31 de outubro de 2009

Dos pés à cabeça

Creio que, com o avançar da idade, estou a ganhar uma peculiar excentricidade no que ponho nos pés. Durante anos, muitos anos, o tipo de sapatos ou ténis que comprava estavam absolutamente formatados. Agora, a caminho dos 30 - longe, ainda, claro - descobri que gosto mesmo é de ofuscar de baixo para cima. Ontem, numa única tarde, duas extraordinárias aquisições, com as quais conto impressionar cabo-verdianos (cabo-verdianas, de facto, mas uso o masculino para não causar celeumas familiares).

Na loja da All-Star, umas discretas botas verdes. Na loja da Adidas, uns singulares ténis azul-bebé e cor-de-laranja.

Concluo: sou um rapaz muito equilibrado e discreto, menos nos pés.

30 de outubro de 2009

Em carta fechada (updated)*

São 8:22. Precisamente, oito-e-vinte-e-dois. O relógio digital não deixa margem para dúvidas. Comprou-o há precisamente 7 meses e treze dias. Escreve treze, mas diz ‘treuze’. É como muito e ‘muinto’.

São 8:22. Aliás, com isto tudo já são oito-e-vinte-e-três. Se carregar no segundo botão do lado direito consegue até saber o segundo preciso. Não carrega. Ou carrega? Vai lá com o dedo. Não, não carrega.

Está à espera do autocarro, como faz todas as manhãs de segunda a sexta-feira e, a cada três semanas, igualmente aos sábados. Gosta desses sábados. Gosta de sábados e prefere não trabalhar, mas como trabalha – a cada três semanas – então gosta desses sábados também.

Anda de autocarro, no autocarro que vai chegar dentro de 4 minutos, quando forem oito-e-vinte-e-sete, há 745 dias. Sempre, menos aos fins-de-semana, excepto os sábados a cada três semanas. Também não anda nos feriados e não andou nos 34 dias úteis de férias que já gozou desde que há 745 dias começou a andar no autocarro que vai chegar dentro de 3 minutos. Agora são três.

Mora a 5 quilómetros e 432 metros do sítio onde trabalha. Viu no Google. Vê tudo no Google e sabes imensa coisas sobre coisas que, geralmente, não interessam a ninguém e, aqui para nós, não lhe interessam particularmente. Ou melhor, interessam, mas não interessariam se ele tivesse outras coisas que lhe interessassem mais.

Tem uma vida uma bocado aborrecida, portanto. Felizmente, não se aborrece com isso.
Podemos dizer, acho que podemos, que é um aparente – fixem-se no “aparente” – conformado. Bem, só um conformado seria capaz de há 745 dias, descontando fins-de-semana, excepto os sábados a cada três semanas e os 34 dias úteis de férias que já gozou, almoçar uma posta de peixe-espada preto, acompanhada de três batatas cozidas e feijão verde. Tudo coisas sem grande sabor, portanto. “As coisas que não sabem a nada não chegam a enjoar, porque não sabem a nada”, respondeu certa vez à indignada empregada brasileira do restaurante onde o tratam pelo nome próprio nome.

Falta um minuto. Chegou o autocarro. Um minuto antes, nota-se. Faz uma cara de desagrado. Chegar antes não é bom. Aliás, é tão mau como chegar um minuto depois. Se faltava um minuto, faltava um minuto para o autocarro chegar. Um m-i-n-u-t-o.

35 depois – que trânsito! – completa a distância até à paragem que o deixa a 57 passos do edifício do escritório. Podia subir de elevador até ao décimo quarto de 18 andares. Sobe de escada. São 255 degraus, 3 na entrada, mais 6 por patamar, três patamares em cada andar. Chega relativamente casando e relativamente com sede. Entra e vai à copa. Bebe um copo de água em quatro goles. Limpa a boca a um guardanapo de papel, nunca ao rolo de cozinha.

Trabalha quatro horas de manhã, pára uma hora para almoçar e trabalha quatro horas à tarde. Desce os 255 degraus. Apanha o autocarro que percorre 5 quilómetros e 494 metros (faz uma rua a mais) até à paragem perto de casa.

É assim todos os dias.

Agora, está à porta do prédio. Pega no porta-chaves, com quatro chaves. Prédio, correio, casa e cofre – está no armário da casa de banho, debaixo do lavatório, atrás da toalha azul escura, demasiado áspera para ser usada. Já abriu a porta. Dois passos até à caixa do correio. Chave mais pequena – ainda mais pequena que a chave do cofre. Roda, abre e dois envelopes. Primeiro, conta. Segundo, respiração suspensa. Ainda só viu o verso, mas tem uma suspeita. O envelope fechado, que segura ao contrário, é – já o sabe – o “yes, man” que tanto esperava. Vira-o. A sua vida vai mudar. Com esta é que o foderam.



