Os pequenos pontos, em relevo, organizados numa ordem só perceptível ao toque, são um nada cheio de histórias, escritas assim para quem lê o mundo com a ponta dos dedos. Estivessem as páginas do jornal em Braille e os protagonistas desta reportagem não precisariam que alguém lhes lesse o texto em voz alta. Fomos à escola de cegos.
Ainda antes da cozinha, o cheiro, entretanto espalhado pelos corredores, denuncia que a aula já teve início. Desde que a professora Alzira chegou, e já lá vão alguns meses, que é assim. Ao final do dia, terminadas as aulas, a mesa rectangular – a grande mesa rectangular – enche-se de formandos que aproveitam os cabelos brancos de quem anda há muito entre tachos e panelas, para aumentar conhecimentos. E não se pense que um arroz de cavala ‘comme il faut’ é coisa pouca. Para aqueles a quem as cores do mundo se representam em formas, odores, sons e paladares, saber como não deixar queimar o refogado pode fazer toda a diferença.
A aula, já se percebeu, é de culinária. O projecto, pioneiro no país, é a mais recente aposta da Associação dos Deficientes Visuais de Cabo Verde, uma instituição, fundada em 1993, que tem na escola de cegos a sua principal valência.
A escola chama-se Manuel Júlio e a escolha do nome terá sido tudo, menos aleatória. Manuel Júlio é o pioneiro do ensino de cegos no arquipélago. Primeiro, na sua casa, depois, em salas emprestadas e, desde 2003, no código postal 831 da Achada de São Filipe, cidade da Praia, o sociólogo, também invisual, dedica-se de corpo e alma – dize-lo, não é um exagero – ao ensino especial e à capacitação dos invisuais, tendo em vista a entrada na vida activa.
A sua história tem sido de “um grande desafio”, nas palavras do próprio. Começou “sozinho, em casa, com dois alunos”. A recordação leva-nos até 1977, ano em que regressa a Cabo Verde, depois de uma passagem por Angola e Portugal. O tempo na terra dos ‘palancas negras’ terá sido determinante no percurso que acabou por seguir. “Aprendi Braille em Angola. Com a independência, os meus professores regressaram a Portugal e insistiram muito para que eu continuasse os estudos”, recorda. Após alguma insistência, lá acedeu ao pedido e, passados poucos meses, estava em Lisboa, para só de lá sair dois anos mais tarde, de regresso à Praia.
No entretanto, aprendeu várias profissões. “Aprendi a trabalhar em tapetes, tirei o curso de marceneiro, de recepcionista e de telefonista”. A formação valeu-lhe um emprego no ministério das Obras Públicas. Mas não deixou de estudar. “Uma disciplina de cada vez, aos poucos”.
Fazendo uso dos seus próprios recursos financeiros, continuou a ensinar, em casa, até 1988, quando, “por insistência dos colegas e até do ministro” de então, aceita voltar à capital portuguesa, onde se formou em sociologia.
Numa vida, já se percebeu, feita de partidas e chegadas regressa às ilhas em 1993. À data, uma decisão é tomada: “Achei que não valeria a pena sofrer sozinho por uma coisa que não me dizia respeito só a mim”. O governo mostrou-se disponível para ajudar e, da sala de casa à sala de aula emprestada foi um curto passo. A boa-vontade de muitos, acumulada ao longo de uma década, resultou no edifício onde, agora, meia centena de alunos caminham com a confiança de quem, não vendo senão escuridão, conhece bem o chão que pisa.
Os primeiros passos
Uma dessas alunas é Dercileila. Os óculos escuros, massa vermelha, tapam-lhe mais do que os olhos. Servem para esconder a timidez, denunciada pelos gestos envergonhados e riso nervoso. Há quatro anos, vinda de São Nicolau, chegou para estudar. Aprende Braille – “é um bocado difícil” – e com ele persegue o sonho de “ter uma vida melhor”. Quer “um emprego e uma família”. O desejo de uma vida comum.
