28 de outubro de 2011

A idade da solidão


 
A história de ‘Tanha’ Joaquina conta-se assim: nasceu em São Vicente, “lá na Ribeira Bote”, à memória foge-lhe o dia exacto, mas recorda que corria o ano de 1924. Terá por isso 87 anos, ou 86 por mais alguns dias.

O tempo foi passando, mas na sua vida pouco ou nada se alterou. Hoje, como antigamente, continua a precisar de trabalhar para garantir sustento. O seu e o dos dois filhos, um homem e uma mulher, que tem a seu cargo. Não sabe ao certo a idade deles. Contas rápidas e por estimativa chega a um número aproximado: “sessenta e tal”.

Permanecem em casa porque sozinhos não se bastam. As deficiências físicas e mentais de que são portadores tornam-nos dependentes de terceiros. Resta-lhes a coragem da mãe e a magra pensão que o Estado lhes paga, insuficiente para fazer face a todas as despesas que o dia-a-dia de três pessoas acarreta.

A dona ‘Tanha’ não resta outra alternativa: todos os dias, entre tachos e panelas, prepara os doces que vende a quem quiser comprar. O negócio não corre de feição, mas quando o orçamento é apertado, todos os escudos contam.

“Tenho de continuar a trabalhar, não tenho outro remédio. Faço bolos e rebuçados. Quando não consigo vender em casa, venho para a rua”, desabafa.

O passar do tempo trouxe-lhe as maleitas próprias de quem já anda por este mundo há muitos anos. Contudo, não há-de ser a tensão alta a faze-la baixar os braços.

“A minha vida tem sido sempre na luta, criando os meus filhos. Desde que tenho dezassete anos que estou a trabalhar”.

Ao todo deu à luz dez vezes e já chorou a morte de cinco descendentes. Os que resistem estão na sua própria contenda, “mas sempre que podem ajudam com qualquer coisa”.

“Passei muitos sacrifícios, mas tenho de lutar. Se Deus escreveu assim, é assim que vou viver. Tenho de continuar”, conforma-se.

A história de ‘Tanha’ Joaquina confunde-se com a de muitos outros idosos que, chegados ao ocaso da vida, não têm meios de subsistência que lhes garantam a tranquilidade que o cabelo grisalho justifica. Falta-lhes em dinheiro o que lhes sobra em solidão e desamparo. Trabalharam desde sempre, a família dispersou-se ou, estando por perto, não lhes presta a atenção necessária.

As ruas do Mindelo estão cheias de protagonistas de existências plenas de memórias e amarguras.

Pensão social

“Sou de São Vicente sim senhor”. A voz trémula e ligeiramente embargada não ofusca a convicção com que a frase é proferida.

O que leva Daniel Almeida à porta da igreja de Nossa Senhora da Luz, numa peregrinação diária, explica-se em poucas linhas e em discurso directo.

“A minha história é como a desta gente que está aqui sentada. Estamos a ver se catamos uns tostões para comer uma bolacha, porque já somos velhos e não conseguimos trabalhar”.

São setenta e sete anos, sabe-o bem. Em novo, trabalhou nas obras e como segurança. Não fora um problema na vista e continuaria a faze-lo. Nunca teve filhos. Todas as manhãs, sai de Espia, bairro periférico da cidade, com rumo certo.

Recebe uma magra reforma de seis mil escudos e não precisa de grande matemática para concluir que de pouco ela lhe serve. “Se não vier aqui pedir, com certeza que passo fome”.

A grande maioria dos idosos em situação limite teve uma vida de trabalho. Contudo, dedicados a negócios informais ou desenquadrados do sistema de protecção social, sem uma carreira contributiva, chegaram à velhice desamparados.

Nestes casos, o Estado garante o pagamento de uma pensão social, actualmente fixada nos cinco mil escudos. Muito pouco para quem esse valor é tudo.

Têm direito à pensão básica os cidadãos com idade igual ou superior a 60 anos e com um rendimento anual inferior ao limiar da pobreza estabelecido pelo Instituto Nacional de Estatística.

Em 2010, saíram dos cofres públicos 1,3 milhões de contos para concretizar esta medida, que beneficia mais de vinte mil cabo-verdianos.

Institucionalização

O país não tem uma rede pública de lares da terceira idade. A Promoção Social mantém abertos alguns centros de dia, espalhados pelas ilhas, que garantem a alimentação dos idosos e a ocupação dos tempos livres no período diurno. À noite, estes regressam às suas casas, muitas das quais desprovidas das condições mínimas de habitabilidade.