* No mote anterior, além de me atrasar, escrevi uma porcaria tão valente que me causou algum embaraço. Aqui está uma versão mais pensada. Se melhor, vocês o dirão.

A alegoria não passou de moda*

As paredes, de um verde não muito escuro, aqui e ali marcado pela humidade de uma construção não muito nova. A mesma humidade que contorna a janela que dá para o pátio, que dá para o prédio em frente, que dará para a rua. Lá dentro, novamente no quarto, uma cómoda antiga, com puxadores em pau santo. Em cima, um oratório fechado e sem santo; já não se reza aqui. Ao lado, por esta ordem, uma cadeira mogno com palhinha, um vazio e outra cadeira. Dando a volta, um roupeiro, uma cadeira - tantas cadeiras - e a cama. Cabeceira estilo D. José, por ventura a precisar de restauro. Colcha a despropósito e um corpo inerte, o meu.

Estou deitado há várias horas, tantas que já perdi a conta, num quarto que não sei se será meu, não sendo o meu. Comecei por tentar adivinhar o que será feito da papeleira que ocupava o vazio entre as duas cadeiras. O quarto não é meu, mas estive aqui muitas vezes, não fisicamente, acho, mas talvez em retórica. Provavelmente, tenho quase a certeza disto, também não estou aqui agora. Contudo, sei exactamente, disse-o há pouco, o que está para lá da janela que ilumina o cheiro a mofo. Sei e acreditem que nunca me abeirei dela. Sempre que venho a este quarto fico aqui onde estou, na cama. Foi daqui que te vi - ou julguei ver - a escrever na papeleira que deves ter - deves, porque não tenho a certeza que o tenhas feito, ou se sequer existes - levado contigo quando partiste, se é que partiste, porque talvez não tenhas chegado a existir.

Sempre gostaste muito de cadeiras. Ou talvez seja eu a gostar delas e por isso as tenha posto aqui. Afinal, isto é tudo fruto da minha liberdade criativa. Quando, deitado na colcha sem sentido, olho em redor, parece-me tudo tão tangível. Quase que acredito. Mas isso é só até levantar a cabeça e olhar para o céu. Desculpem, para o tecto. Que quarto bafiento teria uma representação da alegoria da Guerra e Paz. Isto não é Viena de Áustria. É só o teu quarto, ou o meu, ou o nosso, que eu, pelos vistos, só sonhei ter, mas onde vinha sempre que queria estar contigo.



* O mote desta semana. Para ler igualmente aqui e aqui.

29 de outubro de 2009

Bom ano novo

Tive ontem o melhor jantar desde há muito tempo. Numa noite, celebrámos o Natal e a passagem de ano, em pleno mês de Outubro. Decoração apropriada, passas e espumante. Fiquei com a impressão de que foi tudo maravilhoso, mas isto também pode ter sido das minis. Foram 34, afinal.

26 de outubro de 2009

A piadinha fácil e o desabafo depois dela

Agora que Isabel Alçada é a nova Ministra da Educação é fácil perceber que livros vão ser de leitura obrigatória.

Gosto de ver os professores - para quem, em 30 anos de democracia, nunca houve um único bom ministro da tutela - a preparar as armas para começar a disparar em todas as direcções. Sinceramente, que tal dar uma oportunidade à mulher?

Em carta fechada*

Em carta fechada ele disse tudo o que não conseguira dizer em carta aberta. Os envelopes selados, lacrados, fechados, enfim, têm a grande vantagem de transportar segredos capazes de se perpetuar até que alguém, se, um dia os abra.

Na carta, por ele fechada, está o mais profundo e sincero desabafo já feito no tempo dos tempos e por lá ficará, até.



*Este é o texto (escrito a despachar) para o mote desta semana. Para ler mais aqui e aqui.

Experimenta lá isto

Eu não estava a pensar escrever por aqui nos próximos dias. Férias são férias e a ideia era estar uns dias calado. Aliás, tenho um mote em atraso e um relato sobre o Lubango para meter na ordem. Acontece que hoje fui ver uma exposição da ExperimentaDesign.

Cá um abraço a todos quantos acham aquilo fabuloso, mas se é tudo tão giro como o que está exposto no Museu do Oriente (outro espaço sobre o qual poderia falar longamente), valha-me Deus do céu, o que é que se passa com os criativos deste mundo?

E pronto, é isto.

