19 de outubro de 2013

Mindelo, 19 de Outubro de 2013

Sobre o protesto de hoje: claro que há ali a escola do PCP, isso todos sabemos, mas a capacidade de mobilização (e organização) da CGTP continua exemplar. Recordo-me da experiência que tive há alguns anos, quando acompanhei a preparação de uma greve geral e segui o dia da mesma nos bastidores da máquina bem oleada da central. 

Teria prefiro a desobediência civil, ainda assim. Já se percebeu que isto não vai lá com marchas lentas. A velocidade tem que ser outra. E o músculo também. 

***

Desde a minha última vez aconteceu muita coisa, é verdade, mas no essencial está tudo na mesma: o país continua a afundar-se por culpa do governo que, contudo, acha que não, o Presidente não acordou do coma, e o Costa ainda não é o secretário-geral do PS.

Pelo contrário, no P3 há vida. Os textos (novos) estão todos aqui.

***

Calor em Outubro: perdi a conta aos banhos que já tomei hoje. 

***

A música do vizinho continua "xu, xu, xu".

21 de junho de 2013

Mindelo, 20 de Junho de 2013

Amanhã, a caminho de Santo Antão, para um fim-de-semana de trabalho. 

***

"How I met you mother"é, no género, uma das melhores séries de todos os tempos. Imperdivel, mesmo que em repetição. 

***

Quanto a mulher, prefiro-as sarcásticas, donas de si próprias, com imensas certezas, mas cheias de perguntas. Gosto de mulheres que acreditam, que confiam - sem que nunca deixem de desconfiar. Mulheres que nos ponham no lugar. Precisamos de mulheres que nos ponham no lugar.


10 de junho de 2013

Mindelo, 10 de Junho de 2013

Dia estranho, este. E-mails que ficam sem resposta, telefonemas que não são atendidos, máquinas que avariam (e voltam a funcionar logo a seguir). 

Às vezes fico com a sensação de viver numa Twilight Zone. Ao princípio da tarde, o Primeiro-Ministro de Cabo Verde surpreendeu toda a gente quando revelou, em primeira mão, a suposta morte de Nelson Mandela. No final de um discurso, evocou o homem e perpetuou a memória. 

Logo depois, seguiu-lhe as pisadas um jornal digital, citando-o e tomando como certa a falsa notícia. 

Os dois exemplos são esclarecedores sobre o amadorismo que persiste tanto no jornalismo como na assessoria política. Se o erro do jornal é grave, a falha de protocolo do Chefe de Governo é gravíssima. Fosse comigo e hoje rolavam cabeças. 

***

Está na rede a minha mais recente crónica sobre emigração. Como sempre no P3.

***

Não estranhem a ausência de comentários em relação ao Dia de Portugal. Guardemos antes um minuto de silêncio.


6 de junho de 2013

Mindelo, 6 de Junho de 2013

Tenho feito um terrível exercício de paciência. Espero pela resolução de um problema que, não sendo minha responsabilidade, afecta directamente a empresa para a qual trabalho. Não sei se estou chateado, indignado, ou uma mistura das duas coisas. Mantenho-me calado, por enquanto. 

***

Preciso de férias. Preciso de férias, olho para o calendário e vou riscando os meses. Junho não dá, Julho nem pensar, Agosto idem, Setembro talvez. Preciso de férias hoje.

***

O meu pai fez anos ontem. O meu companheiro e grande amigo, interlocutor das melhores conversas que já tive e - a par da minha mãe - o mais sábio conselheiro, completou 66 anos. À falta de um abraço, dei-lhe uma carga de trabalhos no Facebook, quando pedi que lhe dessem os parabéns no meu mural. 

22 de maio de 2013

Mindelo, 22 de Maio de 2013

Martim Neves é a nova coqueluche das redes sociais. O jovem, convidado do Prós e Contras desta segunda-feira, protagoniza um video em que 'arruma' com uma professora universitária quando esta o questiona sobre os salários dos operários da fábrica onde são feitas as roupas que desenha. Tem razão em algumas coisas, estará certo quando diz que é preferível os trabalhadores ganharem 500 euros a estarem desempregados, mas não posso deixar de registar a aparente soberba com que o faz. 