No Mindelo, o segundo maior centro urbano das ilhas, existe um único lar a funcionar 24 horas por dia, em regime de internamento. Parte integrante do projecto social da Cruz Vermelha, a casa está de portas abertas na Ribeirinha, junto à Cadeia Central.


“Infelizmente, não conseguimos dar resposta a toda a procura”, assume, para início de conversa, a responsável técnica do espaço.

“Em Cabo verde, em geral, e em São Vicente, em particular, os familiares costumam dar pouca atenção aos idosos”, defende Kátia Cruz.

Com capacidade para 21 utentes, o lar tem lotação esgotada. Nem todos são idosos. Duas senhoras de quarenta anos residem no local. Estão sozinhas, distantes da família. Uma, com Sindrome de Down, a outra sofreu um acidente em Santo Antão e viu a sua mobilidade ser fortemente condicionada. Ambas, na casa dos quarenta e em situação limite.

A solidão com que muitos estavam confrontados antes da institucionalização perpetua-se dentro dos portões da residência. Recebem todos os cuidados básicos e combatem a ociosidade, mas nada substitui a desejada presença dos filhos e netos. Para a maioria, a espera por uma visita daqueles que ajudaram a crescer é um exercício que não tem fim.

Kátia Cruz acredita que a sociedade cabo-verdiana não está preparada para lidar com a terceira idade. Para contrariar essa tendência, sugere a realização de palestras e actividades comunitárias que envolvam gente de diferentes origens.

No entender da responsável pelo lar da Cruz Vermelha, a mobilização da sociedade passa também pela maior disponibilização de recursos. O apoio às causas sociais deve ser encarado como uma necessidade.

“As instituições, as empresas, todas têm de ajudar e dar o seu contributo”, apela.

Dia internacional

No dia dezanove de Novembro Maria Medina completará 87 anos. Nasceu em São Nicolau, mas cedo se mudou para São Vicente. São vagas as recordações que guarda da sua terra natal.

Nunca teve filhos. Trabalhou como doméstica. Agora, passa os dias de forma serena, entre conversas que a levam, muitas vezes, a anos passados.

Gosta de cozinhar, especialmente de fazer bolos. “Disso é que eu percebo”, confessa.

A sua história cruza-se com a de Edite. São agora companheiras. Edite também gosta da vida tranquila que conquistou.

“Gosto de estar aqui”, revela, assumindo que às vezes lhe falta a paciência para aturar os colegas de casa. “Você sabe, isto há aqui gente mais idosa do que eu, e, como é normal, têm sempre as suas fadigas. Uns viram levianos, outros doidos, outros malucos, mas vai-se aguentando”, sorri.

No último ano, por três vezes, recebeu a visita dos filhos. O mais novo, que vive na Praia, prometeu vir busca-la, assim que reúna condições para a receber. Edite aguarda por esse dia.

A 14 de Dezembro de 1990, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou 1 de Outubro como o Dia Internacional das Pessoas Idosas.

Um ano mais tarde, o mesmo órgão plenário aprovou uma resolução onde adopta um conjunto de princípios que devem nortear a acção dos estados no que toca à terceira idade.

No início deste mês, na sua mensagem alusiva à efeméride, o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, apelou a que os países, parte de um mundo em crise, sejam capazes de assegurar aos mais velhos o acesso à protecção social e a cuidados de saúde gratuitos.

Excerto revisto de uma reportagem publicada no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) 516

26 de outubro de 2011

A estrada



O local está referenciado nos guias turísticos da ilha. Em Santo Antão, a alguns quilómetros da Ribeira Grande, o Vale da Garça estende-se por entre as montanhas, até ao mar. 

Da Manta Velha até à Cruzinha, o caminho é feito pela ribeira, local que, durante a época das chuvas, fica cheio de água e, naturalmente, intransitável. Para a população local, são períodos de um isolamento profundo. Perdido o contacto terrestre,  a ligação com o resto do mundo é feita apenas por via marítima. Se a ondulação o permitir, um bote viaja desde Ponta do Sol, transportando os mantimentos necessários para a subsistência de quem vive numa clausura temporária.

No sentido contrário, a embarcação leva consigo aqueles que precisam de se deslocar à povoação para, por exemplo, receber cuidados médicos. 