21 de outubro de 2009

Em Portugal

Por agora as férias, dia 10, Cabo Verde. Entretanto, tenho um fim-de-semana no Lubango para resumir. Fica para depois.

20 de outubro de 2009


E é como se a vela acabasse e a ténue luz se esvaísse em escuridão, transformando em negro todo o seu redor, mesmo com os primeiros raios de sol da manhã que nasce sem nunca ser casta.

São as primeiras horas do dia. Terça-feira, 20 de Outubro. A cidade, desperta de um sono nunca demasiado profundo, regressa ao rebuliço de sempre. As filas, os ruídos, as pessoas, esses protagonistas sem rosto de um filme onde os papeis são todos feitos e só feitos de improviso e sobrevivência

Nada de novo. A cidade. As constantes. Eu e tu, na cidade das filas, dos ruídos e das pessoas. Eu e tu, hoje, nas primeiras horas do dia.

Luanda sem compasso. Água turva. Até já cidade, até já.

15 de outubro de 2009

A cidade acordou com um cheiro pérfido no ar...*

Depois do crime da noite anterior, a cidade acordou com um cheiro pérfido no ar. Um cheiro a morte, a sangue e a terror. As manchetes dos jornais narram, nesta manhã fria de Dezembro, o horror vivido na rua 23 daquele bairro escondido para lá da grande colina. Da origem do corpo pouco se especula. O sumo da história parece estar e importar, por enquanto, nos detalhes sórdidos do estado de putrefacção em que o cadáver foi encontrado ao lado de um Citroen AX.

Ao ver a fotografia escarrapachada na primeira página do tabloide, a primeira pergunta que me surge é "mas quem é que ainda tem um AX?". E demoro algum tempo a perceber o disparate para onde a minha cabeça me levou. Mas quem é que, no seu perfeito juízo, tem uma foto com um corpo desfeito, rodeado de uma gigantesca poça de sangue, entranhas e larvas, e está interessado na antiguidade da viatura que o levou até lá?

O cenário é impressionante. As televisões demoraram demasiado tempo a chegar e o melhor registo perpétuo foi feito por um telemóvel de última geração, desses que se fazem agora, cheios de megapixels. O que choca são os detalhes.

Uma mala caída, manchada de sangue. Um sapato, meio salto, ganga escura, e um pé descalço. Alguns papeis espalhados pelo chão. A cara tapada - as formas que se notam - por um pano empapado e cabelos castanhos ligeiramente desvendados. O tronco esburacado pela força dos disparos. Estou prestes a vomitar.

Pego no telefone e preparo-me para te ligar. Será que já viste a imagem de que toda a gente fala? Será tens uma teoria? Tens sempre uma teoria. Telemóvel, lista telefónica. A minha péssima memória fez com que memorizasse quase todos os números com associações parvas. Raquel Piscinas, António Bar Azul, Luís 3 direito, Ana AX.


*Pela terceira semana, eu, ela e ele participámos neste desafio e escrevemos um texto sob o mesmo mote. Todas as quintas-feiras é assim: Um mote, três textos.

13 de outubro de 2009

Porque é que a televisão vai dar cabo de mim


Nas últimas semanas, as minhas noites têm sido, irrepreensivelmente, assim: 20h00, Telejornal; 21h00, fim do Jornal da Noite; 21h25, Jornal das Nove; 21h40, Gato Fedorento; 23h05, House. Acontece que, e isto é um problema, não o minimizem, que no intervalo entre o fim do Gato Fedorento e o começo do House, naqueles 55 minutos, fico sem saber o que fazer da minha vida.

A Ana Lourenço não faz o meu género, o Eli Stone é uma parvoíce pegada, a série espanhola do Fox Crime é um disparate sem sentido, o Alô Portugal do José Figueiras (Sic Internacional, seus incultos) está fora de questão e o À Noite as Notícias é mais do mesmo todos os dias. Merda.

O que é que faço neste intervalo? Como porcarias. Entrego-me aos prazer dos diabetes. Ataco a minha caixa de gelado Kit Kat e percebo que a culpa da minha morte anunciada e prematura é dos programadores. Ai a televisão, essa puta.

11 de outubro de 2009

Dias agitados

Tenho tido tanto trabalho que mal dei conta que estou a pouco mais de uma semana de deixar Luanda e Angola. Os últimos dias têm sido de muita agitação, muitas chatices e muitas confirmações. Sim, é uma boa ideia ir-me embora já. Sim, a empresa onde trabalho tem um longo caminho a percorrer para se tornar um local com boas práticas. Sim, esta cidade muda as pessoas e não necessariamente para melhor.

