29 de janeiro de 2010

Cidade Velha: O lugar do padre Campos

Quando, a 4 de Outubro de 1954, desembarcou na cidade da Praia, no navio que o trouxe da então metrópole, talvez não imaginasse que, mais de cinco décadas passadas, continuaria no arquipélago do qual, agora, também faz parte. Apesar de toda a dedicação, acha que podia ter feito muito mais. Se pudesse recomeçar, esta seria, novamente, a sua paragem. O padre Campos tem saudades de Portugal, “mas a saudade não mata ninguém”.

Como é que reagiu na altura em que soube que vinha para Cabo Verde?

Reagi bem. Pensei: Cabo Verde é uma terra, há lá gente. Se há lá gente, tenho com quem falar. Nós somos preparados para isto e eu sempre quis vir para as missões. Entrei no seminário da Congregação do Espírito Santo e, desde esse momento, disse que era essa a minha intenção. Olhe, cá estou.

Porquê as missões?

Isto é uma questão de família. Eu tinha uma irmã, que morreu há dois anos, que era zeladora das missões. Eu ia lendo as revistas sobre o assunto e entusiasmei-me. Foi aí que decidi entrar para o seminário.
E digo-lhe, Cabo Verde é apaixonante. Quanto mais pobres são as pessoas, mais nos apaixonamos por elas.

Como é que, na altura, a sua família reagiu à notícia de que viria para África?

Eu já não tinha nem mãe, nem pai. O resto da família reagiu de forma natural. Eles já sabiam que eu vinha para as missões. Portanto, não foi uma coisa anormal. Aliás, enquanto os meus pais eram vivos, eles diziam sempre: “segue a tua vocação, porque nós não duramos sempre”. Era um bom conselho que me davam.

Chegou a Cabo Verde em 1954. Que imagem guarda da sua chegada ao país?

O meu primeiro dia foi na Praia. Cheguei ao meio-dia, do dia 4 de Outubro de 1954. Os barcos ficavam ao largo e depois havia umas lanchas que nos iam buscar. Lembro-me que só havia uma lancha a motor e o resto era tudo a remo.
Fomos almoçar à nossa casa e foi aí que o nosso superior nos disse que havia um carro da colónia penal que ia, no dia seguinte, para o Tarrafal. Foi um dia de viagem.
Quando cheguei disse para mim: eu venho para aqui e vou-me adaptar.
Sabe que para mudar assim de país e para nos adaptarmos é preciso ter uma vida de desapego e isso nós aprendemos na nossa vida de estudantes.

Como é que aprendeu a falar crioulo?

Quando cheguei ao Tarrafal, uma das primeiras coisas que o meu superior me disse foi: tu vais aprender o crioulo.
Bem, não havia um dicionário, não havia uma gramática e eu pedi-lhe para me deixar passar os fins-de-semana nas aldeias ali à volta, para me ir habituando à língua. Ele deixou e eu lá comecei a arranhar o crioulo. Claro que, de início, as pessoas riam-se de mim e eu sempre lhes dizia: podem rir, que eu quero é aprender. E olha, resultou.

Apaixonou-se por Cabo Verde assim que chegou?

Claro. Uma paixão diferente das habituais. Apaixonei-me por todos. Ainda hoje é assim.

Há quanto tempo não vai a Portugal?

Não vou a Portugal desde 1988. Fui nesse ano para fazer uma operação à próstata e depois disso nunca mais voltei.

Não tem saudades?

Sabe que as saudades são essencialmente dirigidas para os entes mais próximos, o pai e a mãe. Ora, eu perdi os meus há muito tempo. Hoje, ir a Portugal, já não me diz nada. A família já quase não existe, as pessoas que conhecia, já não conheço. Em missão, nós tomamos uma nova família.
A verdade é esta: na medida em que nos pomos na pele deste povo, ficamos a viver com eles, como eles. Tenho saudades sim, mas a saudade não mata ninguém.
O fundador da nossa ordem, um judeu convertido, dizia para nos esquecermos da nossa pátria e para nos fazermos africanos.

Fez-se africano?

Claro que sim. Cada pessoa que vem ter comigo é uma pessoa que precisa de mim e eu deixo tudo para a servir. Os grandes precisam de mim, os pequenos precisam de mim. Eu não olho se são grandes ou pequenos. Trato a todos com o mesmo respeito e digo-lhes, muitas vezes: eu dou-vos conselhos e vocês também mos dão a mim.


"Examino o meu percurso e digo que podia ter feito muito mais e não fiz."

Nunca sentiu solidão?