Nem sempre o socorro é possível e as gentes daquele lugar, por vezes tão distante, contam que não são raros os episódios de mortes provocadas pela demora na resposta aos pedidos de ajuda.

Se os prazos forem cumpridos, dentro de aproximadamente um ano o cenário poderá ser diferente. Está em curso a empreitada de construção da estrada que ligará Cruzinha, Chã de Igreja e outros pequenos povoados ao resto da rede viária da ilha. 

As expectativas são elevadas. Fala-se de concretização de um sonho e em desenvolvimento. Imagina-se o número de turistas a aumentar e deseja-se a melhoria das actuais condições de vida.

Uma promessa

A ideia de construir uma estrada de desencravamento dos povoados do Vale da Garça tem quase tantos anos como o país de independência. Em visitas ao local, os sucessivos governos prometeram resolver o problema, mas só recentemente é que o projecto começou a ganhar forma.

A obra foi adjudicada a um consórcio de empresas, liderado pela portuguesa Somague. A primeira pedra foi lançada em 2009 e os trabalhos arrancaram em 2010. Com um prazo de execução de 24 meses, a empreitada está mais ou menos a meio.

A 8 de Setembro do ano passado, Celso Pires, expressava no seu blogue - chadigreja.webnode.com - a satisfação pela chegada das máquinas. "Finalmente começamos a ver uma luz no fundo do túnel", escrevia.

Celso não está sozinho na alegria. Em Chã de Igreja, José Nascimento junta-se ao entusiasmo. 

"As pessoas estão satisfeitas. Vai mudar muita coisa. Em termos de agricultura e de turismo, isto vai avançar de grande maneira. Vai haver um salto qualitativo. Acreditamos que vai trazer um impacto extraordinário para esta freguesia", assegura.

"É um sentimento de esperança, de grande alegria", resume.

À localidade, o sinal da televisão pública não chega. O contacto com o exterior é feito essencialmente pela rádio. 

O período das cheias torna a vida árdua, recorda José. "A comida chega com muita dificuldade. Os comerciantes trazem-na por via marítima, mas todo esse trabalho faz com que, depois, precisem de subir os preços". 

"A chuva é sempre bem-vinda", esclarece, "mas é um mês muito difícil. Esperamos que no ano que vem isso possa estar normalizado". 

A sua expectativa é grande, "muito grande", reforça. "Temos emigrantes em Portugal, em França e na Holanda que querem investir cá".

A esses projectos refere-se também Benvindo Santos. Saindo de Chã de Igreja, a viagem de carro até à Cruzinha dura pouco mais de dez minutos.

Lá, onde não chegam notícias - há três anos o mau tempo destruiu o emissor da RTC - o presidente da associação comunitária aguarda por dias melhores.

"Com a estrada pode ser que as pessoas cheguem cá mais depressa", espera. "Esta é uma zona preferida pelos turistas".

Com uma vista singular para o mar, Cruzinha tem uma economia centrada no turismo da natureza - há quem se dedique ao artesanato, fabricando colares de missangas e esculpindo pequenas peças em casca de coco - e na pesca.

"As pessoas estão com esperança", assume Benvindo, alertando que a estrada, por si, não resolverá todos os problemas.

"Somos uma comunidade piscatória. Esperamos que a entrada dessa estrada torne possíveis alguns investimentos no sector, como por exemplo, melhorar a condição do arrastadouro, ou melhorar a energia". 

No topo das prioridades está também o acesso a uma máquina de gelo que possa substituir a existente, de pequena capacidade.

Preocupações

Antigo deputado nacional pelo Movimento para a Democracia e ex-secretário da Assembleia Municipal da Ribeira Grande, eleito pelo mesmo partido, Adriano Duarte afastou-se da vida partidária. 

Mora em Manta Velha, onde começará o asfalto, e reconhece que o projecto é "muito bem-vindo".

"É uma reivindicação de há muito tempo. Vai ser uma mudança radical, porque é uma zona que sempre esteve encravada", antevê.

Apesar de considerar que "a construção da barragem suplanta tudo o resto", não deixa de observar que as obras estão a provocar um problema ambiental com consequências imprevisíveis. 

"Os trabalhos estão a dar origem à queda de pedras para o leito da ribeira. Há zonas com casas e zonas agrícolas em que, se vier uma chuva como aquelas que têm aparecido nos outros anos, essas pedras poderão constituir um grande problema", teme.