Estou aliviado por ir. Pessoal e profissionalmente, o tempo é de fazer coisas novas. A bem da minha própria sanidade mental esta é a melhor altura. Só quem passou por aqui - aqui não é Angola, aqui é a empresa onde estou, mas é também Luanda - sabe como ela(s) é(são) capaz(es) de consumir uma pessoa. Para o bem e para o mal, esta experiência profissional e pessoal mostrou-me que eu sou capaz de muito mais do que imaginava. Mais criativo, mais tolerante, mais flexível e mais resistente.

É com pena que percebo que a Angola que os meus pais relatam, já não existe, mas é com esperança que compreendo que talvez um dia, daqui por muitos anos, ela se aproxime do que em tempos já foi. Ao caminho da paz segue-se agora o caminho da reconstrução e o betão demora sempre algum tempo a secar.

E o mote desta semana é:

"A cidade acordou com um cheiro pérfido no ar"

Textos para ler, quinta-feira, aqui, aqui e aqui.

9 de outubro de 2009

Sobre o Nobel de Obama

Nunca, como no momento em que recebe o Nobel da Paz, Barack Obama foi tão pouco consensual. Horas depois do anúncio oficial da atribuição do galardão, contam-se por muitas as vozes que se levantaram a dizer que Obama fez, até agora, pouco mais do que falar.

Ainda que perceba os críticos, prefiro acreditar que esta atribuição é um reconhecimento do carisma de Obama. Não sei se esta variável é suficiente para se traduzir em acções práticas, mas não há como negar que Obama foi e será, sim, um case study de popularidade e mobilização. Há quantos anos um político (friso, político) não originava tamanha mobilização? E para mim, se um homem é capaz de ser motor de união à escala global, esse homem merece que esse mérito seja reconhecido ao mesmo nível.

Obama ainda fez pouco pela paz no mundo, mas o prémio que hoje recebeu, por ventura o mais importante da Humanidade, compromete-o nesse caminho. E compromisso é o que de melhor podemos esperar de alguém em quem acreditamos.

8 de outubro de 2009

Vôo VR n. 6215

Origem: Lisboa (LIS) Hora de partida: 21:50 Data: 10.11.2009

Destino: Praia (RAI) Hora de chegada: 01:00 Data: 11.11.2009


Perceberam?

Tu és tão estúpida*

Não sei ao certo o que fazer com isto. No domingo deram-me uma frase “tu és tão estúpida” e disseram-me para escrever sobre o assunto. Não seria difícil, achei. O que não falta por aí é gente estúpida. O complicado é fazer a coisa sem dar a entender de quem é que estou a falar. Vocês percebem, não é? País estrangeiro, outra cultura, balas perdidas, um tiro nas pernas, aleijadinho para o resto da vida.

Pensei em começar assim: “Tu [que] és tão estúpida. Que me consomes, que me gastas e levas de mim o melhor, o pior e o vazio que fica depois de levares tudo o resto. Levas o vazio, até esse levas contigo. Não que precises dele, só porque te dá prazer deixar-me sem nada.” Mas depois mudei de ideias. A cena do vazio é um bocado despropositada. Ninguém leva o vazio de ninguém, porque o vazio não tem sítio para se agarrar.

Ao segundo ensaio, uma versão minimalista: “Puta uma vez, duas, três vezes”. Durante trinta segundos fiquei entusiasmado com o resultado, mas a euforia esvaiu-se na constatação de que, convenhamos, prostituição implica uma transacção comercial, absolutamente inexistente no particular e no geral. Felizmente, nunca precisei de pagar para me fazerem bicos.

“Exploras as minhas entranhas, sujas as mãos nelas”. Prossegui assim, de forma nojenta! Credo, ao que um homem se sujeita. Que fique bem claro que nunca ninguém ousou, sequer, meter um dedinho neste ânus, que permanece um mero periférico de saída. “Gozas sobre o despropósito”. O despropósito de expor o cocó ao mundo, claro está.

No fundo, fartei-me de tentar abordagens mais ou menos civilizadas à frase que me deixaram de presente. Tentei e tentei tanto, até que me ocorreram duas ideias geniais. Primeiro, “tu és tão estúpida” é como um bilhete para ver Vaya Con Dios, não se sabe ao certo o que fazer com ele. Segundo, tu não és assim tão estúpida.

Não és mesmo. Limitas-te a ser tu, estúpida, claro, mas não mais do que se esperava de alguém como tu. Tens esse jeito de ser, fazer o quê? Aceitar-te ou deixar-te, mas sempre sem esperar grande coisa daí.

