São 8:22. Precisamente, oito-e-vinte-e-dois. O relógio digital não deixa margem para dúvidas. Comprou-o há precisamente 7 meses e treze dias. Escreve treze, mas diz ‘treuze’. É como muito e ‘muinto’.
São 8:22. Aliás, com isto tudo já são oito-e-vinte-e-três. Se carregar no segundo botão do lado direito consegue até saber o segundo preciso. Não carrega. Ou carrega? Vai lá com o dedo. Não, não carrega.
Está à espera do autocarro, como faz todas as manhãs de segunda a sexta-feira e, a cada três semanas, igualmente aos sábados. Gosta desses sábados. Gosta de sábados e prefere não trabalhar, mas como trabalha – a cada três semanas – então gosta desses sábados também.
Anda de autocarro, no autocarro que vai chegar dentro de 4 minutos, quando forem oito-e-vinte-e-sete, há 745 dias. Sempre, menos aos fins-de-semana, excepto os sábados a cada três semanas. Também não anda nos feriados e não andou nos 34 dias úteis de férias que já gozou desde que há 745 dias começou a andar no autocarro que vai chegar dentro de 3 minutos. Agora são três.
Mora a 5 quilómetros e 432 metros do sítio onde trabalha. Viu no Google. Vê tudo no Google e sabes imensa coisas sobre coisas que, geralmente, não interessam a ninguém e, aqui para nós, não lhe interessam particularmente. Ou melhor, interessam, mas não interessariam se ele tivesse outras coisas que lhe interessassem mais.
Tem uma vida uma bocado aborrecida, portanto. Felizmente, não se aborrece com isso.
Podemos dizer, acho que podemos, que é um aparente – fixem-se no “aparente” – conformado. Bem, só um conformado seria capaz de há 745 dias, descontando fins-de-semana, excepto os sábados a cada três semanas e os 34 dias úteis de férias que já gozou, almoçar uma posta de peixe-espada preto, acompanhada de três batatas cozidas e feijão verde. Tudo coisas sem grande sabor, portanto. “As coisas que não sabem a nada não chegam a enjoar, porque não sabem a nada”, respondeu certa vez à indignada empregada brasileira do restaurante onde o tratam pelo nome próprio nome.
Falta um minuto. Chegou o autocarro. Um minuto antes, nota-se. Faz uma cara de desagrado. Chegar antes não é bom. Aliás, é tão mau como chegar um minuto depois. Se faltava um minuto, faltava um minuto para o autocarro chegar. Um m-i-n-u-t-o.
35 depois – que trânsito! – completa a distância até à paragem que o deixa a 57 passos do edifício do escritório. Podia subir de elevador até ao décimo quarto de 18 andares. Sobe de escada. São 255 degraus, 3 na entrada, mais 6 por patamar, três patamares em cada andar. Chega relativamente casando e relativamente com sede. Entra e vai à copa. Bebe um copo de água em quatro goles. Limpa a boca a um guardanapo de papel, nunca ao rolo de cozinha.
Trabalha quatro horas de manhã, pára uma hora para almoçar e trabalha quatro horas à tarde. Desce os 255 degraus. Apanha o autocarro que percorre 5 quilómetros e 494 metros (faz uma rua a mais) até à paragem perto de casa.
É assim todos os dias.
Agora, está à porta do prédio. Pega no porta-chaves, com quatro chaves. Prédio, correio, casa e cofre – está no armário da casa de banho, debaixo do lavatório, atrás da toalha azul escura, demasiado áspera para ser usada. Já abriu a porta. Dois passos até à caixa do correio. Chave mais pequena – ainda mais pequena que a chave do cofre. Roda, abre e dois envelopes. Primeiro, conta. Segundo, respiração suspensa. Ainda só viu o verso, mas tem uma suspeita. O envelope fechado, que segura ao contrário, é – já o sabe – o “yes, man” que tanto esperava. Vira-o. A sua vida vai mudar. Com esta é que o foderam.
* No mote anterior, além de me atrasar, escrevi uma porcaria tão valente que me causou algum embaraço. Aqui está uma versão mais pensada. Se melhor, vocês o dirão.