A estrada acaba pouco depois de Ribeira Prata. Daí por diante, o esburacado caminho de terra batida não convida à viagem. Quem se aventura nos quilómetros seguintes chega a Figueira Muita, terra de ‘mulheres coragem', para quem, os ovos, as galinhas que os põem e os frangos hão-de ser a salvação.
Os mais velhos contam que, em tempos passados, Figueira Muita fazia jus ao seu nome. Hoje, na povoação, lugar perdido por entre vales e montanhas, a meia hora do Tarrafal, o que falta em árvores de fruto, sobra em esperança de dias melhores.
O olhar dos pouco mais de 190 habitantes de Figueira Muita está virado para [o que há-de ser] uma estrada. O asfalto deve chegar - chegará um dia - e com ele uma ligação mais rápida ao futuro. Só assim fará sentido o projecto que apresentaram a concurso e que mereceu o apoio da Embaixada dos Estados Unidos. As mulheres - e os homens, em minoria - da terra das figueiras querem pôr mãos à obra e fazer da criação de galinhas e frangos um projecto rentável, criador de emprego e dinamizador da economia local.
Criadas as condições, estando o aviário a produzir, "vamos dar emprego a oito ou dez mulheres e serão elas a fazer a criação e a distribuição pelas lojas e mercados". Quem o diz é a presidente da Associação de Amigos.
Maria Júlia nasceu e cresceu na terra que "muito ama". Refere-se a si na terceira pessoa: "A Maria Júlia fica triste sempre que uma família deixa Figueira Muita". Para combater a desertificação, a líder associativa sabe que é preciso "criar condições para que as pessoas fiquem cá". O projecto do aviário e a estrada são, por isso, "duas coisas muito urgentes". É que "este isolamento sente-se no corpo".
Figueira Muita de coisa pouca
Não é que não haja homens em Figueira Muita. Eles existem, sim, mas naquelas terras serranas, a luta faz-se, quase sempre, no feminino. Com Portugal e França no destino, "os homens saíram para trabalhar fora do país, enquanto nós ficámos". Vai daí, "começa a crescer o número de mulheres". Ainda hoje é assim. Maria Júlia conta que "a maior parte dos chefes de família são mulheres. Mulheres de muita coragem".
Nada de extraordinário, para quem faz da bravura sinónimo de sobrevivência. "As mulheres de Figueira Muita têm de ser corajosas. Quando temos um filho, se lhe queremos dar uma alimentação adequada, se queremos que ele ande na escola e se, para isso, não temos ajuda de ninguém temos de ser fortes, claro que temos de ser fortes", sentencia.
Quem chega, não demora a perceber que todas as vidas se conjugam com pobreza. Feitas as contas, dos que restam - os que não partiram - serão "apenas cinco ou seis" os que estão empregados. O resto dos 196 habitantes vive "do que a terra lhes dá e da ajuda da associação". É uma vida sem planos, sujeita ao livre arbítrio da meteorologia. "Em 2009 choveu bastante e isso ajudou à agricultura", afirma Maria Júlia.
A chuva ajudou também a encher os tanques nos quais a população armazena água. Todas as casas têm a sua própria cisterna. Simultaneamente, um grande reservatório garante o abastecimento quando os depósitos individuais secam. O esforço não chega e "dentro de algum tempo" Figueira Muita ficará sem pinga de água. Aí, um carro dos bombeiros percorrerá o íngreme caminho desde o Tarrafal. Fará o percurso duas vezes por semana e levará água às famílias que dependerão desta ajuda para suprir as mais básicas necessidades.
Uma ‘estrada de sonhos'
Elas - voltamos às mulheres - já fizeram do sonho realidade quando conseguiram uma sala para que as crianças da terra possam frequentar a escola até ao sexto ano. A partir daí, só se estuda em Assomada ou no Tarrafal. O problema é que, sem estrada, só lá chega quem tem onde ficar. Pelo relato percebe-se que são poucos os que prosseguem os estudos.
O que se passa é que, sem estrada - um caminho cheio de buracos nunca será uma estrada - só há transporte duas vezes por semana. Demasiado pouco para os que sonham ir além dos porcos, das galinhas e das cabras.