O meu próprio temperamento ajuda-me. Eu nunca fui muito sociável. Eu estou só, mas não estou triste por estar só. Estou com Deus.
Tenho também aqui em casa uma empregada que está comigo há mais de trinta anos. Casou-se, tem três filhos e moram comigo. Nós jantamos, conversamos e rezamos todos juntos.

De alguma forma, viver junto desta comunidade tem sido um desafio?

Podia ser um desafio para alguém que não tem nenhum treino. Mas eu fui treinado para isto. Fui treinado para viver em comunidade e para aceitar as pessoas como elas são e não como eu queria que elas fossem. Digo muitas vezes para mim: Aceita-o, ouve-o, ele tem os seus problemas.
O padre tem de ter tempo para ouvir as pessoas. Não imagina quantos dias eu passei na conservatória a tirar certidões para esta gente. Mas é assim. Eu tenho de ajudar estas pessoas, porque eles precisam de ajuda. Faço aquilo que sei.
Por exemplo, na catequese, costumo dizer: aquilo que não aprendi, não te obrigo a saber, mas aquilo que eu sei, que aprendi depois de velho, com tanto trabalho, tens obrigação de aprender também. É assim.
No fundo, temos de nos equiparar a eles. Viver com eles, conhecer os defeitos deles, porque nós também temos os nossos defeitos. Ouvi-los e julga-los só depois disso.
Estou contente, estou no meu lugar.

Sente que cumpriu a sua missão?

Não. Examino o meu percurso e digo que podia ter feito muito mais e não fiz. Quer dizer, eu faço o que posso. Não me sinto orgulhoso pelo que fiz. Peço sempre a Deus para me ajudar a continuar a fazer mais e mais.

A porta da sua casa está sempre aberta?

Bem, sempre aberta, é preciso entendermo-nos. Hoje há muito banditismo. Agora, está sempre aberta para receber as pessoas. Ainda hoje fui a Pedra Badejo, voltei, estou agora consigo e vou receber mais gente ainda antes do jantar.
Veja que, em Cabo Verde, devido a esta abertura que deram, criou-se uma sociedade que deixa muito a desejar. A criminalidade juvenil é novidade, não existia. Então é preciso termos prudência e acautelarmo-nos.
Acontece muitas vezes baterem à porta a pedir uma esmola, porque têm fome. E nós respondemos: queres um pão? “Ah, não, prefiro dinheiro”. Ora, para que é que aquela pessoa quer o dinheiro? Não é para comida. Há-de ser para a droga, para o álcool. Mas, ainda assim, é preciso ouvir essas pessoas e entende-las.

Emociona-se?

Nós temos de nos emocionar, mas temos também de disciplinar as nossas emoções.
Dou-lhe um exemplo. Eu gosto de ver futebol e estava a ver um jogo lá de Portugal. Houve uma confusão no campo e, no final do jogo, os jornalistas viraram-se para o árbitro e perguntaram-lhe o que é que se tinha passado. Ele respondeu-lhes: “um copo com água a ferver, não serve para beber. Deixem arrefecer a água. Hoje não falo, que estou emocionado. Vamos dormir, vamos descansar e amanhã logo falamos”.
Bem, nunca me esqueci desta história de um árbitro de futebol. Eu também procuro dominar as minhas emoções. Não quer dizer que não me emocione. Emociono-me muitas vezes, simplesmente, engulo em seco.
A questão das emoções depende, em primeiro lugar, do modo de ser do indivíduo, desde pequeno. Depois, depende também do ambiente em que ele vive. Estas emoções, por vezes, são compartilhadas com outros. Nós nunca somos juízes em causa própria.

Estes anos todos serviram-lhe para reconfirmar a sua vocação?

Com certeza. Sem dúvida nenhuma. Não quero brilhar. Faço um trabalho pela calada, procurando servir a todos, mesmo que às vezes não consiga. Deus é que sabe.
Se eu tivesse a começar, começaria aqui mesmo.

Se para o jantar lhe dessem a escolher entre cachupa ou cozido à portuguesa, qual seria a sua escolha?

Às vezes não escolhia nada. Muitas vezes há o desejo da cachupa, outras do cozido à portuguesa. Hoje a cachupa é um prato caro, mais caro do que um cozido.
O sacerdote tem de se alimentar bem, para poder trabalhar. Por outro lado, o padre não quer enriquecer. A vida é difícil, também para nós. A comida que vem à mesa é o que eu como. E às vezes não vem nada.

publicada no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 427, de 27 de Janeiro de 2009
fotografia de Quim Macedo

18 de janeiro de 2010

Um isolamento que se “sente no corpo”

A estrada acaba pouco depois de Ribeira Prata. Daí por diante, o esburacado caminho de terra batida não convida à viagem. Quem se aventura nos quilómetros seguintes chega a Figueira Muita, terra de ‘mulheres coragem', para quem, os ovos, as galinhas que os põem e os frangos hão-de ser a salvação.