A aprendizagem do Braille é o primeiro passo na formação académica de um deficiente visual. O domínio do sistema de leitura e escrita baseado no tacto é fundamental para o acesso à informação. Por isso se compreende a aposta que a escola da ADVIC faz no seu ensino.
A falta de livros, adaptados às necessidades dos alunos cegos, é um problema. O país não produz obras em Braille e o acervo que existe na pequena biblioteca da associação vem de fora, com todos os custos que isso representa. Por outro lado, um caderno, com folhas próprias para o tipo de escrita, ronda os 2500 escudos.
Diz-se que um cego experiente pode ler duzentas palavras por minuto. “O contacto com a leitura e a escrita contribui para o desenvolvimento intelectual de qualquer ser humano”. Quem o diz é Lurdes Borges. Antes de estar reformada, era professora na escola. A aposentação não a tirou da sala de aula, onde continua a passar as tardes, agora como voluntária.
Reconhecendo a importância de dominar o Braille, Lurdes defende também a formação profissional. “Uma formação profissional é fundamental. Só a formação académica não é suficiente”, considera, numa opinião que é partilhada por Manuel Júlio que, por isso, tem apostado em cursos de informática, música e artesanato.
A falta de livros, adaptados às necessidades dos alunos cegos, é um problema. O país não produz obras em Braille e o acervo que existe na pequena biblioteca da associação vem de fora, com todos os custos que isso representa. Por outro lado, um caderno, com folhas próprias para o tipo de escrita, ronda os 2500 escudos.
Diz-se que um cego experiente pode ler duzentas palavras por minuto. “O contacto com a leitura e a escrita contribui para o desenvolvimento intelectual de qualquer ser humano”. Quem o diz é Lurdes Borges. Antes de estar reformada, era professora na escola. A aposentação não a tirou da sala de aula, onde continua a passar as tardes, agora como voluntária.
Reconhecendo a importância de dominar o Braille, Lurdes defende também a formação profissional. “Uma formação profissional é fundamental. Só a formação académica não é suficiente”, considera, numa opinião que é partilhada por Manuel Júlio que, por isso, tem apostado em cursos de informática, música e artesanato.
Um emprego
O maior sonho de Jenice é ser telefonista. Também quer “uma família”, mas a ambição de um emprego é tudo para a jovem de 22 anos, há nove na escola de cegos.
O seu percurso tem sido feito de sobressaltos. Apesar de, nem sempre, os estudos lhe correrem de feição – “abandonei a escola muitas vezes” – reconhece a importância das aulas. “Se nós não temos estas escolas, ficamos com muitos problemas”, acredita. “É esta escola que nos dá um emprego”.
Um trabalho para quem termina os estudos é um desafio. De entre todos os alunos que já passaram pela escola, Manuel Júlio sabe que existem 15 a trabalhar. “Estamos a bater em todas as portas, a tentar arranjar novas ofertas”, garante.
“O objectivo é que cada deficiente visual seja auto-sustentável e tenha auto-domínio, para, assim, fazer a sua vida própria e ser independente”.
Para isso, a escola garante um acompanhamento. Do total de alunos, ligados à instituição, muitos frequentam, entretanto, o ensino regular. Outros chegaram à universidade. “Tentamos sempre estar próximos dos alunos, acompanhar a evolução e ver onde estão as falhas, para que as coisas corram da melhor forma possível”, afirma Marciano Monteiro, director do estabelecimento de ensino.
A escola procura “criar o gosto para que todos possam aproveitar aquilo que a associação tem para lhes oferecer”. Contudo, “a tarefa não é fácil”, suspira.
Os cinquenta invisuais apoiados actualmente pela ADVIC representam apenas uma pequena gota da realidade, bem mais expressiva. Estima-se que existam 2500 cegos em Cabo Verde e não é preciso grande aritmética para perceber que somente dois a três por cento da população deficiente visual tem acesso ao ensino especializado. Quando assim é, a entrada no mercado laboral fica, naturalmente, mais difícil.