Um empreendedor moderno é aquele que deseja o melhor para si e para a equipa, sem fazer a exaltação da miséria (leitor do P3 que me insultou, este sim), como um mal menor, porque a alternativa era uma miséria ainda maior.

Sei pouco sobre Martim Neves. Tem 16 anos, teve uma ideia que pôs em prática. É um bom princípio e, por si, um bom exemplo. Sei também que Martim Pereira Neves é sobrinho do Primeiro-Ministro de Cabo Verde e que a família a que pertence está social e economicamente numa situação privilegiada. E boas condições de partida são sempre uma vantagem.

Nada disto lhe tira o mérito, mas ajudará a perceber melhor o contexto. 

Fazemos heróis demasiado depressa.


Actualização: a propósito do texto acima recebi este link (clicar). Não pude apurar sobre a veracidade do que está escrito, pelo que cada um tirará as suas conclusões.

19 de maio de 2013

Mindelo, 19 de Maio de 2013

A asquerosa discussão que se seguiu à aprovação, no Parlamento português, da lei sobre a co-adopção mostra bem o estado de desenvolvimento em que ainda nos encontramos. Li gente a defender a institucionalização de crianças, com o argumento de que "pelo menos nas instituições não correm o risco de chegarem à adolescência e serem seduzidos pelos pais". Concluo que, em Maio de 2013, ainda há portugueses que acham impossível uma lésbica ou um gay terem amor pai-filho, mãe-filha, sem que isso implique desejo sexual.

Há gente que precisa de institucionalização, de facto. Em hospitais psiquiátricos.

***

Foi criado um portal para denunciar casos de "empregadores sem vergonha". Alguns minutos no site são suficientes para perceber que os casos de abusos laborais se multiplicam e com contornos cada vez mais grotescos. A crise revela-nos como somos, para o bem e para o mal, e é desculpa para muita coisa. Pena que continuemos restritos aos protestos de sofá.

***

Vou daqui a pouco para o Calhau, visitar uma feira de mulheres, com exposição e venda de produtos tradicionais e artesanato. Boa comida e ainda melhor bebida, assim se espera.

***

O Porto renova hoje o título.

16 de maio de 2013

Mindelo, 16 de Maio de 2013

A época que está prestes a terminar tem tudo para se tornar um fiasco. O Benfica foi - e não pode ser - a equipa do quase. Quase campeão, quase vencedor da Liga Europa. Dos segundos não reza a história. O Benfica de Jesus tem muitos méritos, mas tem o grande desmérito de ser uma equipa que falha em cima da linha de meta. Não é de agora. Aconteceu várias vezes ao longo dos últimos anos.

***

A França entrou em recessão. O crescimento económico na Alemanha está a abrandar e os germânicos podem seguir o mesmo caminho dos vizinhos gauleses. Péssimas notícias para Merkel, prestes a ir a votos, mas nada que surpreenda - a economia alemã depende, em grande escala, das exportações e os seus clientes preferenciais estão em crise prolongada.

***

Gosto muito do Miguel Esteves Cardoso e das coisas acertadas que escreve (e da forma como o faz). Preferia-o, contudo, no pré-romantismo. O tamanho do amor pela Maria João chega a incomodar. Inveja minha, talvez.

15 de maio de 2013

Mindelo, 15 de Maio de 2013

Sou um tipo que fala sozinho. Frequentemente. Resolvo muitos assuntos assim. De manhã, especialmente, protagonizo monólogos enormes. E hoje, assim que acordei, percebi com clarividência que tenho uma natural tendência para os loucos, que me agradam, mas que já me falta paciência para os mentalmente desarrumados. Gente que não sabe o que quer, que hoje é isto e amanhã é aquilo. Não há nada que substitua as pessoas que estão bem consigo próprias.

***

O iTunes acordou-me hoje com Sam & Dave, Hold On, I'm comin'. Gostava de perceber alguma coisa de música para rematar este parágrafo com uma frase sábia e definitiva.

***

Há coisas que não mudam. Por exemplo, inventar 'cenas' para fazer quando alguma coisa chata precisa de ser feita. Lembro-me dos tempos de faculdade, das vésperas do exames e das vezes que arrumei o quarto nesses dias. 