Os mais velhos contam que, em tempos passados, Figueira Muita fazia jus ao seu nome. Hoje, na povoação, lugar perdido por entre vales e montanhas, a meia hora do Tarrafal, o que falta em árvores de fruto, sobra em esperança de dias melhores.

O olhar dos pouco mais de 190 habitantes de Figueira Muita está virado para [o que há-de ser] uma estrada. O asfalto deve chegar - chegará um dia - e com ele uma ligação mais rápida ao futuro. Só assim fará sentido o projecto que apresentaram a concurso e que mereceu o apoio da Embaixada dos Estados Unidos. As mulheres - e os homens, em minoria - da terra das figueiras querem pôr mãos à obra e fazer da criação de galinhas e frangos um projecto rentável, criador de emprego e dinamizador da economia local.

Criadas as condições, estando o aviário a produzir, "vamos dar emprego a oito ou dez mulheres e serão elas a fazer a criação e a distribuição pelas lojas e mercados". Quem o diz é a presidente da Associação de Amigos.

Maria Júlia nasceu e cresceu na terra que "muito ama". Refere-se a si na terceira pessoa: "A Maria Júlia fica triste sempre que uma família deixa Figueira Muita". Para combater a desertificação, a líder associativa sabe que é preciso "criar condições para que as pessoas fiquem cá". O projecto do aviário e a estrada são, por isso, "duas coisas muito urgentes". É que "este isolamento sente-se no corpo".

Figueira Muita de coisa pouca

Não é que não haja homens em Figueira Muita. Eles existem, sim, mas naquelas terras serranas, a luta faz-se, quase sempre, no feminino. Com Portugal e França no destino, "os homens saíram para trabalhar fora do país, enquanto nós ficámos". Vai daí, "começa a crescer o número de mulheres". Ainda hoje é assim. Maria Júlia conta que "a maior parte dos chefes de família são mulheres. Mulheres de muita coragem".

Nada de extraordinário, para quem faz da bravura sinónimo de sobrevivência. "As mulheres de Figueira Muita têm de ser corajosas. Quando temos um filho, se lhe queremos dar uma alimentação adequada, se queremos que ele ande na escola e se, para isso, não temos ajuda de ninguém temos de ser fortes, claro que temos de ser fortes", sentencia.

Quem chega, não demora a perceber que todas as vidas se conjugam com pobreza. Feitas as contas, dos que restam - os que não partiram - serão "apenas cinco ou seis" os que estão empregados. O resto dos 196 habitantes vive "do que a terra lhes dá e da ajuda da associação". É uma vida sem planos, sujeita ao livre arbítrio da meteorologia. "Em 2009 choveu bastante e isso ajudou à agricultura", afirma Maria Júlia.

A chuva ajudou também a encher os tanques nos quais a população armazena água. Todas as casas têm a sua própria cisterna. Simultaneamente, um grande reservatório garante o abastecimento quando os depósitos individuais secam. O esforço não chega e "dentro de algum tempo" Figueira Muita ficará sem pinga de água. Aí, um carro dos bombeiros percorrerá o íngreme caminho desde o Tarrafal. Fará o percurso duas vezes por semana e levará água às famílias que dependerão desta ajuda para suprir as mais básicas necessidades.

Uma ‘estrada de sonhos'

Elas - voltamos às mulheres - já fizeram do sonho realidade quando conseguiram uma sala para que as crianças da terra possam frequentar a escola até ao sexto ano. A partir daí, só se estuda em Assomada ou no Tarrafal. O problema é que, sem estrada, só lá chega quem tem onde ficar. Pelo relato percebe-se que são poucos os que prosseguem os estudos.

O que se passa é que, sem estrada - um caminho cheio de buracos nunca será uma estrada - só há transporte duas vezes por semana. Demasiado pouco para os que sonham ir além dos porcos, das galinhas e das cabras.

"Eu amo muito esta terra, mas quero ver progresso e desenvolvimento", repete, várias vezes, Maria Júlia.

A chave para o próximo nível está, então, na estrada. As pedras já lá estão, o asfalto é que tarda. Mesmo quando a obra acontecer, talvez nem tudo fique resolvido. O projecto inicial previa a ligação, alcatroada, entre Fundura e Ribeira Prata, mas "parece que agora já não querem assim", revela, preocupada, a presidente da associação local.

De acordo com a líder comunitária, "só querem construir a estrada até ao fim do empedrado". Se assim for, "os nossos problemas vão-se manter".