A quantidade de detritos é tão grande que, em alguns pontos, a paisagem está totalmente alterada.

Preocupados, os habitantes do vale promoveram um abaixo-assinado, apelando à intervenção das autoridades. 

"Estamos à espera de uma solução. As máquinas vão retirando alguma coisa, mas a maioria vai ficando", explica Adriano Santos.

A preocupação do antigo parlamentar é partilhada por José Nascimento. "As pessoas estão inquietas com as consequências da construção".

"É importante que limpem a ribeira, porque se vier chuva a situação pode ser muito complicada".

"Esta ribeira sobe muito alto, com muita força. Espero que o governo tome medidas para resolver este problema", alerta.

As preocupações da população convergem com as da câmara municipal. O executivo autárquico tem acompanhado os trabalhos e, apesar de satisfeito com o investimento feito pelo Ministério das Infra-estruturas, esperava outra atitude por parte do consórcio responsável.

O Vale da Garça deve receber uma barragem, já adjudicada. O vereador Arlindo Fortes teme que, "se não forem tomadas medidas, em vez reter água, a barragem sirva para a retenção de inertes".

"É preciso diligenciar, logo com a conclusão da obra, para que seja realmente retirada toda aquela enxurrada que vem de cima", avança o autarca.

A Câmara da Ribeira Grande está convencida de que a estrada vai desencravar os povoados isolados, mas apela ao governo e ao consórcio para que, durante os trabalhos, mantenham um diálogo mais permanente com as autoridades locais. 

"Até termos o produto final, temos de garantir a satisfação das necessidades das pessoas", justifica Arlindo Fortes.

A estrada Manta Velha - Cruzinha faz parte de uma pacote de infra-estruturas rodoviárias que estão a ser executadas em Santo Antão com financiamento através de uma linha de crédito concessional atribuída a Cabo Verde por Portugal, no valor de 2,5 milhões de contos.

Excerto revisto de uma reportagem publicada no 
Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 515 

12 de outubro de 2011

A casa

Calculo que tenham sobrado da obra os mosaicos partidos que cobrem o passeio na entrada do prédio. A porta de ferro parece um improviso. É que, transpondo-a, existem dois canteiros daqueles que costumam ficar do lado de fora e não de dentro. Dois canteiros e outra porta. São duas, então.

A parede das escadas, pintada de amarelo, precisa de tinta. Aliás, não sou engenheiro mas acho que precisa de mais do que isso. Deve haver algum cano roto.

São três andares até lá e lá é onde eu moro, mesmo antes do terraço. Primeiro: duas portas, uma ao lado da outra; direito, esquerdo; um par de apartamentos, ambos vazios, alugados ocasionalmente e ao dia a emigrantes ou turistas barulhentos. Segundo (estou a contar os andares): senhorio; Eugénio, viúvo, dois filhos que se saiba; no patamar, um arranjo floral de plástico, um leque gigante e um vaso que me faz tropeçar diariamente.

Terceiro e é aqui. Chegando, a porta está logo em frente. Tem ela um postigo que costumo deixar aberto.

Não, não é só pequena a minha casa. É esquisita. Parece o pedaço de uma coisa maior, porque, de facto, é disso que se trata: de um retalho arrancado ao T4 que antes existia. 

As janelas são altas e o o tecto baixo (não tão altas, nem tão baixo, porém). Nunca está quente. Enquanto todos se queixam de calor, à noite tenho de me cobrir melhor para não ter frio. 

Tem móveis baratos, móveis que mandei fazer, móveis que outros começaram e eu acabei, moveis que eu próprio fiz do princípio ao fim. Tem também um gato. Tinha outro, mas fugiu. Pela janela. Calculo que tenha morrido e só espero que não tenha sido suicídio. Detesto depressivos.

A minha casa, que é a mais pequena e estranha onde já morei (a segunda mais estranha, agora que penso nisso), é de todas a melhor. Morar num sítio assim... é como morar num sítio assim. É bom. 

6 de outubro de 2011

Fantasia



Aqui me confesso: falo com gente que não existe. Todos os dias mantenho diálogos improváveis.

Não sou esquisito: faço-o tanto em casa como na rua. Sem grande pudor, evito apenas gestos largos e um tom demasiado elevado. Fujo aos embaraços, mas às vezes não tenho como evita-los. Ocasionalmente, um transeunte indignado-me mira-me de soslaio tentando perceber se estou em mim ou noutro alguém. 