***

Chega hoje às bancas francesas um novo jornal. Em tempos de crise e severa redução de vendas, L'Opinion é uma ousadia. Dirigido por Nicolas Beytout, que já andou pelo Figaro, o título quer fazer a ponte entre o online e o impresso, para que uma e outra edições se complementem. Já ouvimos isto antes - dezenas de vezes - e até agora ninguém cumpriu a promessa. 

Continuo a achar que há lugar para jornais em papel (e até já achei o contrário). Têm é que ser a antítese daquilo que têm sido até agora. Espero (ainda que desconfiado) que seja desta. O mercado precisa de sinais. E as crises precisam de bom jornalismo. Mais aqui. 

13 de maio de 2013

Mindelo, 13 de Maio de 2013

Quando se vive no estrangeiro, ter amigos é tudo. São a nossa base de sustentação, a nossa família. Acho que encontrei o tema da próxima crónica para o Público. 

***

Por falar em família e amigos, este é um ano de visitas simpáticas. Em Março foi a minha prima Inês, em Junho será outra Inês, neste caso uma grande amiga. Em Julho, a minha tia Lena, acompanhada da minha afilhada Dulce. Em Agosto, a Patrícia e a Paula (que chegam a meio do festival, pelo que já foram avisadas sobre a necessidade de trazerem consigo pastilhas apropriadas para estado de ressaca). Se tudo correr bem, o ano terminará com a estadia prolongada dos meus pais. 

***

Profissionalmente, tenho-me saído bem. Acho que consegui, até agora, tomar as decisões certas, nos momentos exactos. 

Pessoalmente, a história é outra. O caminho que devo percorrer é ainda muito longo. Sujeito-me, repetidamente, a situações às quais me deveria poupar e que acabam por ter reflexos na minha vida e na vida dos implicados. Presumo que seja uma aprendizagem e por isso espero aprender rapidamente. 

***

Candidatei-me ao mestrado. Não sei bem onde é que me estou a meter.

***

Demasiado trabalho em mãos. Além do costume, uma entrevista para a The Africa Report e uma reportagem para o i. Uma e outra já atrasadas. 

11 de maio de 2013

Mindelo, 11 de Maio de 2013

Salvo raras excepções, há muito que os fins-de-semana deixaram de o ser verdadeiramente. Sábado é dia de trabalho, ainda que a velocidade de cruzeiro, calções e chinelos. Domingo em stand by, mas com urgentes e pendentes quase sempre.

***

Polémico, o meu último artigo no P3. Sempre que se fala em viver com menos, os portugueses perdem as estribeiras. Não todos, é certo, mas uma grande maioria, e habitualmente com insultos. Estranha forma de argumentar.

De facto, acho mesmo que a crise nos ensinará sobre a necessidade de abdicar de algumas coisas secundárias. Contra mim falo. Não sou um exemplo de desmaterialização. Certo é que se trata de um processo ao qual ninguém escapa.

A forma com sentimos a crise tem tudo a ver com gestão de expectativas. O que esperávamos ser, aquilo que esperávamos ter e atingir. Aos nossos filhos, aqueles que nascem neste mundo em mudança, será mais fácil explicar isto.

10 de maio de 2013

Mindelo, 10 de Maio de 2013

Queixam-se os meus amigos do pouco uso que lhe dou (ao blogue, bem entendido). E eu acho que estão cheios de razão. 

Tentarei recupera-lo, mais uma vez, entregando-o agora ao estilo de diário (que sei à partida ser apenas uma força de expressão). Não há periodicidade definida, apenas a possibilidade de textos abreviados, ao ritmo da vida mundana. No fundo, o que procuro é uma justificação editorial para poder vir aqui e criar um post só com três palavras: "puta que pariu". 

Eu e o meu blogue - a caminho dos sete anos - temos uma daquelas relações enfadonhas, que já deram tudo o que tinham para dar, mas que mesmo assim persistem. Neste caso a estupidez é ainda maior, uma vez que nem filhos temos. 

Não esperem nada de muito empolgante. Vivo numa ilha e demoro 15 minutos a chegar ao ponto mais longe da mesma. Se começar a falar demasiado em cabras, desconfiem. 

Textos maiores podem acontecer, mas em geral será uma experiência eminentemente bucólica. 

25 de março de 2013

Escuro

Está sentado numa cadeira normal, na sala escura. As duas janelas, uma atrás e outra à esquerda, estão abertas e só as cortinas, leves, separam a rua da casa.

