30 de janeiro de 2012

Noites na cidade


À noite, na cidade, gosto de casas iluminadas e janelas abertas. De prédios com divisões iguais e decorações diferentes. 

Da parede pintada de azul na sala do primeiro andar, da estante de madeira trabalhada, e dos melhores copos arrumados atrás da porta de vidro. Do póster do Bob Marley no segundo frente, à luz de uma lâmpada económica que abana com o vento. Da cortina do lado de fora no terceiro esquerdo, da parede em branco já sujo, decorada com um quadro foleiro do chinês. E do homem à janela do rés-do-chão direito, vestindo uma camisola de trazer por casa, sem mangas, estampada e com pequenos buracos, distraído do que se passa, concentrado apenas nos seus pensamentos.

Na mão direita segura um cigarro, pelo cheiro percebe-se que não é tabaco. Fuma compassadamente. Está de olhos fechados e balança a cabeça ao som de uma música que não se ouve.

Na rua, debaixo de um candeeiro apagado, dois amantes traem as suas histórias. Perfis sem rosto, escondidos na sombra, de contornos indefinidos. Vira-se ela, abraça-a ele, mordisca-lhe o pescoço, a mão no ventre e o desejo que lhe dá volume aos jeans. "Podíamos...". 

Fecha a loja o merceeiro. Conta notas, moedas e encolhe os ombros, resignado. Cheira a grogue, vinho barato, pó e humidade. Os ratos esperam escondidos o bater da porta de ferro. Duas voltas na fechadura, um cadeado em cima, outro em baixo. "Super Bock Mini: refresca numa rapidinha".

Encostado a uma Hiace, usa o eufemismo e descansa a vista o segurança do banco. Passa um gato no passeio, um taxi na estrada, uma mulher velha e apressada do outro lado. "Irene, oh Irene". E vira-se a puta que ali se queria chamar Caty. "Mamo e à frente. Cu não".

À noite, na cidade, gosto de casas iluminadas e janelas abertas. Gosto das vidas que se escondem, das que tentam mas não conseguem, das que se mostram e das que fazem por aparecer. Do silêncio que deixa ouvir o medo. Das famílias que jantam, de quem janta sozinho e de quem não janta de todo.

27 de janeiro de 2012

Hora de fecho

Manifesto a favor do jornal espanhol Público que corre o risco de fechar

Primeiro serão os jornais, depois as revistas. No final, à imprensa 'impressa' (redundância, sei) restará um papel de objecto de culto, numa onda meio vintage, como acontece com o vinil.

O processo está em curso em todo o mundo e ninguém minimamente informado pode nega-lo. Ainda que a ritmos diferentes - consoante o nível de penetração das novas tecnologias de comunicação - no tempo máximo de uma geração ou duas gerações, o assunto estará definitivamente resolvido.

Os consumidores estão cada vez mais familiarizados com os suportes digitais. Uma fatia importante da população dispõe - ou irá dispor brevemente - de pelo menos um dispositivo com ligação à Internet. 

Se o digital é o caminho, a questão que permanece é de sustentabilidade. Os jornais dependem das receitas publicitárias e estas estão em queda acentuada. Por outro lado, o investimento que está a sair das edições impressas, não está a ser conquistado pelas versões on-line.

São raros os projectos editoriais só web que sobrevivem com um nível de qualidade aceitável, para lá dos primeiros meses de vida. Como são efémeras as experiências de limitar o acesso a determinados conteúdos, disponíveis apenas por subscrição paga.

O mercado dos media demorou demasiado tempo a acordar para o inevitável. Durante anos, acreditou-se na fidelidade dos leitores, na eternidade de um produto em decadência há duas décadas. 

Não tenho resposta para a pergunta que resulta de toda esta conversa: se os consumidores não querem pagar, se as marcas não anunciam, que futuro para o jornalismo escrito?

Apesar disso, acredito que no final sobrará uma imprensa reformulada, digital e intangível, num universo ao qual só chegarão os melhores projectos - apostados num jornalismo de qualidade e não descartável, como aquele que andamos a fazer. Uma imprensa segmentada, especializada em áreas de interesse, virada para nichos de mercado específicos - e não para um público generalista e abrangente - acompanhando assim a vontade crescente das marcas em dirigir as suas campanhas de marketing para uma audiência (a sua) definida e claramente identificada.

O caso do espanhol Público, a braços com um eminente fecho de portas, é mais um dos exemplos que se vão somando. E ainda que o efeito prático possa ser nulo - nunca o será, mesmo que residual - é incrível a forma como os leitores, cientes da importância que o diário tem na construção de uma opinião pública plural, lançaram mãos ao jornal e tentam agora resgata-lo.

24 de janeiro de 2012

O Cavaco que há em nós


Se querem saber, estou-me a borrifar para as pensões do Cavaco.

A questão é de moral, claro, mas é também de falta de oportunidade. A nossa própria falta de oportunidade para, feitas as contas, arrecadarmos tanto ou mais do que ele.