Antes de se mudarem para o quarto onde ainda moram estavam a duas horas da estrada mais próxima, num caminho só acessível a pé. Demasiado longe e demasiado imprevisível. Um dia, Manuel Júlio teve conhecimento da história da família. Subiu o trilho até Longadeira – ainda longe e distante – e encontrou uma casa com dez pessoas: mãe e nove filhos, quatro invisuais. Trouxe-os consigo.
Sem recursos, com uma deficiência, os quatro irmãos – dois rapazes, duas raparigas – estavam condenados a uma vida de dependência.
Durante anos, ainda hoje é assim, a associação garantiu-lhes educação, alojamento e alimentação. O esforço deu frutos. O irmão mais velho concluiu o liceu e trabalha como telefonista, numa câmara municipal. O segundo estuda ciências sociais, na Universidade de Cabo Verde, e as duas mais novas prosseguem os estudos, no ensino básico.
A história destes quatro irmãos avizinha-se de sucesso. Resgatados ao esquecimento, são exemplos de como há quem vença o estigma.
Maria Furtado da Veiga é professora. Também invisual, como os alunos que ensina, sabe o que é sentir descriminação, resultado da sua condição. Uma vez mais, o emprego: “às vezes há empresas que não recebem deficientes visuais, porque dizem que não têm competência para trabalhar”.
O preconceito combate-se, defende, com “todo um serviço de informação, para consciencializar a sociedade civil”, porque “há empregos aos quais as pessoas portadoras de deficiência visual são adaptáveis”.
Na mesma linha, Lurdes Borges acha que “para quem é cego é muito importante conseguir ter uma profissão”. A antiga professora repete a ideia de que “as pessoas ainda não conseguem ver um deficiente visual como alguém que tem uma vida normal”.
Mas não é só do fim do estigma social que depende a ‘normalidade’ da vida dos deficientes visuais cabo-verdianos. A estrutura arquitectónica das cidades não ajuda à sua mobilidade.
“Quando o deficiente visual quer ir à escola ou ao trabalho, tem dificuldades, porque não temos passeios em condições, nem ruas em condições”, exemplifica Manuel Júlio. Os problemas começam, desde logo, na capital. “A cidade da Praia tem barreiras que dificultam a mobilidade de uma pessoa com deficiência visual”, sentencia o director Marciano Monteiro.
Por esta altura, o arroz de cavala está pronto. Para a refeição ficar completa faltam apenas “umas queijadinhas deliciosas”.
Quando convidaram Maria Alzira para o curso de culinária, ela nem queria acreditar. “Não me achei capaz”. A descrença durou pouco. “No primeiro dia que cá cheguei fiquei muito emocionada”.
Decorou o nome de todos os alunos – primeiro 15, agora 20 – e faz questão de os cumprimentar, um por um, “com um beijo ou um abraço”. Começa por ler a receita e passar os ingredientes, “para eles sentirem e tocarem”. Dá as dosagens em colheres ou chávenas e, à vez, todos se lançam ao trabalho.
A Maria Alzira, o cabelo grisalho confere-lhe a autoridade de quem sabe do que fala: “a vida é uma caminhada e mesmo que o caminho seja íngreme, devemos continuar a ter força”.
Um trabalho para quem termina os estudos é um desafio. De entre todos os alunos que já passaram pela escola, Manuel Júlio sabe que existem 15 a trabalhar. “Estamos a bater em todas as portas, a tentar arranjar novas ofertas”, garante.
“O objectivo é que cada deficiente visual seja auto-sustentável e tenha auto-domínio, para, assim, fazer a sua vida própria e ser independente”.
Para isso, a escola garante um acompanhamento. Do total de alunos, ligados à instituição, muitos frequentam, entretanto, o ensino regular. Outros chegaram à universidade. “Tentamos sempre estar próximos dos alunos, acompanhar a evolução e ver onde estão as falhas, para que as coisas corram da melhor forma possível”, afirma Marciano Monteiro, director do estabelecimento de ensino.
A escola procura “criar o gosto para que todos possam aproveitar aquilo que a associação tem para lhes oferecer”. Contudo, “a tarefa não é fácil”, suspira.