Tenho-me, então, noutros que não apenas eu. E, tendo-me fora, posso estar em qualquer lugar, na melhor ou pior companhia. Discuto o mundo e a existência. Raramente chego a conclusões.

Se me olho ao espelho e vejo-o tão igual, estudo as expressões, a gravidade do olhar, o balancear da cabeça que diz e que ouve ao mesmo tempo, sem saber quem faz o quê, se eu ou ele.

Num passeio, faço pausas e atento nas perguntas. Respondo sempre. Quem diz que não me entende, que não percebe o meu lado de lá, talvez deva procurar o velho com cabelo grisalho, andar cambaleante, olhos papudos e óculos redondos, sempre descaídos na ponta do nariz.

As personagens que crio, são parte do meu real imaginário, daquele fragmento que só a mim diz respeito. Projectam a meu respeito uma imagem insana, mas se é esse o preço a pagar para manter a fantasia, podem trazer a factura. 


5 de outubro de 2011

Barba (e cabelo)


Tenho uma relação difícil com a barba. Falta-lhe a consistência e a regularidade necessárias.

Experimentei máquinas descartáveis, lâminas e máquina eléctrica. O resultado foi sempre desastroso.

Desde que estou no Mindelo, e salvo raras excepções, todas as semanas vou ao barbeiro. Na barbearia da esquina, sento-me na cadeira - uma clássica, com mais de 50 anos - que o senhor Chico recosta para trás.

Bata vestida, navalha na mão, borrifa-me a cara, antes de perguntar: "O de sempre?". 

Nhô Chico gosta de um trabalho bem feito e não se inibe de criticar quando vê um cabelo mal cortado ou uma barba mal aparada.

Sem cuidar de saber se os clientes têm pressa, com a legitimidade própria de quem, aos setenta, ainda se levanta todos os dias antes do sol para uma caminhada na cidade e umas braçadas na Laginha, o artista demora o seu tempo: ele demora, eu espero sem refilar e assim nos entendemos. 

Certo dia, depois de uma ausência de algumas semanas (nas quais recorri aos serviços da concorrência), vendo-me passar, inspecciona-me e lança: "Quem é que lhe fez isso?"; "Isso?"; "Esse serviço aí em cima?". Fez-me entrar para "resolver o problema", porque "um homem com mau corte não tem como andar na rua de cabeça levantada". 

Dez minutos depois, sem querer saber de pagamento, mandou-me à minha vida, não sem antes deixar um aviso: "eu que o apanhe mais uma vez nesses preparos e fica sem um cabelo que seja para contar a história".

Desta quase rotina, gosto do regresso aos clássicos e gosto, acima de tudo, de me olhar ao espelho e conseguir ver no reflexo um gajo que até parece já ter barba de gente grande.

3 de outubro de 2011

Teia


Há por aí muita parvoíce. Nos blogues, mostram-se as roupas que se vestem, aquelas que já se vestiram, combinações de saias, tops, blusas, sapatos, malas e demais acessórios. Nas redes sociais, copiam-se  e colam-se estados, como antigamente se reencaminhavam e-mails. 

Anda toda a gente preocupada com a privacidade que tem, que não tem, que perdeu, que vai perder, e decidem discutir o assunto num sítio que tem tudo a ver com partilha e ao qual todos chegámos por vontade própria.

Desocupados, ocupados, desocupados de quem se esperava ocupação, entopem as caixas de comentários dos sites de notícias com ódio destilado.

A Internet dá-nos liberdades. A de expressão e a outra, a de dever estar calado e escolher não o fazer. Espera-se de nós que tenhamos sempre uma opinião e nós temo-la, mesmo que só por ter.

Ligámo-nos uns aos outros, deixámos um rasto que nos persegue, criámos uma vida paralela e, às tantas, deixámos de saber onde começa o virtual e acaba o real.

Sou daqueles que está, um dos que se ligou. Não estou mais do que quero estar, porque, simplesmente, aquilo de meu que cá está não sou eu, apenas parte de mim.


2 de outubro de 2011

Chá


Não sei quando é que me tornei uma pessoa de chá, mas hoje bebo-o várias vezes ao dia. 

Prefiro-o preto e sempre que com um pouco de leite, sem açúcar . De manhã e à noite, com toda a certeza. Depois do almoço, se ao fim-de-semana.

Não sou grande fã de rotinas, mas gosto de rituais. A chávena que comprei propositadamente, a água a ferver, os minutos de espera.