9 de julho de 2010

O Chato*


Como toda a gente, também tem noites más que se seguem, quase sempre, a dias não muito melhores. Nessas noites, ao invés das outras, vai até à varanda. Segura a cerveja numa mão e na outra o cigarro.

Não sendo um grande fumador - o homem não fuma de todo, a não ser nessas noites, digamos, más - preocupa-se pouco com a marca do que leva à boca. Não tem tiques de fumador, não trava e nunca sabe ao certo qual a melhor altura para, num gesto que se esperava seguro, diminuir a cinza do tabaco queimado.

Na sua visão romântica, fumar um cigarro deveria obedecer a todo um ritual. Caramba, não sabendo aquilo a nada, enquanto aceso, deixando a boca a saber a merda, no final, ao menos que seja cerimonial. Mas afinal, até porque já o dissemos, ele não é grande fumador, acaba o cigarro e fica a pensar que o fez demasiado depressa.

Se bem se lembram, contudo, na outra mão - direita, porque fuma com a esquerda - tem a garrafa de cerveja. Não voltará para dentro, deixando sózinha a varanda, a vista limitada pelos prédios altos, e o burburinho das 22 horas, sem acabar os 25 centilitros de água com cevada que, ao contrário de outras coisas, nas quais não é particularmente exigente, tem marca certa e temperatura ideal.

Não o tomem por bêbado. Na realidade, não estivessem estas noites assim tão quentes e teria ido refrescar as ideias só com o cigarro mal fumado.

O problema é que cresceu demasiado depressa e demasiado sozinho. Não se lembra ao certo do que é que andou a fazer até aos dez anos, mas sabe que foi com essa idade que se sentou pela primeira vez a ver um debate na televisão. Azar o seu: muito mais do que os Power Rangers, aquilo é que era animação. Ao virar da sua primeira década de existência deu o passo que o tornaria um chato para o resto da vida.

Por isso, daqui a pouco, quando hesitar entre levar a garrafa para a cozinha ou atira-la para a rua e ver o espectáculo do vidro partido no passeio - Rosseau, não te quero contrariar mas, esta noite, de bom selvagem, este sujeito não vai ter nada - aperceber-se-à que o facto de ter tamanha dificuldade em fazer amigos e, acima de tudo, relacionar-se com pessoas do sexo oposto, é consequência, em grande medida, daquele fatídico frente-a-frente entre Soares e Freitas, em 1986.

Ainda falta um bocado para esse momento. Por enquanto, o pobre coitado - assim curvado, debruçado à procura de um rabo de saias, parece mesmo um infeliz, miserável - só pensa em como é aborrecido viver sozinho no quarto andar de um prédio dos subúrbios da capital, de onde fugiu a tempo de evitar a ordem de despejo dada por um senhorio lógica e justificavelmente enfurecido. E não fosse o apetite voraz da empregada do Pingo Doce - nunca o mundo conheceu uma caixa de supermercado com uma libido em tal estado de sítio - e o tráfego mensal de Internet esgotar-se-ia ao dia dez.

Quando tem as suas noites más, as tais que se seguem a dias não muito bons, é isto que ele faz. Nas outras, as não tão más assim, fica na sala, de comando na mão, absolutamente satisfeito com o que a televisão digital tem para oferecer. Felizmente, isso está prestes a mudar.


* Por favor, não me estou a retratar.

3 comentários:

Jardineiro do Rei disse...

Essa de fumar um cigarro e ficar com a boca a saber a m... tem que se lhe diga. Achava eu que que ficava com um ar absolutamente irresistível quando, em noites de insónia, ou porque o sacana do chefe me atrofiava o juízo, ou o puto não me deixava dormir, ia para a varanda da sala fazer essa mistura execrável: tabaco mais cerveja...
Não te estás a retratar. Claro que não!

andorinhaavoaavoa disse...

Conhecendo-te como conheço, diria que tanto ele como nós os dois, temos muito em comum. Lembro-me as noites na piscina, sem luz em com mosquitada em barda, onde bebíamos cerveja. Eu fumava e tu queimavas cigarros. Gosto dele, o chato, como gosto de ti! :)

Alda Couto disse...

Gostei tanto deste texto (e do outro mais acima) que não se me ocorre nada para dizer. Toma lá um sorriso, ou dois, vá lá que sejam três :):):)