O principal problema de Portugal não está na classe politica que governa o país, antes numa inversão de valores e prioridades. Somos o povo do desenrasca e isso faz de nós pessoas capazes de superar situações difíceis com criatividade, mas também nos transforma em gente que prefere cortar caminho, abreviar processos e ignorar normas, mesmo que isso implique pisar o colega do lado.

Os políticos são portugueses na sua melhor expressão. Ministros, secretários de estado, deputados, presidentes de câmara e de junta ou até o Presidente da República somos nós, uns patamares acima.

O titular de um cargo público que acumula pensões é como o tipo que recebe o subsídio de desemprego e trabalha por fora ao mesmo tempo. O governante que gasta mais de ajudas de custo do que aquilo que recebe de salário é a versão melhorada do beneficiário do Rendimento Social de Inserção que se entretém a fazer filhos para aumentar o valor da subvenção. O autarca que substitui concursos públicos por ajustes directos é um modelo engravatado do empreiteiro que faz orçamentos “com ou sem facturinha”. 

Por isso, e voltando ao início, o que o inquilino de Belém faz é o que todos faríamos, assim tivéssemos como. A ética é volátil. O futuro interessa-nos apenas na medida em que o possamos manietar.

As palavras do Presidente – tão cheias de hipocrisia – só nos incomodaram tanto porque nelas ouvimos a nossa própria voz.

Vivemos uma ilusão. Convenceram-nos de que todos podíamos ter casa própria, carro novo de três em três anos, televisão por subscrição, um telemóvel de ecrã táctil e férias no estrangeiro. Venderam-nos uma mentira e nós, porque preferimos parecer a ser, comprámo-la.

Numa sociedade capitalista, fizemos do cartão de crédito e da Cofidis manuais práticos de socialismo, como se com eles não mais existissem classes. Alinhámos todos por cima e agora fomos revistos em baixa. 

Chegámos onde estamos porque somos mais espertos que inteligentes, não temos juízo auto-critico – embora estejamos sempre a criticar os outros – e passamos a vida à procura da melhor forma de enganar o vizinho o ou colega de trabalho. 

Precisamos de melhores políticos, claro que sim. Mas a nossa salvação não virá do topo. As revoluções – mesmo que de mentalidades – nunca nascem nas elites. E é disso que precisamos: de uma nova maneira de estar na polis. Uma forma participada e interessada com o colectivo, cientes de que o todo é mais do que a mera soma das partes. 


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12 de janeiro de 2012

Cabral ca morrê


O fotógrafo e meu amigo Diogo Bento inaugura segunda-feira, no Mindelo, uma exposição de fotografia sobre o legado de Amilcar Cabral no Cabo Verde dos nossos dias.

Os detalhes estão na imagem acima.

Homens de avental


Não sei se chego a perceber o porquê de tanto ruído em torno da maçonaria. Nós, os jornalistas, temos disto. De vez em quando, arranjamos um tema e durante semanas não conseguimos falar de outra coisa. O problema é que a partir do segundo dia já não acrescentamos nada de novo à discussão e o que se segue são matérias enfadonhas, com mais do mesmo.

A coisa resultou? O público mostrou-se interessado? Então vamos continuar, escarafunchar até não sobrar nada. Matar o assunto. Insistimos tanto, tão depressa e com tanta preguiça que o desfecho acaba por ser sempre igual: saturamos as pessoas e saturamo-nos a nós próprios.

Tendo em conta a histeria dos últimos dias, parece que descobrimos agora que a maçonaria existe. Pior. Como se até há duas semanas ninguém soubesse que o Parlamento, a vida política e pública em geral estão cheios de maçons.

A coisa é tão evidente que na Assembleia da República existe uma casa de banho - sim, sanitários - que assinala, desde há anos, a presença maçónica naquele órgão de soberania. Pois: lavabos com o tradicional preto e branco do movimento.

Perante a evidência - não deve haver organização secreta mais pública do que esta - mãos ao céu, vêm os iluminados do costume defender uma declaração de interesses, exigir que quem é - porra, são quase todos - seja obrigado a dize-lo.

Mesmo que o fizessem, o que é que aconteceria a seguir? A política em Portugal transformar-se-ia numa coisa primaveril? 

Grupos de pressão existirão sempre. Chamemos-lhes maçonaria, Sonae ou Isabel dos Santos, o resultado há-de ser idêntico.

Posto isto, recentremos a discussão no essencial: os tipos apertam o avental sozinhos ou pedem ajudam ao maçon do lado?



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11 de janeiro de 2012

Guantanamo

A pior face do homem. É isso que representa Guantanamo, prisão que hoje cumpre dez anos de funcionamento.
Homens privados de liberdade, tratados como gado, sem acusação formada, encarcerados pela força da vontade e não da lei. Guantanamo não é só um campo de concentração. É a prova de que o terrorismo também se faz sem bombas.