Desligou a televisão, o rádio, o computador e o telemóvel. Há por isso um silêncio apenas quebrado, a espaços, pelo ruído de um carro a passar na estrada calcetada.

Antes de se sentar, tirou a roupa. Descalço, sente o frio do chão.

Estica o braço direito. Toca no corpo nu à sua frente. Acompanha a curva do ombro e, com delicadeza, desce pelo braço. Detém-se a meio caminho. Passa do braço para o seio. Com um dedo apenas, a ponta do dedo, desenha círculos à volta do mamilo, que enrijece. Repete o caminho com a outra mão, no braço esquerdo, primeiro, no peito, depois. Aperta-lhe agora as mamas. O corpo estremece e o seu também. Contraria a vontade que se manifesta e que lhe pede que a tenha logo ali.

Ao mesmo tempo, as duas mãos seguem até ao ventre que lhe parece liso como nenhum outro. A pele - imagina-a como de seda fina - arrepia-se e a barriga contrai-se. 

As pernas estão juntas mas sem aviso separam-se. A mão esquerda continua na barriga, antes de subir novamente até ao peito. A mão direita, dois dedos apenas, percorre o interior da coxa. 

Do sítio até onde chegou já consegue sentir o calor e, quase que jura, o sabor. Espera a aprovação que surge com um ligeiro deslizar para a frente. 

Toca-lhe por fim no sexo húmido, alvo. Primeiro um gemido, depois outro, ao qual se junta pouco depois, em coro, ainda mais um, este mais grave. Finalmente, respirações ofegantes acompanham os gemidos, gemidos e respirações, ofegantes, gemidos, respirações. 

Até que tudo acaba como começou.

Um homem e uma mulher, sentados frente a frente, em cadeiras normais, na sala escura, duas janelas abertas, o chão frio e um carro a passar na rua.


- Não sei que te diga.

- Não preciso que me digas nada.

- Mas é surpreendente.

- Para ti.

- Achas normal?

- Acho uma merda.

- E esperavas?

- Nunca.

- E agora?

- Não faço ideia.

- Pois, presumo que não.

- Café?

- Café.

19 de março de 2013

Do pai João


Deixem-me ser claro: devo-lhe muito. Devo-lhe, por exemplo, e acima de tudo, o carácter forte. Espero um dia dever-lhe também a moral inabalável e a consciência tranquila de quem nunca, deliberadamente, prejudicou o outro. 

Digo-o sem exageros: o meu pai é fabuloso. É isso tudo, por todas as coisas que me ensinou, mas principalmente por tudo aquilo que aprendi com ele, sem que disso tomasse fé. 

O meu pai é um homem bom. Um homem bom, que ama a vida, que ama a terra e as coisas simples. E com isso me ensinou que o amor reproduz-se em mais amor e que a essência da felicidade está guardada em nós e nos actos que praticamos. 

O meu pai é também um homem inteligente. Um conhecedor profundo, um curioso incansável, um investigador determinado. E foi com ele que aprendi a nunca me contentar com um encolher de ombros, a perguntar sempre, por mais estúpida que possa parecer a pergunta. Mas conheci também o valor do silêncio, de nem sempre dizer tudo, porque há coisas que devemos guardar só para nós.

Ao meu pai devo, assim, a maior parte de mim. Aquela em que sou quem quero ser.

À distância de algumas horas de voo, porque foi assim que reconfigurámos o nosso amor, estás sempre comigo, companheiro. Sempre. 

Este é o abraço que te dou.

30 de janeiro de 2013

Viver sem joelheiras

São para mim tudo as pessoas que não se conformam. Sou um bocado assim, também. Quanto temos um problema, se estamos insatisfeitos, o melhor que podemos fazer - e talvez a única coisa a ser feita - é arregaçar as mangas e reverter a situação. 

Da minha experiência, sei que nem sempre conseguimos (ou pelo menos com os resultados esperados), mas alguma coisa, nem que seja o embrião de uma mudança, fica ali, a germinar. 

No final do ano passado, uma amiga de muita estima disse-me que se preparava para largar tudo: a cidade e a família que ama, os amigos que adora e um emprego confortável e que lhe garantia um futuro sem grandes sobressaltos. 