Os cinquenta invisuais apoiados actualmente pela ADVIC representam apenas uma pequena gota da realidade, bem mais expressiva. Estima-se que existam 2500 cegos em Cabo Verde e não é preciso grande aritmética para perceber que somente dois a três por cento da população deficiente visual tem acesso ao ensino especializado. Quando assim é, a entrada no mercado laboral fica, naturalmente, mais difícil.
O estigma e as barreiras
Antes de se mudarem para o quarto onde ainda moram estavam a duas horas da estrada mais próxima, num caminho só acessível a pé. Demasiado longe e demasiado imprevisível. Um dia, Manuel Júlio teve conhecimento da história da família. Subiu o trilho até Longadeira – ainda longe e distante – e encontrou uma casa com dez pessoas: mãe e nove filhos, quatro invisuais. Trouxe-os consigo.
Sem recursos, com uma deficiência, os quatro irmãos – dois rapazes, duas raparigas – estavam condenados a uma vida de dependência.
Durante anos, ainda hoje é assim, a associação garantiu-lhes educação, alojamento e alimentação. O esforço deu frutos. O irmão mais velho concluiu o liceu e trabalha como telefonista, numa câmara municipal. O segundo estuda ciências sociais, na Universidade de Cabo Verde, e as duas mais novas prosseguem os estudos, no ensino básico.
A história destes quatro irmãos avizinha-se de sucesso. Resgatados ao esquecimento, são exemplos de como há quem vença o estigma.
Maria Furtado da Veiga é professora. Também invisual, como os alunos que ensina, sabe o que é sentir descriminação, resultado da sua condição. Uma vez mais, o emprego: “às vezes há empresas que não recebem deficientes visuais, porque dizem que não têm competência para trabalhar”.
O preconceito combate-se, defende, com “todo um serviço de informação, para consciencializar a sociedade civil”, porque “há empregos aos quais as pessoas portadoras de deficiência visual são adaptáveis”.
Na mesma linha, Lurdes Borges acha que “para quem é cego é muito importante conseguir ter uma profissão”. A antiga professora repete a ideia de que “as pessoas ainda não conseguem ver um deficiente visual como alguém que tem uma vida normal”.
Mas não é só do fim do estigma social que depende a ‘normalidade’ da vida dos deficientes visuais cabo-verdianos. A estrutura arquitectónica das cidades não ajuda à sua mobilidade.
“Quando o deficiente visual quer ir à escola ou ao trabalho, tem dificuldades, porque não temos passeios em condições, nem ruas em condições”, exemplifica Manuel Júlio. Os problemas começam, desde logo, na capital. “A cidade da Praia tem barreiras que dificultam a mobilidade de uma pessoa com deficiência visual”, sentencia o director Marciano Monteiro.
De volta à cozinha
Por esta altura, o arroz de cavala está pronto. Para a refeição ficar completa faltam apenas “umas queijadinhas deliciosas”.
Quando convidaram Maria Alzira para o curso de culinária, ela nem queria acreditar. “Não me achei capaz”. A descrença durou pouco. “No primeiro dia que cá cheguei fiquei muito emocionada”.
Decorou o nome de todos os alunos – primeiro 15, agora 20 – e faz questão de os cumprimentar, um por um, “com um beijo ou um abraço”. Começa por ler a receita e passar os ingredientes, “para eles sentirem e tocarem”. Dá as dosagens em colheres ou chávenas e, à vez, todos se lançam ao trabalho.
A Maria Alzira, o cabelo grisalho confere-lhe a autoridade de quem sabe do que fala: “a vida é uma caminhada e mesmo que o caminho seja íngreme, devemos continuar a ter força”.
publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 427, de 3 de Fevereiro de 2009
fotografia de Ulisses Moreira
fotografia de Ulisses Moreira
2 comentários:
O artigo está fenomenal, Nuno.
Fantástico. Muitos parabéns. Tocou-me particularmente o assunto porque fiz há muito pouco tempo uma formação em audiodescrição, que consiste em descrever o que silenciosamente se esconde dos invisuais durante um espectáculo. Por exemplo em teatro: cenários, movimentações dos personagens em cena, expressões denunciadoras de algo, etc.
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