"... é com gonorreia".
Em zapping, só ouviu a parte final do que supõe ser uma fala de telenovela. Ou sitcom, dado o descabido. Nem sequer olhou para a imagem. Aconteceu exactamente antes de tocarem à campainha. Pegou no comando, tirou o som da televisão e foi à porta. Tem esta mania quase secular de nunca abrir a porta de casa sem antes baixar o volume da televisão. A gonorreia - a do tipo da novela, não a dele, claro - seria motivo de suficiente embaraço, mas aquilo que o chateia mesmo é imaginar que um visitante de ocasião - nunca programa visitas, logo não recebe visitantes que não os de circunstância - pode, pelo som que sai do aparelho, descobrir, de forma absolutamente inusitada, o que é que se passa naquela sala, para mais se aquilo que se passa é, acaso, um problema de gonococos.
Roda a chave uma, duas vezes e vai com a mão ao trinco. Apercebendo-se de que não faz ideia de quem seja, olha o relógio - não à procura de uma resposta, só para ver as horas - e espreita pelo "buraquinho", orifício ao qual não consegue associar outro nome. Do lado de lá, no patamar do seu segundo andar esquerdo, um indivíduo com um peculiar aspecto. São 21: 30 e à meia luz de uma lâmpada de escada, 40w, resta-se, impávido, um sujeito de aspecto cândido, segurando um livro que de tão grosso só pode ser sagrado.
"Vou abrir", convence-se.
"Boa noite".
"Boa noite. Posso-lhe falar da palavra de Deus?"
Três segundos de espera antes da resposta. Um, dois. "Sim, faça o favor de entrar". A resposta foi tão surpreendente que durante alguns instantes o próprio profeta quedou-se num sagrado silêncio, tão a propósito, dada a iminente chegada dos céus à terra.
"Entre, homem, entre". Logo reagiu o visitante, entretanto refeito do susto da afirmativa.
Encaminhado para sala, segurando a bíblia na mão direita e uma pastinha na esquerda, provavelmente carregada de Sentinelas, ajeita as calças, respira fundo, abri o santo livro na página previamente marca e sem esperar qualquer consentimento, dispara: "Então, esta cabrão tem mesmo gonorreia, não é verdade?"
*O mote desta semana, a ler aqui, aqui e aqui.
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