Não se pense que é coisa menor. Com a obra podem vir "mais transportes", "mais comércio" e até "mais gente".

A ambição de uma ligação à modernidade sente-se em cada frase. "Talvez com a estrada até os emigrantes pensem em voltar, porque já vão poder desenvolver os seus próprios projectos". Entretanto, Maria Júlia sonha já com a próxima empreitada que vai liderar. "Queremos aproveitar a água das chuvas que vai no asfalto". Para isso, a população prepara-se para ‘arregaçar as mangas' e construir um novo reservatório para armazenamento das águas pluviais. "A vida não pára".

Nasceu para liderar

Maria Júlia é uma líder nata. Apesar de fazer questão de afirmar que a criação de uma associação (ver caixa) foi um projecto colectivo, não são precisos muitos minutos de conversa para perceber a garra desta mulher de 42 anos.

Passa os dias em Figueira Muita e quando está fora é a tratar dos assuntos da terra, "porque a presidente da associação representa toda a comunidade, mesmo os que não são sócios da Associação de Amigos", assegura.

A sua casa é uma das primeiras da povoação. À chegada, recebe-nos ela e a sua filha mais nova. "A minha filha precisa de estudar e, para estudar, tem de sair e ficar longe de mim. Os filhos precisam das mães", desabafa.

Espera que 2010 seja melhor que 2009. "Espero e tem de ser melhor", determina. "A Maria Júlia tem muita coragem, mas não deixa de ser mulher".

publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 424, de 6 de Janeiro de 2009
fotografia de Quim Macedo

De volta do interior

Há um bom motivo para a minha ausência prolongada. Passei a semana que acabou no Tarrafal. A vila dispensa grandes apresentações. Vou publicar aqui, ao longo dos próximos dias, alguns dos trabalhos que fiz por lá. Entretanto, ficam algumas fotografias - de André Amaral - do interior de Santiago.

9 de janeiro de 2010

Essa cachupa


cachupa guisada (a fotografia não é minha, pelo que o dedo não é meu)

 
Talvez seja por isso que eu sou gordo, mas a verdade é que a cachupa guisada ao pequeno-almoço é, disso tenho a certeza, a oitava maravilha do mundo.

Como não tenho grande coisa em casa – bem, nem paciência para cozinhar – as minhas refeições são quase todas feitas ‘fora de portas’. Se é certo que na Praia se como por três, quatro euros, é certo também que isto significa uma conta astronómica só para alimentação. A propósito, estou prestes a mudar de vida e preparo-me para adoptar um estilo mais saudável (not!).

Mas voltemos à cachupa. Eu não sei se vocês já comeram cachupa. Se não o fizeram, é como comerem qualquer coisa muito boa, parecida com feijoada, só que com milho. Acontece que o melhor do prato é o ‘day after’ – estrangeiro – quando o molho seca, a carne acaba e fica o feijão e o milho (n.a.: Nuno a salivar).

Em Cabo Verde, acompanhado de um ovo estrelado e de uma ‘linguiça di terra’, é este o pequeno-almoço típico. Ora, eu sou um defensor das tradições locais e por isso tornei-me um fiel adepto desta forma calórica de começar o dia.

A cachupa ao nascer e a cerveja ao pôr do sol, não deve ser uma combinação esperta, mas assim como assim, a julgar pelos sinais que o corpo me vai dando, não devo ter sido talhado para um vida longa… e saudável, pelo que o melhor é aproveitar enquanto mantenho todas as funções vitais.

8 de janeiro de 2010

Hoje

Portugal é, a partir de hoje, um país mais moderno. Finalmente, aos casais homossexuais é dado o direito de opção sobre as suas próprias vidas. O Estado deve ser regulador, mas não castrador. Ganha a liberdade.

Clara Pinto Correia

Se aquilo é um orgasmo, alguém precisa de lhe dizer que anda a ser mal fod***.

Aqui.

5 de janeiro de 2010

Adenda ao post anterior

... sim, Diana, os porcos são mais inteligentes que os cães e se não dessem tão boas bifanas, o meu próximo animal de estimação haveria de se chamar Porky.

4 de janeiro de 2010

Breves notas sobre a vida

A passagem de ano no Mindelo é, de facto, muito boa.

Em São Vicente, 90% das mulheres são iguais à Lura.

Figueira Muita fica longe de tudo.

Em Cabo Verde, os porcos comportam-se que nem cães.

As galinhas de Santiago têm muito pouco amor à vida.

A minha crioula continua a mulher mais bonita deste mundo, do outro e do espaço que existe entre os dois.