14 de maio de 2010

Martinho

Martinho é uma espécie de historiador. Apesar de não ser natural da ilha onde agora vive, por lá se fixou há muitos anos e conhece de cor as lembranças que cada rua, cada travessa e cada porta conservam. Ou então não. Em todo o caso, foi assim que me convenceu.

Martinho, que presumo estar no esplendor dos 60 (tenho os sexagenários em grande conta), é um personagem, só por si. Quando lhe bati à porta, com 24 horas de atraso, acolheu-me como se fossemos amigos de longa data. Decretou, quase de imediato, que, pela similaridade dos nossos nomes – não tão iguais assim, perceba-se – passaríamos a ser primos. Não fosse a sua casa um caos completo, como estava prestes a descobrir, e teria desconfiado dele.

O lugar onde vivemos diz muito sobre quem somos. A loucura daquele primeiro andar – ao qual se chega por uma escada estreita e, também ela, atabalhoada – tranquilizou-me. Eis um homem coerente.

No escritório, onde os livros roubaram, aposto que há muito, o lugar ao chão, as estantes esforçam-se hold and still para sobreviverem ao excesso de carga a que são sujeitas.

Na sala, os sofás, cobertos de uso, viram-se para o piano. A visita não acabará sem uma morna.

Conversa solta, desprendida e desconexa. Despropositada. Eis um homem coerente. A cidade, as pessoas da cidade e a cidade das pessoas. De Adriano, claro (era sobre ele que ali estava). E do Manuel, da Carlota, da Joaquina, do Serôdio e de todos os nomes que conseguirem, comigo, inventar. Martinho tem, sobre qualquer um de vocês, uma memória.

Duas horas depois, Sagres Mini para elevar o espírito, o piano, finalmente o piano. Desafinado. Um desafino que é um desatino. B’Leza em notas soltas, a uma mão, sem acordes por decreto. Não há compasso. Que homem tão coerente.

Saí da casa, na segunda rua de Chã de Alecrim, às seis da tarde. Podia ter saído às 10 da noite. Podia ainda lá estar hoje. Caminhei até à pracinha do bairro, à procura de um táxi. Quis acompanhar-me e pedi-lhe que não o fizesse. Martinho, na sua casa, é tudo o que quer e quiser ser. Nós somos o que formos, onde tivermos de ser. Na circunstância – eis um homem coerente – isso bastava.


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