Quando, a 4 de Outubro de 1954, desembarcou na cidade da Praia, no navio que o trouxe da então metrópole, talvez não imaginasse que, mais de cinco décadas passadas, continuaria no arquipélago do qual, agora, também faz parte. Apesar de toda a dedicação, acha que podia ter feito muito mais. Se pudesse recomeçar, esta seria, novamente, a sua paragem. O padre Campos tem saudades de Portugal, “mas a saudade não mata ninguém”.
Como é que reagiu na altura em que soube que vinha para Cabo Verde?
Reagi bem. Pensei: Cabo Verde é uma terra, há lá gente. Se há lá gente, tenho com quem falar. Nós somos preparados para isto e eu sempre quis vir para as missões. Entrei no seminário da Congregação do Espírito Santo e, desde esse momento, disse que era essa a minha intenção. Olhe, cá estou.
Porquê as missões?
Isto é uma questão de família. Eu tinha uma irmã, que morreu há dois anos, que era zeladora das missões. Eu ia lendo as revistas sobre o assunto e entusiasmei-me. Foi aí que decidi entrar para o seminário.
E digo-lhe, Cabo Verde é apaixonante. Quanto mais pobres são as pessoas, mais nos apaixonamos por elas.
Como é que, na altura, a sua família reagiu à notícia de que viria para África?
Eu já não tinha nem mãe, nem pai. O resto da família reagiu de forma natural. Eles já sabiam que eu vinha para as missões. Portanto, não foi uma coisa anormal. Aliás, enquanto os meus pais eram vivos, eles diziam sempre: “segue a tua vocação, porque nós não duramos sempre”. Era um bom conselho que me davam.
Chegou a Cabo Verde em 1954. Que imagem guarda da sua chegada ao país?
O meu primeiro dia foi na Praia. Cheguei ao meio-dia, do dia 4 de Outubro de 1954. Os barcos ficavam ao largo e depois havia umas lanchas que nos iam buscar. Lembro-me que só havia uma lancha a motor e o resto era tudo a remo.
Fomos almoçar à nossa casa e foi aí que o nosso superior nos disse que havia um carro da colónia penal que ia, no dia seguinte, para o Tarrafal. Foi um dia de viagem.
Quando cheguei disse para mim: eu venho para aqui e vou-me adaptar.
Sabe que para mudar assim de país e para nos adaptarmos é preciso ter uma vida de desapego e isso nós aprendemos na nossa vida de estudantes.
Como é que aprendeu a falar crioulo?
Quando cheguei ao Tarrafal, uma das primeiras coisas que o meu superior me disse foi: tu vais aprender o crioulo.
Bem, não havia um dicionário, não havia uma gramática e eu pedi-lhe para me deixar passar os fins-de-semana nas aldeias ali à volta, para me ir habituando à língua. Ele deixou e eu lá comecei a arranhar o crioulo. Claro que, de início, as pessoas riam-se de mim e eu sempre lhes dizia: podem rir, que eu quero é aprender. E olha, resultou.
Apaixonou-se por Cabo Verde assim que chegou?
Claro. Uma paixão diferente das habituais. Apaixonei-me por todos. Ainda hoje é assim.
Há quanto tempo não vai a Portugal?
Não vou a Portugal desde 1988. Fui nesse ano para fazer uma operação à próstata e depois disso nunca mais voltei.
Não tem saudades?
Sabe que as saudades são essencialmente dirigidas para os entes mais próximos, o pai e a mãe. Ora, eu perdi os meus há muito tempo. Hoje, ir a Portugal, já não me diz nada. A família já quase não existe, as pessoas que conhecia, já não conheço. Em missão, nós tomamos uma nova família.
A verdade é esta: na medida em que nos pomos na pele deste povo, ficamos a viver com eles, como eles. Tenho saudades sim, mas a saudade não mata ninguém.
O fundador da nossa ordem, um judeu convertido, dizia para nos esquecermos da nossa pátria e para nos fazermos africanos.
Fez-se africano?
Claro que sim. Cada pessoa que vem ter comigo é uma pessoa que precisa de mim e eu deixo tudo para a servir. Os grandes precisam de mim, os pequenos precisam de mim. Eu não olho se são grandes ou pequenos. Trato a todos com o mesmo respeito e digo-lhes, muitas vezes: eu dou-vos conselhos e vocês também mos dão a mim.
"Examino o meu percurso e digo que podia ter feito muito mais e não fiz."
Nunca sentiu solidão?
O meu próprio temperamento ajuda-me. Eu nunca fui muito sociável. Eu estou só, mas não estou triste por estar só. Estou com Deus.
Tenho também aqui em casa uma empregada que está comigo há mais de trinta anos. Casou-se, tem três filhos e moram comigo. Nós jantamos, conversamos e rezamos todos juntos.
De alguma forma, viver junto desta comunidade tem sido um desafio?
