Quem segue na estrada do Golfe II, ao virar à direita depois do que há-de ser um hipermercado, entra no Nova Vida. É aqui que eu moro. Bem, não é exactamente aqui, onde estão depois das indicações, mas não estou longe, descansem.
O bairro começa com uma mercearia. À porta, sem excepção de dia algum, estão uns meninos de pele escura, cabelo crespo e pés - em chinelos de 100 kwanzas - gretados. Invariavelmente, tão certo como a sua presença, é o pedido por "pão". O "pão" não tem de o ser, realmente. Podem ser "50 pa mim comprar gasosa" ou "dá só" qualquer coisa. Geralmente dou. Divido-me em pedagogia e tento ensinar como partilhar, com alguma justiça, um pacote de bolachas. É uma merda ensinares alguém a partilhar, se esse alguém não tem nada, sequer, para si.
De início achei que havia qualquer coisa de diferente neles. Agora não. São iguais, afinal, aos meninos da minha outra rua, em Portugal. Têm a t-shirt mais velha e mais suja, estômago mais vazio e as pernas mais cansadas. A vida custa-lhes muito mais, mas está lá o brilho. O brilho de quem, no fundo, tendo crescido demasiado depressa, como só cresce quem é obrigado a ser gente grande, na corrida pela sobrevivência, continua a ser criança. Elas estão lá: a pureza, a verdade e a ingenuidade, até a ingenuidade.
Eles, a quem dou bolachas com recheio de baunilha - e a quem podia dar muito mais - não são o rosto de um país pobre e de contrastes, onde os ricos são milionários e os miseráveis, a triste maioria, condenados à frustração. Eles são a razão de ser das terças depois das segundas, das quintas a seguir às quartas e antes das sextas. Não lhes conheço o nome - e já o devia ter perguntado - mas gostava de lhes contar que, não estando só nas suas mãos, era bom que não deixassem de sonhar. Enquanto sonharem vão manter a ignorância original. Depois de crescerem - se não podes mudar o mundo, não tentes percebe-lo - vai custar muito mais.
Em Angola, como em todo o lado, comemorou-se ontem o Dia Internacional da Criança. Aqui, a efeméride é motivo para feriado. Pensei tratar-se de mais um devaneio cultural, de quem não gosta de trabalhar. Mentira. Parar um dia pelos maiores inocentes da cobiça dos homens é como pedir-lhes "desculpa ya?" por tanta falta de vergonha na cara. Comecemos por aí, então.
*Para a Dulce, para o Tiago, para a Bia, para aqueles meninos da turma das 9:30, para os da mercearia e para mim, também.
3 comentários:
Não nos devemos esquecer de sonhar, nunca, mesmo quando já trazemos a criança dentro de nós.
Quem me dera ser criança para sempre e ter um texto destes só para mim! Adorei, como sempre :)
Muitoo bom!
Excelente blog! Tb gostei do assalto... (salvo seja q nao desejo mal a ninguem)... e gostei da variedade...
Viva a partilha... a construtiva.. e a que faz rir.
Bom trabalho,
AC
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