5 de março de 2010

Integração ao som do berimbau

O som do berimbau ouve-se ao longe. Ultrapassado o portão da Escola Técnica, não é preciso andar muito, para lá do portão verde da Escola Técnica, para que o batuque ecoe pelos corredores quase vazios. Por baixo de um telheiro, onde o calor do dia ainda se sente, um grupo de crianças repete, ao compasso da música, os passos da dança que o professor ensina. É uma aula de capoeira. Gamal é o professor.

De cabelo trançado, calças largas e t-shirt com as letras da associação cultural de que é o principal mentor, Gamal passa aos mais novos os ensinamentos que trouxe do Brasil, já lá vão 13 anos. Recorda-se do tempo em que atravessou o Atlântico e descobriu mais sobre aquela que é hoje a sua grande paixão. “Fui para o Brasil estudar Educação Física e mesmo antes de começarem as aulas na universidade, inscrevi-me na capoeira. Nas primeiras férias trouxe uns vídeos e aquilo que, entretanto, aprendera”. Estavam deitadas à terra as primeiras sementes.

Em 2000, concluídos os escudos, Gamal regressou definitivamente ao arquipélago. Professor, começou a dar aulas. Às modalidades tradicionais – futebol, basquetebol, atletismo – juntou uma outra, a capoeira. O resultado foi surpreendente. “Como todos estavam no mesmo nível, gerou-se uma fenómeno interessante, em que alunos que nunca se destacaram, revelaram-se óptimas surpresas”.

O segredo do sucesso da dança, que também é luta, sem contacto, pode estar precisamente no inesperado que se gera. “A capoeira, é uma modalidade que consegue envolver os aspectos da expressão e consciência corporal, da formação do esquema motor e da disciplina mental”, resume o ‘mestre’.

O projecto actual promove a integração das crianças e jovens que nele participam. “É a ocupação saudável dos tempos livres”, enquanto alternativa à violência e criminalidade de que tanto se fala.

Ao todo, são cerca de 400 alunos, em vários bairros da cidade da Praia e noutros pontos da ilha de Santiago. Os números do Centro Cultural Humaitá impressionam: além da modalidade mãe, 50 jovens frequentam uma orquestra de percussão e 300 estão envolvidos nas aulas de iniciação à dança. Já são muitas centenas, mas, para um público numa idade em que a afirmação pessoal é o mais importante, todas as alternativas são poucas. “Faltam ginásios públicos, placas desportivas, pistas de skate e de patins. É preciso apoiar as associações juvenis e eclesiásticas”, considera Gamal. “Com apoio institucional pode ser feito muito mais”.

Falta de formação académica, desemprego, inexistência de um projecto de vida. O diagnóstico há muito que está feito. Às novas gerações cabo-verdianas faltam, muitas vezes, perspectivas de futuro. Nada que intimide um dos pioneiros da capoeira no pais crioulo: “Cabo verde é pequeno e em 10, 20 anos pode-se resolver o problema da juventude. Há que ter vontade e disponibilizar meios”, acredita. Se depender do professor, a chave é esta: “ocupar o tempo livre com algo de positivo, onde as pessoas canalizem as suas energias”.

Exemplos de sucesso

Foi isso que fez Juca. Com 24 anos, tem 12 de entrega à modalidade. Via os “muleques” na televisão. Agora, alem de continuar a dançar, é também monitor. “Os meus pais não tinham muitas possibilidades, por isso não pude estudar muito. Queria ter alguma coisa com que ocupar os meus tempos livres. A capoeira foi a minha oportunidade”, reconhece.

Oportunidade é também a palavra que Ady usa para justificar a entrega à luta sem toque. “Coloca os jovens a fazer outra coisa que não a consumir drogas ou a beber álcool”. São sete anos de experiência, em menos de 25 vividos.

O entusiasmo não tem fronteiras de género. Liliane e Maily também fazem parte do movimento. “Desenvolve o eu da pessoa”, defende a primeira. “É uma libertação”, acrescenta a segunda. Têm 20 anos, e, se Liliane acredita que “quando os jovens entram na actividade, já só pensam nisso”, Maily prefere alertar o governo para que “se preocupe com o povo em vez de gastar o dinheiro noutras coisas”.

Uma luta de paz

Não há contacto na capoeira, o que “impõe respeito”, julga Gamal. “Tens de te preocupar com o colega com quem estás a lutar. Temos de ter auto-controlo suficiente. É assim na vida”. A rotatividade de funções – “ora cantas, ora tocas, ora lutas” – ensina que “há uma hora em que temos de servir o outro, outra em que temos de ser servidos”.

“Há momentos em que tu tens de ceder, em que tu tens de fugir. Na vida real precisamos de aprender a ceder. Temos de saber quais as vontades e os deveres de cada um e construir um equilíbrio a partir daí”.


publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 431, de 3 de Março de 2010
fotografia de André Amaral