Podia ser um desafio para alguém que não tem nenhum treino. Mas eu fui treinado para isto. Fui treinado para viver em comunidade e para aceitar as pessoas como elas são e não como eu queria que elas fossem. Digo muitas vezes para mim: Aceita-o, ouve-o, ele tem os seus problemas.
O padre tem de ter tempo para ouvir as pessoas. Não imagina quantos dias eu passei na conservatória a tirar certidões para esta gente. Mas é assim. Eu tenho de ajudar estas pessoas, porque eles precisam de ajuda. Faço aquilo que sei.
Por exemplo, na catequese, costumo dizer: aquilo que não aprendi, não te obrigo a saber, mas aquilo que eu sei, que aprendi depois de velho, com tanto trabalho, tens obrigação de aprender também. É assim.
No fundo, temos de nos equiparar a eles. Viver com eles, conhecer os defeitos deles, porque nós também temos os nossos defeitos. Ouvi-los e julga-los só depois disso.
Estou contente, estou no meu lugar.
Sente que cumpriu a sua missão?
Não. Examino o meu percurso e digo que podia ter feito muito mais e não fiz. Quer dizer, eu faço o que posso. Não me sinto orgulhoso pelo que fiz. Peço sempre a Deus para me ajudar a continuar a fazer mais e mais.
A porta da sua casa está sempre aberta?
Bem, sempre aberta, é preciso entendermo-nos. Hoje há muito banditismo. Agora, está sempre aberta para receber as pessoas. Ainda hoje fui a Pedra Badejo, voltei, estou agora consigo e vou receber mais gente ainda antes do jantar.
Veja que, em Cabo Verde, devido a esta abertura que deram, criou-se uma sociedade que deixa muito a desejar. A criminalidade juvenil é novidade, não existia. Então é preciso termos prudência e acautelarmo-nos.
Acontece muitas vezes baterem à porta a pedir uma esmola, porque têm fome. E nós respondemos: queres um pão? “Ah, não, prefiro dinheiro”. Ora, para que é que aquela pessoa quer o dinheiro? Não é para comida. Há-de ser para a droga, para o álcool. Mas, ainda assim, é preciso ouvir essas pessoas e entende-las.
Emociona-se?
Nós temos de nos emocionar, mas temos também de disciplinar as nossas emoções.
Dou-lhe um exemplo. Eu gosto de ver futebol e estava a ver um jogo lá de Portugal. Houve uma confusão no campo e, no final do jogo, os jornalistas viraram-se para o árbitro e perguntaram-lhe o que é que se tinha passado. Ele respondeu-lhes: “um copo com água a ferver, não serve para beber. Deixem arrefecer a água. Hoje não falo, que estou emocionado. Vamos dormir, vamos descansar e amanhã logo falamos”.
Bem, nunca me esqueci desta história de um árbitro de futebol. Eu também procuro dominar as minhas emoções. Não quer dizer que não me emocione. Emociono-me muitas vezes, simplesmente, engulo em seco.
A questão das emoções depende, em primeiro lugar, do modo de ser do indivíduo, desde pequeno. Depois, depende também do ambiente em que ele vive. Estas emoções, por vezes, são compartilhadas com outros. Nós nunca somos juízes em causa própria.
Estes anos todos serviram-lhe para reconfirmar a sua vocação?
Com certeza. Sem dúvida nenhuma. Não quero brilhar. Faço um trabalho pela calada, procurando servir a todos, mesmo que às vezes não consiga. Deus é que sabe.
Se eu tivesse a começar, começaria aqui mesmo.
Se para o jantar lhe dessem a escolher entre cachupa ou cozido à portuguesa, qual seria a sua escolha?
Às vezes não escolhia nada. Muitas vezes há o desejo da cachupa, outras do cozido à portuguesa. Hoje a cachupa é um prato caro, mais caro do que um cozido.
O sacerdote tem de se alimentar bem, para poder trabalhar. Por outro lado, o padre não quer enriquecer. A vida é difícil, também para nós. A comida que vem à mesa é o que eu como. E às vezes não vem nada.
publicada no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 427, de 27 de Janeiro de 2009
fotografia de Quim Macedo
fotografia de Quim Macedo
2 comentários:
Olá Nuno!
Quero te agradecer por partilhares estes textos, ricos de sabedoria e de grandes lições de vida. São exemplos destes que me fazem sentir o quanto podemos ajudar as pessoas.. para eles muito e para nós é tão pouco.
Também estas de parabéns...pelo percurso de vida que estas a fazer.
Força!
Beijinho
Oh meu nuninho e então as tua divagações fabulásticas? Quando é que reaparecem neste teu sitio? Adorei o texto e a história de vida é brutal. Um homem com uma missão já são coisas de outras eras. Admiro a coragem e a vocação. Adorei p texto, como sempre!
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