"Eu amo muito esta terra, mas quero ver progresso e desenvolvimento", repete, várias vezes, Maria Júlia.
A chave para o próximo nível está, então, na estrada. As pedras já lá estão, o asfalto é que tarda. Mesmo quando a obra acontecer, talvez nem tudo fique resolvido. O projecto inicial previa a ligação, alcatroada, entre Fundura e Ribeira Prata, mas "parece que agora já não querem assim", revela, preocupada, a presidente da associação local.
De acordo com a líder comunitária, "só querem construir a estrada até ao fim do empedrado". Se assim for, "os nossos problemas vão-se manter".
Não se pense que é coisa menor. Com a obra podem vir "mais transportes", "mais comércio" e até "mais gente".
A ambição de uma ligação à modernidade sente-se em cada frase. "Talvez com a estrada até os emigrantes pensem em voltar, porque já vão poder desenvolver os seus próprios projectos". Entretanto, Maria Júlia sonha já com a próxima empreitada que vai liderar. "Queremos aproveitar a água das chuvas que vai no asfalto". Para isso, a população prepara-se para ‘arregaçar as mangas' e construir um novo reservatório para armazenamento das águas pluviais. "A vida não pára".
Nasceu para liderar
Maria Júlia é uma líder nata. Apesar de fazer questão de afirmar que a criação de uma associação (ver caixa) foi um projecto colectivo, não são precisos muitos minutos de conversa para perceber a garra desta mulher de 42 anos.
Passa os dias em Figueira Muita e quando está fora é a tratar dos assuntos da terra, "porque a presidente da associação representa toda a comunidade, mesmo os que não são sócios da Associação de Amigos", assegura.
A sua casa é uma das primeiras da povoação. À chegada, recebe-nos ela e a sua filha mais nova. "A minha filha precisa de estudar e, para estudar, tem de sair e ficar longe de mim. Os filhos precisam das mães", desabafa.
Espera que 2010 seja melhor que 2009. "Espero e tem de ser melhor", determina. "A Maria Júlia tem muita coragem, mas não deixa de ser mulher".
Os mais velhos contam que, em tempos passados, Figueira Muita fazia jus ao seu nome. Hoje, na povoação, lugar perdido por entre vales e montanhas, a meia hora do Tarrafal, o que falta em árvores de fruto, sobra em esperança de dias melhores.
O olhar dos pouco mais de 190 habitantes de Figueira Muita está virado para [o que há-de ser] uma estrada. O asfalto deve chegar - chegará um dia - e com ele uma ligação mais rápida ao futuro. Só assim fará sentido o projecto que apresentaram a concurso e que mereceu o apoio da Embaixada dos Estados Unidos. As mulheres - e os homens, em minoria - da terra das figueiras querem pôr mãos à obra e fazer da criação de galinhas e frangos um projecto rentável, criador de emprego e dinamizador da economia local.
Criadas as condições, estando o aviário a produzir, "vamos dar emprego a oito ou dez mulheres e serão elas a fazer a criação e a distribuição pelas lojas e mercados". Quem o diz é a presidente da Associação de Amigos.
Maria Júlia nasceu e cresceu na terra que "muito ama". Refere-se a si na terceira pessoa: "A Maria Júlia fica triste sempre que uma família deixa Figueira Muita". Para combater a desertificação, a líder associativa sabe que é preciso "criar condições para que as pessoas fiquem cá". O projecto do aviário e a estrada são, por isso, "duas coisas muito urgentes". É que "este isolamento sente-se no corpo".
Figueira Muita de coisa pouca
Não é que não haja homens em Figueira Muita. Eles existem, sim, mas naquelas terras serranas, a luta faz-se, quase sempre, no feminino. Com Portugal e França no destino, "os homens saíram para trabalhar fora do país, enquanto nós ficámos". Vai daí, "começa a crescer o número de mulheres". Ainda hoje é assim. Maria Júlia conta que "a maior parte dos chefes de família são mulheres. Mulheres de muita coragem".
Nada de extraordinário, para quem faz da bravura sinónimo de sobrevivência. "As mulheres de Figueira Muita têm de ser corajosas. Quando temos um filho, se lhe queremos dar uma alimentação adequada, se queremos que ele ande na escola e se, para isso, não temos ajuda de ninguém temos de ser fortes, claro que temos de ser fortes", sentencia.
