira disse...

Que exagero, Antigona. Obrigado, em todo o caso.

Diwane disse...

Lindo!

Nuno Andrade Ferreira disse...

Abraço querida Diwane.