Figura cimeira da política nacional desde a independência, o comandante Pedro Pires considera que em Cabo Verde ainda existe uma cultura assistencialista. O antigo Presidente da República assinala os progressos verificados ao longo das últimas décadas, mas pede rigor na gestão dos recursos dos Estado.
Somos uma sociedade participativa?
Acredito que sim, se nós fizermos uma análise apurada podemos ver que há uma boa participação dos cabo-verdianos na vida da sua sociedade e da sua organização. Podemos começar, por exemplo, pelos clubes de futebol ou por outro tipo de organização e com o tempo, apareceram outras formas de organização. Entendo os cabo-verdianos são participativos e há uma tendência para melhorar essa participação.
Na palestra que proferiu no IX Encontro de Fundações da CPLP disse que "a participação e responsabilização cívica são dois elementos essenciais para o aprofundamento da vida democrática e para a consolidação dos regimes democráticos."
Até que ponto é que a sociedade cabo-verdiana já interiorizou de facto esta ideia?
Às vezes temos a impressão de que as pessoas agem de uma forma despreocupada, sem o esforço de aprofundar e analisar bem as suas responsabilidades. Todos nós somos responsáveis por aquilo que acontece na nossa terra e somos responsáveis pela construção do nosso futuro. Mas uma coisa é a responsabilização política, cívica se podemos dizer assim, e outra é a responsabilização social. Muitos dos problemas existen-tes podem ser resolvidos com a participação interessada do cidadão sem que haja necessidade da intervenção do estado e dos municípios.
Existe de alguma forma em Cabo Verde, uma cultura assistencialista, nessa ideia de que o Estado é o garante de tudo?
Sim, ainda não nos libertámos dessa dependência do Estado, de modo que há necessidade de se descobrir outras formas de contribuir para a solução dos problemas que possam existir.
Por exemplo, a questão do emprego: será que o Estado é o único responsável pela criação de emprego? Está claro que não, porque os serviços públicos não têm lugar para toda a gente, nem podiam ter. Cabe ao cidadão, ao privado e a cada um de nós trabalhar no sentido para que haja mais emprego. Pode-se dizer que para ter emprego precisamos de dinheiro, isso sim, mas podemos ter outras iniciativas. Uma das iniciativas possíveis, por exemplo, é o cooperativismo, o mutualismo. Entendo que podíamos resolver muitos problemas do sector da saúde com organizações mutualistas ou o próprio sector da educação, mas não há ainda essa cultura, não há essa preocupação, de modo que há que insistir nesse sentido e quebrar a ideia do monopólio de responsabilidade.
Alguns Estados experimentaram, com sucesso visível, soluções de cooperativas em diferentes sectores de actividade, como a agricultura. São experiências que poderíamos replicar em Cabo Verde?
Há sociedades onde de facto o cooperativismo tem um enorme peso. Por exemplo, nos países nórdicos, mas até lá chegarmos vamos levar muito tempo. Falou da agricultura. Há vários níveis de cooperativas, a cooperativa não significa que temos de juntar as propriedades, mas podemos cooperar na transformação, pode-se cooperar na venda, na compra dos adubos, há várias formas de cooperar. Por exemplo a cooperativa do vinho de Chã das Caldeiras, não é uma cooperativa completa, no sentido em que as propriedades estão juntas, é uma cooperativa de produtores, que produzem a uva, vendem à cooperativa a um preço, faz-se a transformação e no fim fazem-se as contas.
Ao longo das décadas, o próprio Estado não contribuiu para fomentar nas pessoas o sentimento de que é o garante principal das suas vidas?
É bem possível que sim. As pessoas precisam sempre de garantias e numa sociedade pobre, que começa a vida de Estado independente, você tem de dar uma garantia e essa garantia quem a pode dar é o Estado, mas em certas condições, as prioridades tinham de ser garantidas pelo Estado. Em sociedades pobres e subdesenvolvidas o estado tem um papel extremamente importante, mas não deve cometer o erro de convencer as pessoas que é a partir das instituições públicas que vamos resolver todos os problemas. Tem de saber estimular as pessoas.
Esses estímulos estão a ser dados?
Talvez não o suficiente, mas o liberalizar a economia é um sinal grande que significa que agora a economia privada, o promotor privado, têm um papel fundamental, mas nós aqui estamos a falar da sociedade civil, no contexto da economia social, aquilo que se pode fazer sem ter como motivação primeira o lucro, mas ter como motivação a prestação de um serviço ao seu associado. Entendo que na economia Cabo-Verdiana há um espaço para a economia social e até agora isso tem tido desenvolvimentos e recuos. Seria necessário fazer um esforço para que não tenha mais recuos, se estabilize e cresça.
Relativamente à criação de uma sociedade civil, ela pode ser medida também numa dimensão política. Os partidos políticos cabo-verdianos têm deixado que imerja essa sociedade civil, que haja participação política extra-partidária?
Tudo sai do mesmo bule, da sociedade no geral. A orientação e o campo de intervenção. A sociedade politica intervém no campo da organização do poder politico, as organizações da sociedade civil, não a sociedade civil, intervêm noutro campo diferente, que pode ser económico, pode ser no campo cultural, social, cooperativo mutualista, num campo muito próximo da politica, embora não seja a mesma coisa, que são as fundações.
Diz-se frequentemente que a sociedade cabo-verdiana é ainda uma sociedade exces-sivamente partidarizada. No seu entender isso é verdade?
