A aprendizagem do Braille é o primeiro passo na formação académica de um deficiente visual. O domínio do sistema de leitura e escrita baseado no tacto é fundamental para o acesso à informação. Por isso se compreende a aposta que a escola da ADVIC faz no seu ensino.
A falta de livros, adaptados às necessidades dos alunos cegos, é um problema. O país não produz obras em Braille e o acervo que existe na pequena biblioteca da associação vem de fora, com todos os custos que isso representa. Por outro lado, um caderno, com folhas próprias para o tipo de escrita, ronda os 2500 escudos.
Diz-se que um cego experiente pode ler duzentas palavras por minuto. “O contacto com a leitura e a escrita contribui para o desenvolvimento intelectual de qualquer ser humano”. Quem o diz é Lurdes Borges. Antes de estar reformada, era professora na escola. A aposentação não a tirou da sala de aula, onde continua a passar as tardes, agora como voluntária.
Reconhecendo a importância de dominar o Braille, Lurdes defende também a formação profissional. “Uma formação profissional é fundamental. Só a formação académica não é suficiente”, considera, numa opinião que é partilhada por Manuel Júlio que, por isso, tem apostado em cursos de informática, música e artesanato.
O maior sonho de Jenice é ser telefonista. Também quer “uma família”, mas a ambição de um emprego é tudo para a jovem de 22 anos, há nove na escola de cegos.
O seu percurso tem sido feito de sobressaltos. Apesar de, nem sempre, os estudos lhe correrem de feição – “abandonei a escola muitas vezes” – reconhece a importância das aulas. “Se nós não temos estas escolas, ficamos com muitos problemas”, acredita. “É esta escola que nos dá um emprego”.
Um trabalho para quem termina os estudos é um desafio. De entre todos os alunos que já passaram pela escola, Manuel Júlio sabe que existem 15 a trabalhar. “Estamos a bater em todas as portas, a tentar arranjar novas ofertas”, garante.
“O objectivo é que cada deficiente visual seja auto-sustentável e tenha auto-domínio, para, assim, fazer a sua vida própria e ser independente”.
Para isso, a escola garante um acompanhamento. Do total de alunos, ligados à instituição, muitos frequentam, entretanto, o ensino regular. Outros chegaram à universidade. “Tentamos sempre estar próximos dos alunos, acompanhar a evolução e ver onde estão as falhas, para que as coisas corram da melhor forma possível”, afirma Marciano Monteiro, director do estabelecimento de ensino.
A escola procura “criar o gosto para que todos possam aproveitar aquilo que a associação tem para lhes oferecer”. Contudo, “a tarefa não é fácil”, suspira.
Os cinquenta invisuais apoiados actualmente pela ADVIC representam apenas uma pequena gota da realidade, bem mais expressiva. Estima-se que existam 2500 cegos em Cabo Verde e não é preciso grande aritmética para perceber que somente dois a três por cento da população deficiente visual tem acesso ao ensino especializado. Quando assim é, a entrada no mercado laboral fica, naturalmente, mais difícil.
O estigma e as barreiras
Antes de se mudarem para o quarto onde ainda moram estavam a duas horas da estrada mais próxima, num caminho só acessível a pé. Demasiado longe e demasiado imprevisível. Um dia, Manuel Júlio teve conhecimento da história da família. Subiu o trilho até Longadeira – ainda longe e distante – e encontrou uma casa com dez pessoas: mãe e nove filhos, quatro invisuais. Trouxe-os consigo.
Sem recursos, com uma deficiência, os quatro irmãos – dois rapazes, duas raparigas – estavam condenados a uma vida de dependência.
Durante anos, ainda hoje é assim, a associação garantiu-lhes educação, alojamento e alimentação. O esforço deu frutos. O irmão mais velho concluiu o liceu e trabalha como telefonista, numa câmara municipal. O segundo estuda ciências sociais, na Universidade de Cabo Verde, e as duas mais novas prosseguem os estudos, no ensino básico.
A história destes quatro irmãos avizinha-se de sucesso. Resgatados ao esquecimento, são exemplos de como há quem vença o estigma.
Maria Furtado da Veiga é professora. Também invisual, como os alunos que ensina, sabe o que é sentir descriminação, resultado da sua condição. Uma vez mais, o emprego: “às vezes há empresas que não recebem deficientes visuais, porque dizem que não têm competência para trabalhar”.
O preconceito combate-se, defende, com “todo um serviço de informação, para consciencializar a sociedade civil”, porque “há empregos aos quais as pessoas portadoras de deficiência visual são adaptáveis”.
Na mesma linha, Lurdes Borges acha que “para quem é cego é muito importante conseguir ter uma profissão”. A antiga professora repete a ideia de que “as pessoas ainda não conseguem ver um deficiente visual como alguém que tem uma vida normal”.
Mas não é só do fim do estigma social que depende a ‘normalidade’ da vida dos deficientes visuais cabo-verdianos. A estrutura arquitectónica das cidades não ajuda à sua mobilidade.
“Quando o deficiente visual quer ir à escola ou ao trabalho, tem dificuldades, porque não temos passeios em condições, nem ruas em condições”, exemplifica Manuel Júlio. Os problemas começam, desde logo, na capital. “A cidade da Praia tem barreiras que dificultam a mobilidade de uma pessoa com deficiência visual”, sentencia o director Marciano Monteiro.
De volta à cozinha
Por esta altura, o arroz de cavala está pronto. Para a refeição ficar completa faltam apenas “umas queijadinhas deliciosas”.
Quando convidaram Maria Alzira para o curso de culinária, ela nem queria acreditar. “Não me achei capaz”. A descrença durou pouco. “No primeiro dia que cá cheguei fiquei muito emocionada”.
Decorou o nome de todos os alunos – primeiro 15, agora 20 – e faz questão de os cumprimentar, um por um, “com um beijo ou um abraço”. Começa por ler a receita e passar os ingredientes, “para eles sentirem e tocarem”. Dá as dosagens em colheres ou chávenas e, à vez, todos se lançam ao trabalho.
A Maria Alzira, o cabelo grisalho confere-lhe a autoridade de quem sabe do que fala: “a vida é uma caminhada e mesmo que o caminho seja íngreme, devemos continuar a ter força”.
publicado no Expresso das Ilhas (Cabo Verde) n.º 427, de 3 de Fevereiro de 2009
fotografia de Ulisses Moreira