Tu és tão estúpida, but not all that much.



* Esta semana, ele deu o mote e ela também escreveu. Todas as semanas é assim. Aos domingos um de nós, rotativamente, dá o mote para o texto que é publicado na quinta-feira seguinte. O próximo mote é meu. É de ler, é de ler.

5 de outubro de 2009

Talvez por uma noite, talvez

Eu volto de Angola e a Susana de Moçambique. A Paula está a caminho da casa nova e a Patrícia está a meio da sua caminhada. Em breve, por uma noite que seja, vamos voltar a estar juntos. Muitos anos depois (quantos, ao certo?), vamos voltar a ocupar as quatro cadeiras do Maya. Por uma noite apenas, vamos voltar a Peniche, ao Redondo, a Badajoz, a Barcelona, a Saragoça e a Milão e também ao autocarro que nos levou até lá. Por uma noite só, vamos beber cinco litros de sangria, assar chouriços com uma tremenda falta de jeito, destilar vinho tinto e quase pegar fogo à cozinha. Vamos todos dormir no chão e deixar as camas vazias, só porque não chegam para toda a gente.

Andaremos tantos quilómetros no nosso carro velho que os pneus não aguentarão. O Variações e o Paião vão cantar ao lado do Bonga, do Manu Chao e da Cesária Évora. Será muito pimba, mas ninguém se vai ralar com isso.

Talvez a Susana beba demais, a Patrícia amue quando estivermos a gozar com ela e a Paula diga piadas de que toda a gente se ri sem perceber. Talvez eu diga coisas obscenas ao dono do restaurante que mal fala português. Talvez haja cigarros de louro que tão bem fazem ao trânsito intestinal.

Por uma noite só, por uma noite apenas, vamos todos voltar à idade que tínhamos quando fomos tão felizes como talvez não voltemos a ser, a não ser por uma noite só.

1 de outubro de 2009

Depois da decisão errada... *

Depois da decisão errada, tomada semanas antes, Luísa vê-se agora perante um grande dilema. Porventura, o mais grave de todos os dilemas numa vida cheia deles.

Ao decidir “desaparecer”, sair sem avisar, virar as costas sem deixar rasto, teve o cuidado de preparar tudo meticulosamente. Conciliou argumentos que lhe permitissem ganhar tempo e distância. Pensou tão rigorosamente em tudo que, à data em que a sua ausência prolongada começou a levantar suspeitas, já Luísa estava suficientemente longe. Longe demais para ser encontrada. O objectivo estava conseguido: fugira de si própria e estava pronta para recomeçar sem o peso do passado.

No seu emprego, no seu bom emprego, usou o pretexto de uma reunião de trabalho fora do país. Três dias. Em casa, avisou a família da viagem ao estrangeiro. Três dias. E foi. Foi ao primeiro, passou o segundo, só não voltou ao terceiro.

Não é que Luísa tivesse uma vida má. Pelo contrário. Um bom emprego, já o tínhamos dito, um bom marido e um filho demasiado pequeno para ser uma dor de cabeça. “O problema não és tu, sou eu”. Nunca chegou a usar o chavão nos inúmeros silêncios que teve – o silêncio também pode ser uma forma de discussão – mas pensou nele repetidas vezes. O problema de Luísa – Luísa, sempre Luísa – era ela própria e a forma como não estava disposta a aceitar ter, aos 31 anos, a vida fatalmente programada. “Porra, aos trinta ainda se é uma garota”, palavras dela. E então fugiu. Fugiu e achou que estava a fazer uma grande coisa.

Mas isso foi semanas antes.

Agora Luísa está longe. Longe da vida programada, dos horários, do marido e do filho, demasiado pequeno para ser uma dor de cabeça. Está longe do caminho que fazia de segunda a sexta – despertador 6:30, filho na creche, trânsito, trabalho, trânsito, filho na creche, casa – do café onde almoçava mini-pratos, do ginásio onde ia às terças e quintas (bem, às vezes não ia às quintas), do supermercado onde fazia compras aos sábados. Está longe e continua a achar o que achava antes de estar.

Depois da decisão errada, tomada semanas antes, Luísa vê-se agora perante um grande dilema. Está longe da sua vida programada, mas continua a sentir-se presa a um programa que alguém escreveu no seu lugar.

Depois da decisão errada, Luísa percebeu que podemos fugir de tudo, menos de nós próprios. É muito provável que volte para casa.


*Este texto é em resposta ao mote lançado por esta menina. Todos os domingos, rotativamente, eu, ela ou ele vamos dar o mote para um texto que será depois publicado às quintas-feiras nos nossos próprios blogues.