Isso não lhe basta. O emprego e a cidade, um e outro - que no caso se relacionam - não lhe bastam. Porque precisa de novos horizontes, porque olha para a secretária do lado e não se revê na tacanhez das ideias e das vidas feitas. 

Disse-lhe o que pensava: se vais, corta de vez. Se é para cortar, que seja a direito. Se vais arriscar, arrisca sem medo. 

Quando arriscamos, existe sempre a possibilidade de correr mal. Mas o resultado do atrevimento, na sua imprevisibilidade, só é conhecido depois de feito o exercício. 

Sou assim pelo risco. Pelo tentar. Por isso, apaixonam-me as pessoas ousadas, que perseguem ideais, que sonham, ambicionam. 

De uma forma ou de outra, todos procuramos o nosso lugar no mundo, na cidade latu sensu. Há quem o encontre em rotinas e dias programados Há quem o deseje em empregos estáveis. E depois existem os outros, os que não o encontram numa vida de longo prazo e que por isso mesmo precisam de continuar a procurar. 

Será essa a principal maravilha dos tempos modernos. É fácil - é muito mais fácil, pelo menos - concretizar a inquietude.


12 de janeiro de 2013

Nota breve sobre os silêncios

Com a idade, vai-se tornando cada vez mais óbvia a minha incapacidade para conversas de circunstância. Com a idade também - e esta é a parte boa - habituei-me ao facto e aceitei-o, até. 

Percebi, enfim, que nunca serei daquelas pessoas capazes de passar horas a trocar trivialidades com um qualquer interlocutor. Para mim, uma conversa deve ser suculenta. Pode até estar cheia de disparates, mas ainda assim, no registo, suculenta. 

Foi uma conquista importante. Deixar de me sentir obrigado a manter viva uma troca de palavras só pelo cumprimento de uma obrigação social (?). Agora, assumo os silêncios. 

Se perante alguém, não tenho nada para dizer, então o que tenho a dizer é isso mesmo: nada. Libertador.

8 de janeiro de 2013

Miguel

Traz no olhar (como nos ombros caídos, no andar arrastado, nas costas curvadas) a tristeza de sempre. Empurra a porta, que alguém deixou encostada, com uma mão, enquanto na outra segura o saco das compras. Entra no prédio frio e dirige-se às caixas do correio. Tem a jeito a chave e com ela faz rodar a pequena fechadura. No interior, nada. As notícias porque espera insistem em não chegar (nem repara que hoje já ninguém escreve em papel). Não chegarão, mas ainda não o sabe. Ou talvez o saiba e prefira negar-se a aceitar.

Estamos em 2009 e à mágoa guarda-a desde há dois anos. Há 746 dias, aliás, e contou-os assim, exactos.

No saco das compras a que nos referimos no início, e ao qual voltaremos por mais uma vez além desta, está o essencial - e nada mais do que isso - para se manter viva. Come por verdadeira necessidade, não encontrando no acto o mais ínfimo gáudio. De resto, prazer de qualquer espécie é nela substantivo abstracto.

- Miguel - disse ao chegar a casa.

- Miguel - repetiu ao não obter resposta.

- Miguel - procurou no telemóvel.

- Miguel - disse-lhe a voz do outro lado a meio da frase "Olá sou o... e não posso atender". 

- Miguel - pensou repetidas vezes nas horas seguintes. 

- Miguel - contou a toda a gente, do ex-marido ao resto da família. Da polícia aos amigos. Dos vizinhos a desconhecidos. 

- Miguel - chorou como ainda chora sempre que se aproxima do quarto, intacto, como no dia em que Miguel, demasiado novo para não estar ali, desapareceu. 

A cama continua por fazer, a roupa ainda está espalhada e a secretária onde estudava e fazia os trabalhos de casa (ou fingia fazer uma e outra coisa) permanece desarrumada. Nos dias, raros, em que não sente que morre, diz, como se fosse ouvida, "olha como é que deixaste o quarto". 

O pão, os iogurtes, as maçãs, o saco vazio que aperta nas mãos. Fixando o olhar num ponto indefinido, paralisa.

- Miguel - volta a chamar. 

Há uma lágrima - provavelmente sempre a mesma - a escorrer-lhe pelo rosto. Desencontraram-se para nunca mais. Em suspenso, recomeça a cada dia, ignorando que o ciclo não vai ter fim.