Quem chega, não demora a perceber que todas as vidas se conjugam com pobreza. Feitas as contas, dos que restam - os que não partiram - serão "apenas cinco ou seis" os que estão empregados. O resto dos 196 habitantes vive "do que a terra lhes dá e da ajuda da associação". É uma vida sem planos, sujeita ao livre arbítrio da meteorologia. "Em 2009 choveu bastante e isso ajudou à agricultura", afirma Maria Júlia.
A chuva ajudou também a encher os tanques nos quais a população armazena água. Todas as casas têm a sua própria cisterna. Simultaneamente, um grande reservatório garante o abastecimento quando os depósitos individuais secam. O esforço não chega e "dentro de algum tempo" Figueira Muita ficará sem pinga de água. Aí, um carro dos bombeiros percorrerá o íngreme caminho desde o Tarrafal. Fará o percurso duas vezes por semana e levará água às famílias que dependerão desta ajuda para suprir as mais básicas necessidades.
Uma ‘estrada de sonhos'
Elas - voltamos às mulheres - já fizeram do sonho realidade quando conseguiram uma sala para que as crianças da terra possam frequentar a escola até ao sexto ano. A partir daí, só se estuda em Assomada ou no Tarrafal. O problema é que, sem estrada, só lá chega quem tem onde ficar. Pelo relato percebe-se que são poucos os que prosseguem os estudos.
O que se passa é que, sem estrada - um caminho cheio de buracos nunca será uma estrada - só há transporte duas vezes por semana. Demasiado pouco para os que sonham ir além dos porcos, das galinhas e das cabras.
"Eu amo muito esta terra, mas quero ver progresso e desenvolvimento", repete, várias vezes, Maria Júlia.
A chave para o próximo nível está, então, na estrada. As pedras já lá estão, o asfalto é que tarda. Mesmo quando a obra acontecer, talvez nem tudo fique resolvido. O projecto inicial previa a ligação, alcatroada, entre Fundura e Ribeira Prata, mas "parece que agora já não querem assim", revela, preocupada, a presidente da associação local.
De acordo com a líder comunitária, "só querem construir a estrada até ao fim do empedrado". Se assim for, "os nossos problemas vão-se manter".
Não se pense que é coisa menor. Com a obra podem vir "mais transportes", "mais comércio" e até "mais gente".
A ambição de uma ligação à modernidade sente-se em cada frase. "Talvez com a estrada até os emigrantes pensem em voltar, porque já vão poder desenvolver os seus próprios projectos". Entretanto, Maria Júlia sonha já com a próxima empreitada que vai liderar. "Queremos aproveitar a água das chuvas que vai no asfalto". Para isso, a população prepara-se para ‘arregaçar as mangas' e construir um novo reservatório para armazenamento das águas pluviais. "A vida não pára".
Nasceu para liderar
Maria Júlia é uma líder nata. Apesar de fazer questão de afirmar que a criação de uma associação (ver caixa) foi um projecto colectivo, não são precisos muitos minutos de conversa para perceber a garra desta mulher de 42 anos.
Passa os dias em Figueira Muita e quando está fora é a tratar dos assuntos da terra, "porque a presidente da associação representa toda a comunidade, mesmo os que não são sócios da Associação de Amigos", assegura.
A sua casa é uma das primeiras da povoação. À chegada, recebe-nos ela e a sua filha mais nova. "A minha filha precisa de estudar e, para estudar, tem de sair e ficar longe de mim. Os filhos precisam das mães", desabafa.
Espera que 2010 seja melhor que 2009. "Espero e tem de ser melhor", determina. "A Maria Júlia tem muita coragem, mas não deixa de ser mulher".
publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 424, de 6 de Janeiro de 2009
fotografia de Quim Macedo
fotografia de Quim Macedo
2 comentários:
Gostei muito da reportagem. Deve ser esse tipo de trabalho que faz mesmo valer a pena a escolha de ir viver para aí.
Portanto entre Figueira Muita e o resto do mundo a diferença não é grande...no que respeita às mulheres, evidentemente :)
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