20 de setembro de 2011

O velho


Passado um bocado, com as ideias amaciadas pelo álcool, mantendo ainda a lucidez, revela o seu lado mais sentimental.

As rugas crivadas no rosto conferem-lhe, quase sempre, um ar duro, de homem sofrido, amargurado. Naquele fim de tarde, porém, sentado num banco de madeira gasta, com as costas apoiadas na parede por caiar da sua pequena casa e os olhos postos no mar que, como poucos, e como a nada, conhece bem, o seu rosto diz de si apenas que o tempo passou. "Não te foi fácil esta passagem por aqui, meu velho", parece segredar o lado mais visível da idade.

A garrafa de qualquer coisa forte - pouco interessa o que é, desde que forte - está a menos de um quarto. Existem dois copos. O seu, nunca vazio - embora nunca cheio - poisado por breves segundos na laje de pedra. O outro, do interlocutor que o acompanha naquele fim de tarde, metade cheio, a baloiçar entre dois dedos.

Quem o escuta é muito mais novo. Quem o ouve nas seis e meia do outono em Agosto sou eu próprio. "Está frio aqui", arrisco enquanto me preparo para sentar à sua frente, a não mais de um metro de distância. "Não se sente aí, vai tapar a vista e nunca devemos virar as costas ao mar", avisa, sem responder ao desabafo meteorológico.

"Quer saber o quê, afinal?", pergunta indisposto. Bem sei que foi a contragosto que consentiu receber-me. Chegou àquela fase da vida em que não deve palavras a ninguém. Deve-se a si próprio e, mesmo assim, só para não cair em omissão.

Quero saber tudo, na realidade. Dos tempos passados, das memórias de criança, da primeira vez no mar, dos sustos, as desilusões, o encanto e o seu oposto.

"Já volto", diz, enquanto se levanta. Regressa com a garrafa e os copos. Coloca-os frente a frente, servindo-os. Mira-os, na sua 'bedjice' e estende-me o menos estalado.

Fala. Sobre o que lhe perguntaria e o que não julgava apropriado querer perguntar. Não houve um mote,  um 'como é que...?'. 

Duas horas e trinta minutos de uma existência quase centenária, num monólogo sem interrupções, porque nenhuma faria sentido. Mostro-me atento, interessado. Mais, estou cativado. 

De repente, um silêncio, o primeiro. "A minha vida foi uma merda, sabe? Mas não a trocava por nada". Ergue-se com um ligeiro esgar, arrasta os pés e ao entrar em casa, antes de fechar a porta, avisa: "não se atreva a roubar-me os copos". 


5 comentários:

Sandra disse...

Maravilhoso, simplesmente maravilhoso. Adorei!

Anónimo disse...

Os últimos escritos marcam o teu melhor no reencontro da escrita.
apesar de ser suspeita...PARABÉNS.Busco todos os dias um pouco de ti é assim que mato saudades. Bj

Nuno Andrade Ferreira disse...

Obrigado Sandra e obrigado Anónima.

Diwane disse...

" não se atreva a roubar-me os copos" muito bom! Parabéns Sr. NAF!

Nuno Andrade Ferreira disse...

Sempre atenta, Diwane. Obrigado. Abraço.