Entendo que sim. Muitas vezes fica-se com a impressão que a pessoa não tem opinião própria. Mas há que enveredar-se para outra situação em que há um espaço que não é o espaço dos partidos políticos, mas sim o espaço dos cidadãos que podem intervir sem ter que se referir a ideologias ou à posição de um partido. Admito que haja essa necessidade. Do meu ponto de vista, isso é muito necessário, porque nós não podemos resumir as opiniões e as analise às posições dos partidos políticos. Eu acho que é reducionista, então precisamos de espaços mais ou menos neutros, imparciais onde a pessoa pode emitir a sua opinião sem problemas e sem complexos.
A sociedade cabo-verdiana, neste ano de 2012, é uma sociedade muito diferente daquela que existia nos anos 70, no período imediatamente após a independência. Como é que encara estas aceleradas mudanças?
Em 1975 havia mais pobreza, mais falta de instrução. O que se conseguiu no decurso desses anos permitiu a melhoria das condições de vida, das relações entre as pessoas, entre as ilhas, entre as comunidades e com o exterior.
Aumentaram também as desigualdades sociais?
Aí tenho dúvida, porque havia tanta miséria que eu não posso afirmar que houve aumento da desigualdade social. Não é possível uma comparação. Mas se me perguntar se houve uma diminuição da miséria, digo que sim. Depois da redução da miséria, podemos discutir se houve ou não aumento da desigualdade social. Houve crescimento da riqueza e a repartição é que não terá sido a mais justa, mas tome nota que na altura a pobreza era muito maior. Podemos dizer que o desenvolvimento da nossa sociedade poderá ter sido ou estará a ser desigual e que é preciso ter cuidado com essa desigual-dade.
Como é que olha para fenómenos que são relativamente recentes, nomeadamente questões de violência urbana, criminalidade urbana e juvenil. Pergunto-lhe se estes são sinónimos dessa evolução que a sociedade tem verificado?
Está claro que é um fenómeno endógeno com influências externas. Se é produto nosso, se é gerado aqui dentro, é consequência do desenvolvimento dessa sociedade de todos os pontos de vista. É consequência do desenvolvimento da sociedade cabo-verdiana e se podia ser ou não evitado, eu acho que sim, talvez pudesse ser evitado e o problema que se coloca é analisar e aprofundar o conhecimento das causas, para se poder reduzir esses factores e essas causas. Eu não diria que o desemprego é um factor determinante nisso. Um outro elemento que podemos colocar diz respeito ao funcionamento das famílias. Há uma desresponsabilização das famílias.
Desestruturação familiar?
As famílias não estão a funcionar devidamente para dar protecção ou orientação aos seus membros. Mas há mais: o problema da urbanização rápida, a perda de referências e do controlo social, as mudanças demográficas, a educação, o papel desempenhado pela co-municação social. Existem, portanto uma série de factores.
Como é que se devolve a família à sua função original de elemento primário de socialização dos indivíduos?
Não devemos olhar para a família de uma forma utópica. Não sei até que ponto é que as nossas famílias funcionaram bem durante todo o tempo. Entendo que a sociedade é formada por famílias estruturadas e famílias desestruturadas e quando você tem situações em que os pais não estão presentes ou o pai não está presente ou não se responsabiliza pela educação dos filhos, há então uma certa desresponsabilização. Quando as pessoas não se preocupam com isso e preferem sair a noite ou preferem ir ao bar ou fazer a vida de botequim, isso fica complicado, então o que eu acho é que não há uma responsabilização com a educação dos filhos e muitas vezes a educação dos filhos está entregue às mães desprotegidas. É tudo isso que é preciso melhorar. Assistimos hoje em dia a uma crise internacional que tem consequências que são por todos conhecidas e que tem contornos mais ou menos claros. Essa crise tem levado a que muitos estados em dificuldades questionem em particular aquela que deve ser a função social do Estado.
Como é que o Comandante Pedro Pires olha para esta discussão que é feita, sabendo que a função social do Estado não se limita ao pagamento de prestações sociais, vai também à saúde, à educação, à promoção da cultura, etc.?
Essa crise já se anunciava há muito tempo. Há anos que se tem estado a debater como garantir a sustentabilidade dos sistemas de previdência social, mas isso é um problema antigo. Em Cabo Verde, não temos condições para ter um estado social, porque os estados sociais nascem com o grande desenvolvimento industrial e económico dos países mais ricos e nós não temos ainda essas condições, mas as pessoas quando falam, quando exigem, quando pedem, dão ideia que já temos as condições para ter um estado social. A meu ver, nós não temos condições para ter um estado social e às vezes as pessoas confundem tudo isso e apresentam soluções que não são as viáveis.
As pessoas esperam mais do que o Estado pode dar?
Eu acho que sim, que devemos ser realistas e ter uma gestão rigorosa, porque Cabo Verde foi, é e continua a ser um desafio e esse desafio exige sempre uma gestão rigorosa e prudente. Há uma grande diferença entre o rigor e a austeridade. O rigor é um princí-pio de gestão e a austeridade é uma medida emergência para enfrentar situações de risco. Assim, o rigor exige que os meios sejam bem utilizados mas também exige que a pessoa tenha a produtividade necessária para compensar o salário que recebe. A questão do rigor e a questão da produtividade e da poupança são princípios fundamentais que não se confundem com a mera austeridade. Logo, o rigor no bom uso de recursos e a produtividade constituem princípios elementares de uma boa gestão. Por outro lado, partir do princípio que o que é do Estado não tem dono, que pode ser gasto à toa, é mau e não conduz a parte nenhuma.
originalmente difundida na Rádio Morabeza e publicada no jornal Expresso das Ilhas (Cabo Verde)