Begins this journey without reins,
Ends in capture without aims;
Now lying in the cell awake,
with merriment and smiles all fake:

Freedom is spent, time is up -
Tears have rent my sorrow's cup;
Home is a cage, and cage is steel,
Thus manifest realitys unreal.
Moazzam Begg
Preso em Guantanamo, Moazzam foi
libertado
ao fim de três anos sem acusação formada

10 de janeiro de 2012

Carneirada

Como que incapazes de pensar algo novo, levamo-nos por ideias que outros tiveram, repetidas até à exaustão. Somos seguidistas. Preferimos que outros façam por nós, para que nos baste copiar e colar.

O que realmente me chateia nas redes sociais não é a partilha, o querer saber da vida alheia - eu quero, quero muito, e assumo-o sem remorsos. A mim dão-me cabo da paciência os "passa a isto a dez amigos", as "semanas do autismo" (a propósito, não existe tal coisa e o dia internacional assinala-se em Abril, não em Janeiro).

E então, quando achamos que não pode piorar, percebemos que estávamos enganados. Porque agora são os signos, os carros de cada signo, os perfumes de cada signo, as casas de cada signo, os desodorizantes de cada signo, a água mineral de cada signo, os detergentes de cada signo, a puta que os pariu de cada signo.

E se não são os astros, sê-lo-ão os pensamentos, as citações, as reflexões profundas e as imagens com piadas sobre o governo, a crise e a maçonaria.

Temos 400 amigos no Facebook mas podíamos ter só um. Afinal, dizem todos o mesmo.

Vamos lá, um pouco de criatividade, por favor (isso e menos erros ortográficos... usem o Firefox ou o Chrome que têm corrector).


9 de janeiro de 2012

Temp d'Canequinha

O mal de encontrarmos perdida, no meio de uma pasta, uma foto de família com mais de dez anos é que, passando revista, começamos a contar quantos éramos e os que somos. Entre mais velhos que já se foram e mais novos que ainda não se multiplicaram, a conta é necessariamente de subtracção. 

As famílias são hoje mais pequenas. Os nossos pais tiveram poucos filhos e nós teremos ainda menos ou nenhuns.

Sequer a possibilidade de nos juntarmos em pose, como nesse retrato, expositor de loja vintage, parece viável, espalhados que estamos por tantos lugares.

Houve um tempo em que quase mensalmente nos reuníamos em irmãos, tios e primos. Uma vez por anos, fazíamo-lo em versão alargada, até ao terceiro grau.

A festa que era foi acabando e hoje é cada vez mais raro encher a mesa, pedir cadeiras ao vizinho (porque as que temos não chegam) ou acordar cedo para uma viagem ao Oeste. 

Unia-nos o sentido de Família dos nosso avós e parece que também esse se foi com eles.

7 de janeiro de 2012

Que se seguem

Meio inquieta, e a propósito do texto "Morrer Depois das 8:00", uma amiga de longa data perguntou-me há dias sobre o meu interesse pela morte.

Expliquei-lhe que o tema me suscita curiosidade, essencialmente de um ponto de vista literário.
Tenho sobre a morte, uma postura de não relevo. Relativizo o verdadeiro propósito da nossa existência, tanto quanto pragmatizo a inevitabilidade do seu fim - ou desvalorizo a eventualidade de um regresso após cumprida a matéria (embora não negue a possibilidade).

Depois do dia, os dias seguir-se-ão aos dias, tanto quanto as horas ter-se-ão sucedido em horas, os minutos em minutos, os segundos, os instantes.

No fundo, por mais importantes que nos tenhamos, o mundo não morrerá connosco. É sobre isso que fala este poema de Alberto Caeiro, também ele sugerido pela amiga da inquietação.

Bom fim-de-semana pa bzot tud.

6 de janeiro de 2012

Frio

E eu fecho as janelas. Eu, que quase sempre as mantenho abertas, a não ser que chova, porque nos dois dias do ano em que chove a casa ficaria toda molhada se não as fechasse, fecho as janelas. 

Não estou a perceber o tempo deste cacimbo. Arrefeceu e isso é bom - é bom depois do calor infernal do verão - mas este ano está um frio tal que um tipo tem de pôr um um cobertor na cama, vestir calças, até usar uma manga comprida, e rezar um terço completo antes de conseguir abrir a água gelada do banho.

Estou prestes a morrer congelado. Estão 21 graus no Mindelo.

Adenda das 11:48: Hoje de manhã vacilei. Um homem também tem direito a desistir. Aqueci água numa panela e temperei a que já estava no balde.


O primeiro do ano

Ser emigrante - e sê-lo sem família por perto - é também estar disposto a abdicar. Desde que saí de Portugal, apenas por uma vez consegui passar o Natal com a minha gente de sempre. No primeiro ano é estranho, mas depois habituamo-nos e já não fazemos caso.

Desta vez estive em Santo Antão, ilha vizinha de São Vicente, com uma família amiga - a quem a minha mãe envia um abraço de solidariedade pela paciência que tem para me aturar (não é fácil, acreditem).

Foram dias maravilhosos, repetidos no fim-de-semana seguinte, a tempo da passagem de ano.

Aproveitei para ler. O segundo convenceu-me mais do que o primeiro.